sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Impassibilidade, frigidez e masoquismo: uma leitura erótica da poesia parnasiana de Francisca Júlia

Detalhe de "Musa Impassível", estátua em mármore de Victor Brecheret para o túmulo de Francisca Júlia.

Texto apresentado no XV Congresso de Estudos Literários da UFES

Francisca Júlia da Silva foi uma poetisa da segunda geração do parnasianismo brasileiro, nascida em Xiririca — atual Eldorado — no interior paulista, e incluída por Mário de Andrade entre os cinco “mestres do passado” em seu necrológio à poesia parnasiana publicado em 1921, no Jornal do Comércio. Mesmo tendo deixado uma obra razoavelmente pequena, angariou considerável prestígio literário por seus poemas impressos em jornais tanto de São Paulo quanto do Rio de Janeiro, chamando a atenção de vários intelectuais de destaque da época. A publicação de seus dois livros principais, Mármores e Esfinges (este último uma espécie de versão revista e ampliada, com algumas supressões, do primeiro), apenas confirmou sua posição como um dos nomes mais aclamados da poesia brasileira do final do século XIX e início do XX. Para muitos, Francisca Júlia foi, entre nós, quem mais fielmente seguiu o modelo do parnasianismo francês (RAMOS, 1961, p. 28), enquanto outros poetas, em geral, tendiam a amaneirar e a temperar os rígidos preceitos da escola literária com o passar do tempo. Apesar disso, a poetisa paulista também flertou com o simbolismo na vertente mística de sua obra.

Desde o princípio, uma das características que mais chamou a atenção da crítica em sua obra foi certo acento másculo de sua poesia, um estilo que poderíamos definir como “viril”. A publicação do soneto “Paisagem” em A Semana, a 13 de outubro de 1894, levou Artur Azevedo, Valentim Magalhães, Araripe Júnior e Lúcio Mendonça a duvidarem que o autor do poema fosse realmente uma mulher. O mais incrédulo de todos, porém, foi o crítico e poeta João Ribeiro, que, imaginando tratar-se de um poema de Raimundo Correia, respondeu à “poetisa imaginária” com uma espécie de pastiche do estilo utilizado na composição do soneto. Desfeito o equívoco, o crítico escreveria o prólogo de Mármores, de 1895.

Em tal prólogo, após fazer o mea culpa em relação a sua leitura inicial da obra de Francisca Júlia — e se defender das acusações, segundo ele injustas, de que “só via nas mulheres as aptidões inferiores das cozinheiras” (SILVA, 1902, p. I) —, João Ribeiro afirma: “E todos nós inquiríamos se era verdadeiramente de mulher aquele coração enérgico e possante, capaz de propelir o sangue de um milhão de artérias” (Idem, p. III). Isso porque os versos da poetisa paulista destoavam da “banalidade vulgar e desolante do comum das poesias escritas outrora por mulheres” (Idem, idibem, p. IV), caracterizada por uma “languidez antipática e irracional”, da parte de meninas “rubicundas e gordas (...) algumas até glutonas” que “andavam a chorar pelos cantos da casa e a morrer em cada verso” (Idem, ibidem, pp. IV-V).

Em outros termos, o que João Ribeiro parece acusar em tal produção poética feminina é a permanência de certos lugares-comuns do romantismo, que há muito haviam caducado. Foi justamente essa visão lânguida e enfermiça da mulher que Carvalho Júnior combatera no soneto “Profissão de fé”, reunido no livro póstumo Parisina, de 1879. No soneto, o poeta declara seu ódio às “virgens pálidas, cloróticas” do romantismo, preferindo “a exuberância dos contornos,/ As belezas da forma, seus adornos,/ A saúde, a matéria, a vida enfim”. Some-se a isso o seguinte comentário de João Ribeiro: “Francisca Júlia tem pouco mais de vinte anos de idade. Sente-se a custo, às vezes, nas suas produções, a ternura dos verdes anos que só a adolescência é capaz de sugerir e realizar, porque a frieza clássica de seus versos é absoluta”, e percebe-se que o crítico, ele também poeta parnasiano, parece estar contrapondo a excelência artística da autora de Mármores ao público que, via de regra, era relacionado ao romantismo: mulheres e jovens, principalmente estudantes.

É nesse contexto que Francisca Júlia, mulher e ainda por cima na flor da idade, procura galgar os degraus mais altos da carreira literária. Numa carta de 1894, endereçada a Max Fleiuss, a poetisa evidencia como lhe calou fundo a crítica de Severiano de Rezende, quando da publicação de seu primeiro poema na imprensa. Severiano teria lhe dado o seguinte conselho: “Minha senhora, há ocupações mais úteis: dedique-se aos trabalhos de agulha” (RAMOS, op. cit., p. 6). Não é por acaso, portanto, que Francisca Júlia desenvolveu um estilo absolutamente contido, no qual se procura apagar qualquer traço de feminilidade. No afã de desvincular sua poesia dos estereótipos relacionados à condição feminina numa sociedade ainda muito atrelada aos valores patriarcais (fundamentados, segundo Gilberto Freyre, numa profunda especialização dos sexos — FREYRE, 2004, pp. 207-8), a autora de Esfinges acabou por elidir ou sublimar de sua obra a sexualidade em geral, ou ao menos foi isso que pretendeu fazer. Também não deve ter sido casual o fato de Francisca Júlia, depois de algum tempo, ter se afastado dos círculos literários para abraçar uma vida doméstica, assim como sua aproximação de uma poesia mística e devocional, mais de acordo com as expectativas que se tinha em relação ao papel da mulher na sociedade brasileira. O universo familiar pode ter se tornado inconciliável com sua persona pública e literária, projetada tanto em sua obra poética quanto entre os meios letrados. Mas isso tudo, é claro, são suposições. O que me interessa agora é mostrar como Francisca Júlia logrou obter esse estilo “másculo” de escrita que tanto surpreendeu seus contemporâneos.


Um estilo vigoroso


Pode-se dizer que há no parnasianismo um predomínio de aspectos descritivos sobre o lirismo, como destaca Mário de Andrade em relação a Castro Alves, que, segundo o autor de Macunaíma, foi uma espécie de precursor de nossos poetas parnasianos (ANDRADE, 1972, p. 120). Isto é, mais do que expressar estados psicológicos, importava apresentar da maneira mais nítida e exata possível as situações e os objetos que compõem o assunto do poema. Disso resulta a tão propalada objetividade parnasiana, segundo a qual o conteúdo era captado por uma perspectiva externa ao que está sendo representado, perspectiva essa que nem sempre chegava a se configurar como eu lírico. O extremo de tal tendência consistiria na ideia de impassibilidade, que preconizava o mais completo distanciamento dos planos da enunciação e do enunciado no que se refere ao teor emocional do que é narrado ou descrito. Tanto o mais excruciante sofrimento quanto a mais esfuziante das alegrias deveriam ser abordados por um mesmo tom analítico, equilibrado e racional.

Ocorre que tais preceitos de objetividade e impassibilidade (sobretudo o último) nunca foram rigorosamente respeitados no parnasianismo brasileiro, flanqueados que eram pelo pendor lírico de nossos poetas. Como afirma Manuel Bandeira: “(...) a diferença dos parnasianos em relação aos românticos está na ausência não do sentimentalismo, que sentimentalismo, entendido como afetação do sentimento, também existiu no parnasianismo, mas de uma certa meiguice dengosa e chorosa, bem brasileira aliás” (BANDEIRA, 2009, p. 100). Contudo, Francisca Júlia foi quem mais longe levou a obediência a esses preceitos, tornando-se a mais impassível de nossos parnasianos. Cabe questionar se isso não se deu porque a prescrição de impessoalidade lhe oferecia as circunstâncias para o apagamento de qualquer marca de fragilidade ou vulnerabilidade que poderia ser creditada a sua condição feminina.

A parte mais significativa da obra de Francisca Júlia — aquela propriamente parnasiana e que se limita, por um lado, pelos poemas iniciais (alguns dos quais refugados na preparação de Esfinges) e, por outro, pela poesia mais espiritualizada — caracteriza-se por um distanciamento olímpico da perspectiva estruturante do poema em relação ao assunto. Destacam-se nesse conjunto verdadeiros “quadros” e a composição de cenas sem a mínima interferência emocional do eu lírico. Isso não significa que, na poesia de Francisca Júlia, encontramos um tom neutro e anódino. Na realidade, há nela frequentemente um ímpeto retórico, como podemos perceber no primeiro quarteto do soneto “Os argonautas”:


Mar fora, ei-los que vão, cheios de ardor insano;
Os astros e o luar — amigas sentinelas —
Lançam bênçãos de cima às largas caravelas
Que rasgara fortemente a vastidão do oceano.[1]


Há uma tentativa de emprestar dramaticidade à cena, que é descrita de maneira dinâmica: “ardor insano” e “fortemente”, que evidenciam a energia e a coragem necessárias à superação das dificuldades, contrapõem-se a “amigas sentinelas” e “bênçãos”, que expressam a tranquilidade das altas esferas astrais, causando um efeito de contraste. Os homens se debatem freneticamente contra as forças da natureza, embora os astros, em sua calma inquebrantável, estejam a seu favor.

O expediente literário empregado nessa passagem é a hipotipose, que, na definição de Umberto Eco, constitui um conjunto variado de técnicas descritivas que têm como objetivo produzir, por meio da linguagem verbal, impressões visuais ao ouvinte ou leitor (ECO, 2003, pp. 170-1). Difere-a da mera descrição o fato de, com ela, o autor perseguir determinados efeitos artísticos, agindo sobre a sensibilidade estética dos receptores ao criar uma imagem vívida e sugestiva das situações e dos objetos representados. Francisca Júlia, ao lançar mão da hipotipose, mantém suspenso qualquer juízo subjetivo em relação ao que é descrito. Não há empatia, apenas a intenção de impactar o leitor com um estilo vigoroso, apelando para os sentidos e não para as emoções; tampouco há, em seus poemas, o convite a uma reflexão sobre as condições da existência humana.

E foi o estilo vigoroso da poetisa — caracterizado pela escolha de termos que expressam força, intensidade e movimento —, aliado a uma contenção emocional espartana, que surpreendeu seus contemporâneos justamente por se originar num “coração de mulher”, considerado mais terno e delicado. Impermeável ao drama humano e alheia à complicação psicológica, a vertente estritamente parnasiana da poesia de Francisca Júlia suscita inúmeras sensações no leitor, mas não permite a emoção; impressiona, mas não comove. É o ideal de poesia expresso no poema “Musa Impassível I”, no qual o eu lírico, ao mesmo tempo em que diz não querer que “um gesto sequer de dor ou de sincero luto” enfeie a face de sua musa, pede-lhe “Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,/ Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,/ Ora o surdo rumor de mármores partidos”. Vejamos, de agora em diante, como se dá a questão do erotismo ou da sensualidade em tal poesia.


A sensualidade em Francisca Júlia


A princípio, falar de erotismo em Francisca Júlia pode parecer uma impropriedade, pois os elementos eróticos de sua poesia, quando os há, aparecem quase sempre muito sublimados. A exceção está naqueles poemas em que é representado o nu feminino de acordo com as convenções do parnasianismo, como nos sonetos “Anfitrite” e “Rainha das águas”, este último dedicado a Alberto de Oliveira — autor de “Aparição nas águas” e de uma série de três sonetos dedicados a Afrodite, que parecem ter servido de inspiração ao poema de Francisca Júlia.

“Anfitrite” talvez seja o poema da poetisa em que a nudez é desvelada de maneira mais clara: “Surge, esplêndida e vem, envolta em áurea bruma,/ Anfitrite; e, a sorrir, nadando à tona d’água,/ Lá vai... mostrando à luz suas formas redondas,/ Sua clara nudez salpicada de espuma,/ Deslizando no glauco amículo das ondas”. Ainda assim, a nudez é sumária, genérica, dispensando detalhes e especificações, e a figura que deveria ser a central do poema, Anfitrite, aparece somente ao nono verso. A maior parte do poema, o que inclui os dois quartetos iniciais, foi gasta na criação da ambientação, na representação do cenário que serve de fundo à deidade nua, de modo que há um sutil deslocamento do motivo principal para o segundo plano.

Quando comparado aos poemas de Alberto de Oliveira que abordam tema semelhante, o soneto de Francisca Júlia revela uma grande diferença, pois, nos poemas de Oliveira, o corpo feminino, com riqueza relativa de detalhes, é o interesse central. Essa diferença se torna ainda mais patente em “Rainha das águas”, em que a figura feminina, no primeiro quarteto, é metonimicamente evocada apenas por sua boca e cabelos (“Mar fora, a rir, da boca o fúlgido tesouro/ Mostrando, e sacudindo a farta cabeleira, [...]”), sem ser sequer nomeada, para reaparecer apenas no último verso, com o sol refletindo na coroa que adorna a “cabeça real da bela soberana”. Toda a rainha das águas, que dá título ao poema, resume-se a isso: o “fúlgido tesouro” da boca, a “farta cabeleireira” e a “cabeça real”. Entre os dois primeiros versos e o último (por onde se espalham os parcos indícios da soberana), a longa descrição de uma cena marítima. O corpo foi totalmente elidido, submerso.

Na obra de Francisca Júlia, há uma relutância geral com a sensualidade, da qual a elisão do corpo feminino é apenas uma manifestação. Para ficar ainda nos motivos marítimos, consideremos o poema “A ondina”, no qual a figura feminina, que corre nua na praia, com os cabelos soltos (mais uma vez, uma nudez genérica, sem detalhamento) é surpreendida por um monstrengo surgido das sombras, que começa a persegui-la, até que o mar a esconda em seu regaço. A sexualidade em Francisca Júlia, quando chega a se apresentar, é sempre de forma ameaçadora, neste caso, como uma possibilidade de estupro.

Em “A dança das centauras”, temos um grupo dessas criaturas mitológicas envolvido numa espécie de jogo marcial. Elas dançam e lutam com a brancura dos seios “pompeando à luz” e o “cabelo solto ao léu”, enquanto terçam armas. Não há qualquer conotação erótica em sua nudez e estamos numa atmosfera guerreira, até mesmo violenta. A partir do primeiro terceto, tais figuras amazônicas fogem em debandada pelo aparecimento de Hércules brandindo, com o “heroico braço”, sua “clava argiva” (imagem de evidente conotação fálica). É como se o célebre herói, símbolo máximo de força e virilidade entre os gregos antigos, rompesse o círculo de uma feminilidade autocentrada, que se faz autônoma em relação ao sexo masculino pela incorporação de características deste (não por acaso, centauros são seres híbridos). O contato com o sexo oposto, que suspende o jogo e a luta, isto é, o clima de liberdade e coragem, não pode ser sentido senão como promessa de aniquilamento. A introdução da presença masculina no poema vem desfazer a fantasia de um universo feminino autodeterminado. Nada mais compreensível considerando o contexto histórico-social de Francisca Júlia, no qual o poder estava distribuído desigualmente entre os sexos e a mulher mantinha-se sujeita à autoridade patriarcal.  Mas ainda mais do que isso: o surgimento de Hércules, repondo os lugares de gênero, promove a sexualização de tal universo, sustando o aparente recato da nudez das centauras. Elas fogem certamente dos braços de Hércules, notório matador de monstros, mas será que não fogem também de seus olhos, por meio dos quais são obrigadas a reconhecer a dimensão sexual de seu próprio corpo?

É interessante perceber que tanto “A ondina” quanto “A dança das centauras” colocam em jogo o tema da fuga. Foge-se, nos dois casos, de uma presença masculina ameaçadora que traz consigo a sombra de uma sensualidade que se pretendia manter afastada. Os poemas colocam em jogo, em suma, o medo do sexo.


A mulher-carrasco
           

No que se refere às personagens femininas da obra de Francisca Júlia, as mais peculiares são aquelas encontradas nos dois sonetos da série “Musa Impassível” e em “Vênus”. No primeiro “Musa Impassível”, há um clamor para que a musa mantenha a mais glacial indiferença diante do sofrimento humano:


Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.


Já no segundo soneto da série, o eu lírico pede à musa para que o transporte aos “Olímpicos-Lares”, “onde os Deuses pagãos vivem eternamente” e de onde se pode ver “os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo”. Mas o que nos interessa é a evocação: “Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,/ Gela o sorriso ao lábio e às lágrimas estanca!”. “Sobrecenho austero”, “olhar de pedra” e sorriso gelado são as características dessa figura feminina nada maternal, insensível e absorta com os vultos grandiosos da literatura ocidental e da mitologia grega. O mais curioso, todavia, é quando tais características são atribuídas, num outro soneto, também à deusa Vênus, justamente a deusa do amor e da beleza entre os antigos:


Branca e hercúlea, de pé, num bloco de Carrara,
Que lhe serve de trono, a formosa escultura,
Vênus, túmido o colo, em severa postura,
Com seus olhos de pedra o mundo inteiro encara.

Um sopro, um quê de vida o gênio lhe insuflara;
E impassível, de pé, mostra em toda a brancura,
Desde as linhas da face ao talhe da cintura,
A majestade real de uma beleza rara.

Vendo-a nessa postura e nesse nobre entono
De Minerva marcial que pelo gládio arranca,
Julgo vê-la descer lentamente do trono,

E, na mesma atitude a que a insolência a obriga,
Postar-se à minha frente, impassível e branca,
Na régia perfeição da formosura antiga.
           

Vênus também é impassível, feito a musa, e, também como esta, possui “olhos de pedra”. Sua postura é severa, seu porte é majestático e sua atitude, insolente. Não há nada de amoroso ou de sedutor nessa deusa, à qual veio se colar a imagem da deusa da guerra Minerva. Se Vênus nasce do esperma de Urano derramado nas águas do mar, surgindo já adulta em sua radiante nudez, Minerva nasce da cabeça de Júpiter, também adulta, porém vestida de armadura (e, além disso, permanece virgem). Há um simbolismo contraditório na Vênus de Francisca Júlia. Como se não bastasse, ela ainda é classificada, logo de saída, como “hercúlea”. Se em “A dança das centauras” Hércules aparece como o princípio masculino que vem ameaçar um universo feminino fechado sobre si mesmo, em “Vênus” é esse próprio princípio que é incorporado à imagem feminina. Menos deusa do que estátua, menos amante do que guerreira, ela é andrógina e, talvez por isso mesmo, autossuficiente.

A Vênus de Francisca Júlia remete a outra Vênus: Wanda, personagem de A Vênus das peles, de Sacher-Masoch; tanto ela quanto a Musa Impassível apresentam elementos que as aproximam da mulher-carrasco na fantasia masoquista. Segundo Delleuze, em Sacher-Masoch: o frio e o cruel, o que define a mulher-carrasco do masoquismo não é seu prazer em causar sofrimento — ao contrário do que afirma a concepção tradicional que vê sadismo e masoquismo como perversões complementares —, mas sua capacidade de fazer sofrer sem ceder à compaixão; “sem piedade, mas sem ódio”, nas palavras de Dragomira, heroína de A pescadora de almas, outro romance de Masoch (apud DELLEUZE, 2009, p. 42). Na verdade, na obra de Masoch, uma mulher nunca se torna algoz cedendo à inclinação de sua natureza (o que a tornaria essencialmente sádica), mas por meio de um processo pedagógico no qual a vítima vai gradativamente adequando sua parceira a seus desejos autopunitivos.
           
Na porção estritamente parnasiana da obra de Francisca Júlia, vemos uma tentativa de afastar qualquer resquício de sensualidade como forma de elidir do texto marcas de feminilidade (sejam elas biológicas ou culturalmente construídas), tanto no estilo utilizado quanto no tratamento dado aos temas. Como consequência, há um recrudescimento de uma espécie de feminilidade intransitiva que se dá por meio da incorporação de traços convencionalmente atribuídos ao sexo masculino. Há uma recusa dos papéis de mãe e de amante, resultando na imagem de uma mulher fria, impedida de se afeiçoar, pois talvez haja a percepção de que são justamente os vínculos formados pelo afeto que ameaçam a autonomia da mulher; e isso num nível provavelmente inconsciente. Entretanto, a sensualidade abafada acaba retornando de forma enviesada, por meio de elementos sutilmente masoquistas.

Em “O mergulhador”, inspirado num tema de Murger, o poeta é comparado a um mergulhador que desce ao fundo do mar — no palácio das sereias — atrás da pérola mais rara para adornar os cabelos de uma “clara rainha”, que é quem lhe exige a façanha. Percebemos um jogo amoroso que consiste na sujeição a uma figura feminina majestática e caprichosa. Porém o exemplo mais explícito de verdadeiro gozo masoquista está no poema “Dona Alda”:


Hoje D. Alda madrugou. Às costas
Solta a opulenta cabeleira de ouro,
Nos lábios um sorriso de alegria,
Vai passear ao jardim; as flores, postas
Em longa fila, alegremente, em coro,
Saúdam-na: “Bom dia!”
D. Alda segue... Segue-a uma andorinha;
Com seus raios de luz o sol a banha;
E D. Alda caminha...
Uma porção de folhas a acompanha...
Caminha... Como um fúlgido brilhante,
O seu olhar fulgura.
Mas — que cruel! — ao dar um passo adiante,
Enquanto a barra do roupão sofralda,
Pisa um cravo gentil de láctea alvura!
E este, sob os seus pés, inda murmura:
“Obrigado, D. Alda.”


O cândido cravo agradece a pisadela dos mimosos pés de D. Alda. Um poema assim aparentemente tão pueril e gracioso acaba ganhando um insuspeitado tom perverso quando relacionado ao erotismo sufocado do restante da obra de Francisca Júlia.


Conclusão


Francisca Júlia firmou-se como poetisa prestigiada por meio de um estilo vigoroso e de uma rígida contenção emocional, o que lhe rendeu o epíteto de o mais parnasiano de nossos parnasianos, quem sabe a única a levar realmente a sério o princípio da impassibilidade. Para tanto, talvez tenha sentido a necessidade de restringir ao máximo o teor sensual de seus poemas, o que, como vimos, teve como consequência um sentimento do sexo como ameaça de aniquilamento e certo viés masoquista difuso. De certa maneira, sua trajetória literária esclarece em muitos pontos o momento histórico que o Brasil atravessava na passagem do século XIX para o XX.

Uma das principais características do século XIX foi a migração do capital para as grandes cidades, o que se fez acompanhar do deslocamento do patriarcado rural para a área urbana. Com o estabelecimento nas cidades, o estilo de vida das famílias patriarcais foi se modificando, o que incluía a situação das mulheres. O regime de reclusão no qual elas até então viviam foi gradativamente dando lugar a uma vida social mais variada, em que a cultura mantinha um importante papel como capital simbólico, como elemento distintivo entre classes. Com o decorrente aumento do nível de instrução das mulheres das famílias mais privilegiadas, abriu-se a elas a possibilidade de participar do ambiente cultural que existia nas cidades, embora o mesmo não se desse quanto à participação na política e na economia.

Como se sabe, a modernização dos modos — em grande parte tributária da importação do estilo de vida da burguesia europeia — não se fez acompanhar da modernização das estruturas econômicas e sociais do país, que se mantiveram basicamente as mesmas pelo menos até a década de 30 do século XX, de maneira que, por muito tempo ainda, sobreviveriam valores de nosso passado colonial, que davam forma e substância à mentalidade do patriarcado brasileiro. Nesse sentido, a obra de Francisca Júlia é o testemunho de um impasse: por um lado, estavam dadas as condições práticas para a participação das mulheres no âmbito da cultura, incluindo aí a literatura; por outro, persistiam valores que atribuíam à mulher uma posição inferiorizada, restringindo-lhe virtualmente o campo de ação. A solução encontrada pela poetisa paulista foi apagar de seu texto, tanto quanto possível, todas as marcas de feminilidade, escrevendo poemas que fossem “dignos de mãos masculinas”.


Referências bibliográficas


ANDRADE, Mário de. “Mestres do passado”. In: BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro: antecedentes da semana de arte moderna. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.

————— . “Castro Alves”. In: Aspectos de Literatura Brasileira. 4ª ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972

BROCA, Brito. A vida literária no Brasil, 1900. 4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Academia Brasileira de Letras, 2004.

DELLEUZE, Gilles. Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Tradução Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009,

ECO, Umberto. “Les sémaphores sous la pluie”. In: Sobre a literatura. 2ª ed. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2003

FISCHER, Luís Augusto. Parnasianismo brasileiro: entre a ressonância e a dissonância. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 15 ª ed. São Paulo: Global, 2004.

MARTINO, Pierre. Parnasse et symbolisme. Paris:  Librairie Armand Colin, 1967.

MONTALEGRE, Duarte de. Ensaio sobre o Parnasianismo brasileiro. Coimbra: Coimbra Ed. Lda, 1945.

RAMOS, Péricles Eugênio da Silva (org.). Poesias de Francisca Júlia. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1961.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

SILVA, Francisca Júlia da. Mármores. São Paulo: Horacio Belfort Sabino Editor, 1895.

———— . Esfinges. São Paulo: Bentley Jr. & Comp., 1902.




[1] “Os argonautas”, assim como o soneto homônimo de Raimundo Correia (tradução de um poema de José María de Heredia), trata das Grandes Navegações do início da Era Moderna e não da tripulação da nau Argos, da história mitológica de Jasão. A referência clássica comparece aqui como uma analogia para conceder dimensão mítica às viagens de Vasco da Gama, Colombo, Pedro Álvares Cabral & Cia. Portanto, não há qualquer anacronismo na utilização do termo “caravelas”. 

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Explodindo a aquarela da consciência: uma introdução a "Gume de Gueixa", de Jandira Zanchi

Texto publicado como introdução ao livro Gume de gueixa, de Jandira Zanchi, pela Editora Patuá.

Como é bastante sabido entre os conhecedores de poesia, Rimbaud, numa carta a Paul Demeny, sugeriu que o poeta deveria se tornar uma espécie de vidente por meio de um “longo, imenso e ponderado desregramento de todos os sentidos”[1]. Descontando as evidentes conotações místicas do termo vidente (uma variante da concepção romântica do poeta vate), podemos dizer que Rimbaud pensava numa poesia do futuro, projetiva — o poeta como “antena da raça”, para citar a formulação de Ezra Pound, que os conhecedores, mais uma vez, hão de reconhecer[2]. Abrindo-se para toda sorte de novas experiências, vivendo intensamente, colhendo com os sentidos muito de tudo (“todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura”), o poeta esgota os caminhos previamente traçados, o campo mapeado do possível, até tocar, com a ponta dos dedos, o véu do desconhecido e descortinar o futuro. Aonde quer que a humanidade chegue um dia, o poeta já esteve e agora traz os ecos de uma terra distante e obscura. Como bem disse o mestre Caeiro:

Sou o descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele próprio.[3]

O país estranho do qual o poeta nos fala é, afinal de contas, o nosso próprio, apenas limpo da pátina gordurosa da rotina, da mesmice, dos clichês. Contudo, não é preciso, como Rimbaud pretendia, impor ao poeta um modo de vida. Não, caros leitores, não é preciso que o poeta se entregue ao ópio, ao absinto, à cocaína; não é preciso que experimente o sexo grupal, o sexo com cadáveres, com cavalos; que seja amarrado, pendurado, furado, costurado ou quem sabe penteado por serafins; nem mesmo é preciso que leve à boca qualquer imundície. Alguns poetas, imagino eu, nunca choraram sozinhos num banheiro sujo. Não sei se é o caso de Jandira Zanchi, a quem conheço somente das veredas do mundo virtual. Ocorre que, como seus versos demonstram, a poesia não é o produto de um desregramento prévio; ela é o próprio caminho, o processo pelo qual nossos sentidos alucinam e passamos a enxergar as coisas sob uma nova luz e por inusitadas perspectivas. Vejamos em “A cor do rio”:

Decapitava a noite
seu frio mármore
estremecido de gozo

Se me permitem uma rápida tentativa de exegese, talvez querendo inserir, imprópria e inadvertidamente, uma mísera moeda de sentido na solda perfeita entre som e imagem[4], o “frio mármore estremecido de gozo” é o rio com suas águas trêmulas, como parece sugerir o nome do poema. Ou talvez seja a noite a decapitar-se a si mesma. O que sei eu? O fato é que o poema, operando fora das figuras de linguagem ratificadas pela tradição e apostando na ambiguidade e na indefinição sintática, força-nos a olhar para as coisas mais corriqueiras com os olhos prenhes de estranheza. Aprendemos a desaprender as coisas, com as pupilas dilatadas de perplexidade: “Não-entender, não-entender, até se virar menino”, na lição de Guimarães Rosa.

Contudo, alguns poemas de Zanchi se fecham no mais intransigente hermetismo, forçando-nos a abdicar de qualquer anseio interpretativo, como em “Umbigo”:

fumava fumaças
de charutos rútilos
desejava desvios
de prantos e pratas
nádegas de defuntos
esquálida e vibrante
essa face nódoa
amante do umbigo
fertilizadora de silêncios.

A evidente estranheza das imagens dispensa qualquer comentário. O poema não é um enigma, mas um verdadeiro mistério; ele não quer ser entendido: apenas sentido, fruído — “O mistério não cede/ ele sobe desce” (“Favorita”). E a corrosão do sentido tem como consequência um desmantelamento do discurso, de modo que, não raro, nexos sintáticos são preteridos em favor da livre associação de ideias ou palavras, abolindo-se a pontuação. Em “Favorita”:

luz e dia sombra alta
a terra arde e ama
o Sol de seu príncipe
segue-se um terço
e partes.

Obviamente, estamos diante de uma autora que se coloca em linha de continuidade com as experimentações surrealistas que, desde certa vertente da poesia de Manuel Bandeira, possui forte tradição no Brasil: Murilo Mendes, Jorge de Lima, os integrantes da Geração de 45 etc. Entretanto, o que tais poetas não compartilham com Jandira Zachi é a dissolução da forma e do discurso, que faz a sintaxe desesperar. Segundo as palavras da própria poetisa: “testemunho — sem comover-me —/ a mutação da forma e sua desarmonia/ alegria exuberância tirania de vida” (“Testemunho”). Mais correto, portanto, é filiá-la ao nonsense caboclo de Manoel de Barros, à poesia xamânica de Roberto Piva e, para apostar numa referência externa, ao surrealismo (des)construtivista do português Herberto Hélder.

Mas é com Piva que Zanchi comunga um importante aspecto de sua poesia: o erotismo. Não um erotismo de uma carne que se faz verbo; não um erotismo que se depreende de um corpo imaginado através das palavras, emerso ao nível do significado, plenamente representado. Na realidade, o que temos aqui é uma sedução pela palavra (num sentido em tudo diverso ao que tal expressão tem recebido ultimamente na selva selvagem dos simpatizantes da literatura comercial[5]), pois, as palavras, trabalhadas em sua dimensão material, no âmbito do significante, propiciam por si mesmas uma experiência que captura a sensibilidade e instiga a imaginação. É o verbo que se faz carne, mas, neste caso, uma carne embebida no gozo e destituída de culpa:

quero a ímpia e colorida terra
outra vez nua nos orgasmos
de seus rios e mares
amada sede de seres e sonhos. (grifos meus)

A poesia transfigura a natureza, a realidade, tornando-a objeto de uma fruição sensualíssima, no entanto, além disso, há a própria sonoridade da estrofe, seu ritmo, seus ecos, suas aliterações, fazendo dos versos uma experiência inebriante, embalada no soçobro do sentido:

Novilha na Rede...
antes que te voltes, Mulher,
a mão do bárbaro é novamente tua
beija-lhe em cada uma das três faces
o olho do centro
o amálgama do medo esquecido
em suas poeiras vagas vagabundas
de ilusões e cortejos
nua e na rua redime a forma e sua
discutível planificação de outras redes. (grifos meus)

As sugestões eróticas do enunciado se fundem à volúpia das palavras na enunciação, formando uma camada espessa de impressões sensoriais. O gozo não está somente no que se entrevê nas frestas das palavras, no que se adivinha por detrás delas (pois o detrás, algumas vezes, não existe); ele está também nas palavras elas mesmas, em seu arranjo, no que contenham de sonoridade. Pleno gozo do signo: sedução pelo significado e, sobretudo, pelo significante.

Nesse sentido — o de uma poesia que, muitas vezes, despoja-se de qualquer lastro referencial para melhor imprimir seu poder de sugestão —, temos uma obra poética que não se quer limitada pelas regras da verossimilhança ou pelas amarras do possível. Ela não se pretende verdadeira, tampouco mente, pois seus critérios são outros. A voz lírica diz: “conheço o luxo de ser nua e insofismável” (“Gume de gueixa”) e assim é a poesia de Zanchi — despida de qualquer pretensão de apreender conceitualmente a realidade, de emitir juízos e definições, ela se apresenta em sua beleza pura, em seu esteticismo intoxicante, como a nos dizer: com a beleza não se discute. A gueixa, cujo gume dá título ao livro, remete-nos à hetaira Friné diante do Aéropago, absolvida de acusações caluniosas única e exclusivamente por força de sua estonteante (e, por que não dizer, “insofismável”?) nudez.

***

O livro pode ser adquirido AQUI.



[1] O trecho citado está entre os mais conhecidos da correspondência de Rimbaud reunida no volume Lettres du voyant.
[2] POUND, Ezra. Abc da Literatura. Tradução Augusto de Campos e José Paulo Paes. 2ª ed. São Paulo: Cultrix, s.d., p. 77.
[3] PESSOA, Fernando. “O guardador de rebanhos - XLVI”. In: Poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 73.
[4] Walter Benjamin comenta a respeito dos primórdios do surrealismo: “A vida só parecia digna de ser vivida quando se dissolvia a fronteira entre o sono e a vigília, permitindo a passagem em massa de figuras ondulantes, e a linguagem só parecia autêntica quando o som e a imagem, a imagem e o som, se interpenetravam, com exatidão automática, de forma tão feliz que não sobrava a mínima fresta para inserir a pequena moeda a que chamamos ‘sentido’”. BENJAMIN, Walter. “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 22.
[5] Estou me referindo ao uso que os signatários de um tal “Manifesto silvestre” deram à expressão.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Será que ele é? Uma análise do homoerotismo em Dom Casmurro

Escobar & Bentinho. In: Capitu, de Luiz Fernando Carvalho

Pessoas próximas dizem que, no dia a dia, demonstro certa dificuldade em processar ironia. Mas não é que nem sempre eu não capte a intenção humorística de certas declarações; ocorre que, às vezes, sinto instintivamente que responder um gracejo como se fosse a sério faz parte do jogo proposto, ao que o autor da piada frequentemente responde: “Eu só estava brincando, Emmanuel!”. Pois é. Desta vez, resolvi levar outra brincadeira a sério. Trata-se da sugestão de Millôr Fernandes, feita meio em tom de blague, de que Bento Santiago, narrador e protagonista de Dom Casmurro (obra-prima de Machado de Assis), teria uma quedinha pelo amigo Escobar, com quem sua esposa — Capitu — poderia tê-lo traído. Assim afirma Millôr:

(...) curiosamente, pela nossa eterna pruderie intelectual, ainda ridiculamente forte com relação a outro tipo de relação, a homo, nunca vi ninguém falar nada das intimidades entre Bentinho e Escobar. É verdade que, na época, Oscar Wilde estava em cana por causa do pecado “que não ousa dizer seu nome”.

Daí em diante, em vez de argumentar a favor da hipótese, o humorista prefere remeter o leitor a algumas citações do livro, de modo que se possa formar um juízo próprio acerca da questão. Eu, por minha vez, além de partir das citações destacadas por Millôr, coligi algumas outras e ainda me dei ao trabalho de contextualizar as já apontadas. Sei que, provavelmente, nada do que apresentarei será inédito; já ouvi muitas coisas ditas a respeito. Trata-se aqui, simplesmente, da tentativa de organizar algumas impressões de leituras, sem qualquer pretensão de encerrar o caso. Minha hipótese (minha não: do Millôr), confesso, baseia-se em alguns elementos bastante circunstanciais, porém entrego-me à tarefa de sustentá-la como um paparazzo entediado que tenha passado o dia inteiro perseguindo uma celebridade, dando importância desproporcional aos gestos mais corriqueiros.

Como precisa ser repetido, não pretendo — nem posso — fechar a questão. Trago uma possibilidade interpretativa que, no fundo, não tem como ser comprovada cabalmente, a despeito de sua coerência interna. Satisfaço-me em levantar suspeitas sobre a macheza um tanto vacilante de Bentinho, que é quem nos diz sobre si próprio: “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem” (Cap. XXXI). Registre-se que tampouco pretendo levantar bandeira nem me entregar ao projeto de arrancar à força os ícones da cultura brasileira do armário da História. O que me move é única e exclusivamente o prazer pelo mexerico.

***

Antes de explorar a latente carga homoerótica de Dom Casmurro, é preciso considerar de que modo o erotismo em geral comparece na obra de Machado de Assis. Numa época em que realistas e naturalistas deleitavam-se em representar a sexualidade humana de forma bastante franca, não refugando nem mesmo diante do terreno pantanoso das perversões, Machado de Assis apresenta um estilo casto, eu diria até mesmo pudico. Como afirma Augusto Meyer sobre a obra machadiana em contraposição à de Eça de Queirós: “Com Machado de Assis, entramos no regime das reticências e dos recalcamentos. Nada é simples nele, e não há nada, no melhor de sua obra, que se entregue de braços abertos à primeira leitura”. O ensaísta também nos diz: “(...) a sensualidade machadiana, aparentemente tão discreta, começa na penumbra de seus segundos planos e vai dar numa sombra insondável. Recalcada e por isso mesmo profunda, às vezes atinge o limite da morbidez”. Meyer chega a apontar que a obra de Machado sugere uma intuição de determinados processos psicológicos como a sublimação e o recalque, que pouco tempo depois seriam delimitados conceitualmente por Freud.

Enfim, na medida em que Machado procura depurar estilisticamente seu texto de qualquer traço de obscenidade, subordinando-se às regras de um decoro bastante estrito, a voltagem erótica de algumas de suas passagens acaba se manifestando tangencialmente, por meio de uma série de desvios (o que é uma operação própria à perversão em geral e ao fetichismo em específico). Augusto Meyer: “O que caracteriza os breves momentos de erupção sensual nessa obra é um estranho ardor abafado, não sei que morbidez no acento da frase e na escolha de certos detalhes expressivos, uns dois ou três toques mais avivados, então, sobre o fundo contrastante de habitual secura. Fogo vivo entre cinzas. Às vezes o detalhe perturbador é um quase nada (...)”. Vejamos, a esse propósito, como se dá o primeiro beijo entre Bentinho e Capitu:


(...). Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! (...). Onde estava a fita para atar-lhes as pontas? Em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra, alargando aqui, achatando ali, até que exclamei:
— Pronto!
— Estará bom?
—Veja no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.
— Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...
Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas... Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos.

Eis o primeiro beijo, apresentado no capítulo XXXIII, que, não por acaso, recebeu o título de “O penteado”. Espera-se, por convenção, que o primeiro beijo seja um evento importante numa história de amor (e os primeiros dois terços do romance são, efetivamente, uma história de amor), de modo que “O primeiro beijo” seria uma escolha quase óbvia para servir de título à seção. Contudo, o penteado de Capitu recebe uma ênfase muito maior do que o beijo propriamente dito, e é naquele, e não neste, que sentimos toda a tensão sexual da cena. Todas as impressões táteis, que esperaríamos encontrar na fricção dos lábios, são deslocadas para o ato de pentear: os cabelos de Capitu eram “saboreados pelo tato”; os dedos “roçavam” na nuca da moça e em suas espáduas cobertas, causando uma sensação de “deleite”. O ritmo da passagem é lento — “devagar, devagarinho” —, cheio de idas e vindas, digressões, como que para fixar e provocar a imaginação do leitor, que é chamado a participar desse momento: “Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor...”.

Muito distinta é a forma como o beijo (não) é representado. Ele foi elidido, oculto numa clivagem entre um parágrafo e outro, ficando apenas sugerido pelas reticências. Quando o narrador retoma o relato, já se trata de fato consumado. Não há mais como acessá-lo, pois Bentinho não o compartilha com o leitor. Anulam-se completamente as potencialidades sensuais dos lábios, ao passo que os cabelos de Capitu são hiperotizados. O erotismo é completamente deslocado nesta passagem e o penteado se torna uma longa e deliciosa preliminar para um beijo que não existe a não ser como uma fantasmagoria no interior do relato, como um dado implícito. Os tons e as ênfases parecem ser meticulosamente distribuídos por Machado de Assis: a castidade do beijo se faz preceder da inflação sensual do ato de pentear. Relacionado a nossas expectativas de recepção — segundo as quais o beijo deveria ser um momento de paixão intensa entre as personagens —, o capítulo é frustrantemente casto e ao mesmo tempo bizarramente voluptuoso.

Outra passagem que merece atenção é capítulo LVIII. Bentinho voltava ao seminário acompanhado de José Dias, quando avista uma senhora se estabacar no chão, revelando-lhe suas ligas de seda. É um momento de epifania erótica, em que a personagem se dá conta, quiçá pela primeira vez, de seu desejo sexual, levando-a a fantasiar com aquilo o que outras mulheres trariam debaixo de suas saias: “Dali em diante, até o seminário, não vi mulher na rua, a quem não desejasse uma queda; a algumas adivinhei que traziam as meias esticadas e as ligas justas... Tal haveria que nem levasse meias... Mas eu as via com elas... Ou então... Também é possível...”. Mais uma vez, as reticências são utilizadas para apenas sugerir o que não se quer dizer explicitamente: talvez uma daquelas senhoras não trouxesse nada debaixo de suas saias. É então que Bentinho procurará justificar o uso das reticências neste caso: “Vou esgarçando isto com reticências para dar uma ideia das minhas ideias, que eram assim difusas e confusas; com certeza não dou nada”. As reticências estariam lá como que a sinalizar a perplexidade do menino que acaba de descobrir a própria sexualidade, pressentida ainda de maneira vaga.

Contudo, é preciso levar em conta que a narração se dá em dois tempos: o do enunciado, que é o tempo em que se sucederam os fatos relatados, na adolescência da personagem; e o da enunciação, o da narração propriamente dita, que parte de um Bento Santiago de idade mais avançada, a relembrar os lances de sua vida pregressa e de sua história com Capitu. Se, por um lado, os sinais gráficos correspondem, no plano do enunciado, à confusão de emoções e pensamentos do adolescente, cabe perguntar o que elas significam para o narrador, mais experiente e, de acordo com suas constantes digressões sobre a própria escrita, cônscio dos expedientes literários empregados ao longo da narração. Da parte do narrador, parece-me que elas colocam em evidência um processo de autocensura, de vigília ininterrupta da linguagem que atravessa todo o livro. É como se, a todo o momento, Bento Santiago temesse que a escrita pudesse revelar as motivações mais profundas por trás de suas ações, por isso ele a leva sempre em rédea curta. Não se trata, como seria de se esperar de um livro de memórias, de um desabafo espontâneo e sincero. Tudo soa meditado demais, calculado demais; até as confissões assumem um tom retórico facilmente apreensível, quando não diplomático.

Dom Casmurro não parece disposto a se comprometer. Nesse sentido, as reticências da passagem em análise parecem funcionar como um recalque da libido da personagem, enquanto a justificativa de seu uso, apresentada logo em seguida, é mais uma forma de desconversar, de recalcar a consciência do recalque, de denegar. Não basta somente narrar adaptando os fatos à versão pretendida sobre eles; o narrador deseja determinar até mesmo o modo como o leitor apreende a narração. Isso tudo, é claro, dentro das regras do jogo ficcional proposto pelo texto, que estabelecem que devemos ler a história como se fora escrita por Bento, e não por Machado de Assis.

Após vislumbrar as ligas da senhora, a personagem passa o restante do dia atormentado por aquela visão: “No seminário, a primeira hora foi insuportável. As batinas traziam ar de saias, e lembravam-me a queda da senhora. Já não era uma só que eu via cair; todas as que eu encontrara na rua, mostravam-me agora de relance as ligas azuis; eram azuis”. Assim como a descoberta da sexualidade por meio daquelas ligas fez Bentinho passar a enxergar as mulheres na rua de maneira diferente — desejando-as —, será que podemos supor que o mesmo se passou com os clérigos e os internos do seminário? Se as batinas traziam “ar de saias”, não teriam os companheiros de seminário assumido ares de garotas nas “ideias difusas e confusas” da personagem? Antes mesmo que possamos fazer tal questionamento, o narrador adianta uma informação até então omitida, fazendo nossa atenção recair sobre ela por sua reiteração: “mostravam-me de relance as ligas azuis; eram azuis”. E o tormento da personagem continua noite adentro:

De noite, sonhei com elas. Uma multidão de abomináveis criaturas veio andar à roda de mim, tique-tique... Eram belas, umas finas, outras grossas, todas ágeis como o diabo. Acordei, busquei afugentá-las com esconderijos e outros métodos, mas tão depressa dormi como tornaram, e, com as mãos presas em volta de mim, faziam um vasto círculo de saias ou, trepadas no ar, choviam pés e pernas sobre a minha cabeça. Assim fui até madrugada. Não dormi mais; rezei padre-nossos, ave-marias, e credos, e sendo este livro a verdade pura, é força confessar que tive de interromper mais de uma vez as minhas orações para acompanhar no escuro uma figura ao longe, tique-tique, tique-tique... Pegava depressa na oração, sempre no meio para concertá-la bem, como se não tivesse havido interrupção, mas certamente não unia a frase nova à antiga.

Vemos neste ponto o quanto a sexualidade surge para Bentinho atrelada a um forte sentimento de culpa. Não se trata de uma angústia em relação ao voto de celibato que se prenuncia ao final do período de seminário — pois a personagem não pretende abraçar o sacerdócio —, mas de uma angústia com a sexualidade em si, que lhe parece irredutivelmente pecaminosa. Seria forçar a nota dizer que o sentimento de culpa se dá por algum eventual teor homoerótico de suas fantasias, pois é de se imaginar que muitos adolescentes que, como Bentinho, receberam uma sólida formação católica, tivessem dificuldade em distinguir em seus primeiros impulsos sexuais uma sexualidade “natural”, ou “saudável”, da pura concupiscência (segundo a doutrina católica, é claro). Mas o flagelo noturno não para por aí; aliás, Bentinho faz dele um hábito, uma espécie de ambíguo exercício espiritual:

       Vindo o mal pela manhã adiante, tentei vencê-lo, mas por um modo que o não perdesse de todo. Sábios da Escritura, adivinhai o que podia ser. Foi isto. Não podendo rejeitar de mim aqueles quadros, recorri a um tratado entre a minha consciência e a minha imaginação. As visões feminis seriam de ora avante consideradas como simples encarnações dos vícios, e por isso mesmo contempláveis, como o melhor modo de temperar o caráter e aguerri-lo para os combates ásperos da vida. Não formulei isto por palavras, nem foi preciso; o contrato fez-se tacitamente, com alguma repugnância, mas fez-se. E por alguns dias, era eu mesmo que evocava as visões para fortalecer-me, e não as rejeitava, senão quando elas mesmo de cansadas, se iam embora.

Amanhecendo, Bentinho não tenta mais repelir a imagem, embora ainda lute contra ela. Eis que algo acontece, o que, porém, o narrador não nos diz claramente: “Sábios da escritura, adivinhai o que podia ser. Foi isto”. O que foi “isto” que os sábios da Escritura poderiam adivinhar? Assim como no capítulo XXXIII o narrador nos apresenta o primeiro beijo como um fato consumado, sem descrevê-lo, aqui também há algo que fica nas entrelinhas, subentendido. Diz o crítico inglês John Gledson: “O capítulo LVIII é talvez o melhor exemplo da ‘castidade’ de Machado: parece a mim ser uma descrição da masturbação adolescente, mas tão brilhantemente retratada que muitos leitores apenas a adivinhariam, sem se dar conta da completa realidade (Muitos nem mesmo a notariam e, o mais importante, ninguém poderia provar que existiu)”. É bem possível que Gledson tenha matado a charada. A passagem trataria não apenas da primeira masturbação de Bentinho, mas também do modo como “isto” se tornou um hábito. A evocação dos sábios da Escritura remete à autoridade moral da religião cristã, que reprova seu ato, daí a “repugnância” que o acerto entre suas ações e sua consciência inspira. Estamos diante, afinal de contas, de uma confissão. As imagens sensuais que lhe excitavam só iam embora por si mesmas, depois de cansadas — possível referência à lassidão que sobrevém ao orgasmo. Entretanto, o narrador procura hipocritamente justificar sua incursão metódica pelo pecado como um exercício que lhe permitiria fortalecer o espírito contra a tentação da carne. A oração cede à masturbação nas aflições noturnas de Bentinho.

O que temos nesse primeiro bloco do romance é o despertar sexual da personagem. Pouco antes da cena do primeiro beijo, são as palavras de José Dias, ouvidas secretamente, que dão a Bentinho a consciência da natureza de seus sentimentos por Capitu: “Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a mim mesmo, (...). Eu amava Capitu! Capitu amava-me!” (Cap. XII). Segue-se então o primeiro beijo, que torna a personagem cônscia da própria sexualidade, fazendo-a afirmar, um tanto perplexa: “Sou homem!” (XXXIV). Bentinho acusa a consciência de estar atingindo a maturidade sexual e abandonando a inocência dos tempos da infância. Posteriormente, a visão da queda da mulher — que o introduz nos domínios das fantasias sexuais — desvela ao púbere seminarista as possibilidades eróticas do próprio corpo. O próximo passo seria dado nas noites de núpcias, das quais o narrador prefere poupar o leitor: “Depois, visitamos uma parte daquele lugar infinito [o céu]. Descansa que não farei descrição alguma, nem a língua humana possui formas idôneas para tanto” (Cap. CI).

Antes de concluir estas prolongadas preliminares, que já ameaçam, provavelmente, enfastiar o leitor, outra passagem. É um dos últimos capítulos, que procura expor como Dom Casmurro se arranjou, sexualmente falando, após enviar Capitu para o exílio na Europa:


Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou aí para um canto como uma flor lívida e solitária. Não lhe dei essa cor ou descor. Vivi o melhor que pude, sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira. Caprichos de pouca dura, é verdade. Elas é que me deixavam como pessoas que assistem a uma exposição retrospectiva, e, ou se fartam de vê-la, ou a luz da sala esmorece. Uma só dessas visitas tinha carro à porta e cocheiro de libré. As outras iam modestamente, calcante pede, e, se chovia, eu é que ia buscar um carro de praça, e as metia dentro, com grandes despedidas, e maiores recomendações.
— Levas o catálogo?
— Levo; até amanhã.
— Até amanhã.
Não voltavam mais. Eu ficava à porta, esperando, ia até à esquina, espiava, consultava o relógio, e não via nada nem ninguém. Então, se aparecia outra visita, dava-lhe o braço, entrávamos, mostrava-lhe as paisagens, os quadros históricos ou de gênero, uma aquarela, um pastel, uma gouache, e também esta cansava, e ia embora com o catálogo na mão... (Cap. CXLVII)

O comércio sexual estabelecido entre Dom Casmurro e tais “amigas” é apresentado nos termos de uma exposição de arte. As moças, em sua maioria de extração humilde, chegavam, assistiam à “exposição”, saiam levando o catálogo desta e nunca mais voltavam. A exposição, claro está, não é literal, pois se trata de um símile: “Elas é que me deixavam como pessoas que assistem a uma exposição retrospectiva”. E se eram elas que o deixavam, é talvez porque cobravam por tempo de serviço, com horário determinado. E é bem provável que o catálogo seja, na verdade, o pagamento.

Essas passagens foram analisadas para demonstrar que, quando se trata do erotismo em Machado de Assis, é inútil procurar qualquer referência explícita. Precisamos estar atentos a uma série de desvios, deslocamentos, silêncios e analogias. Mais do que tudo, é patente a interferência do narrador nos momentos mais picantes da narrativa, explicando, justificando ou até mesmo desconversando. Portanto, logo de saída, percebemos que, se há algum nível de homoerotismo no romance, não encontraremos disso nenhuma prova inequívoca.

***

Bentinho conhece Escobar no seminário. Seu nome completo é Ezequiel de Souza Escobar e seu prenome será dado ao filho de Bentinho com Capitu, como forma de substituição ao posto de padrinho, solicitado por tio Cosme. A personagem é introduzida na história como um rapaz de modos esquivos e relutantes: “(...) era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo. (...). Não fitava de rosto, não falava claro nem seguido; as mãos não apertavam as outras, nem se deixavam apertar delas, por que os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava tê-los entre os seus, já não tinha nada” (Cap. LVI). Ora, Bentinho também não possui uma personalidade das mais resolutas, de modo que não surpreende que rapidamente despontasse uma afinidade entre eles:



(...). A princípio, fui tímido, mas ele fez-se entrado na minha confiança. Aqueles modos fugitivos cessavam quando ele queria, e o meio e o tempo os fizeram mais pousados. Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também as há fechadas e escuras, sem janelas ou com poucas e gradeadas, à semelhança de conventos e prisões. Outrossim, capelas e bazares, simples alpendres ou paços suntuosos.

Não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem dom casmurro; o receio é que me tolhia a franqueza, mas como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que... (Cap. LVI)

... até que Bento Santiago começasse a desconfiar que Escobar tivera um caso com Capitu e que o amigo seria o pai de seu filho. A passagem mostra como o rapaz de modos fugidios foi aos poucos ganhando a confiança e a afeição de Bentinho, passando a privar de sua intimidade e a trocar confidências com ele. Em pouco tempo, Bentinho já podia afirmar: “Ia alternando a casa e o seminário. Os padres gostavam de mim, os rapazes também, e Escobar mais que os rapazes e os padres” (Cap. LXV). Após uma ausência prolongada de Bentinho no seminário, Escobar faz uma visita à casa da família Santiago, causando boa impressão e sendo convidado para o jantar. Então o narrador volta a descrevê-lo:

Os olhos de Escobar, claros como já disse, eram dulcíssimos; assim os definiu José Dias, depois que ele saiu, e mantenho esta palavra, apesar dos quarenta anos que traz em cima de si. Nisto não houve exageração do agrado. A cara rapada mostrava uma pele alva e lisa. A testa é que era um pouso baixa, vindo a risca do cabelo quase em cima da sobrancelha esquerda- mas tinha sempre a altura necessária para não afrontar as outras feições, nem diminuir a graça delas. Realmente, era interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz curvo e delgado.

Mesmo passados quarenta anos e depois das suspeitas de traição envolvendo o amigo, o narrador reafirma a graça dos olhos de Escobar e destaca o interesse que seu rosto podia suscitar. Ele é certamente bonito aos olhos de Bentinho, que fica exultante pelo fato de sua família tê-lo acolhido tão bem: “Todos ficaram gostando dele. Eu estava tão contente como se Escobar fosse invenção minha” (Cap. XCIII). E a despedida entre os dois depois do jantar é efusiva o suficiente para atiçar a curiosidade de Capitu:


(...). Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do ônibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à porta, a ver se, ao longe, ainda olharia para trás, mas não olhou.

— Que amigo é esse tamanho? perguntou alguém de uma janela ao pé.

(...). Era Capitu, que nos espreitara desde algum tempo, por dentro da veneziana, e agora abrira inteiramente a janela, e aparecera. Viu as nossas despedidas tão rasgadas e afetuosas, e quis saber quem era que me merecia tanto.

Não há nada de particularmente estranho no fato de um homem achar outro bonito ou que amigos demonstrem carinho publicamente. No entanto, a amizade entre Bentinho e Escobar é, salvo engano, a mais física das amizades da obra de Machado de Assis. Os dois se separam “com muito afeto” e suas despedidas são descritas como “tão rasgadas e afetuosas”. A reiteração e a intensificação são significativas levando-se em conta o estilo econômico de Machado, que quase nunca esbanja um advérbio ou adjetivo. Mas essa não é a única vez em que o transbordamento afetivo entre os dois chama a atenção de outra personagem. No seminário, Bentinho fica entusiasmado com a habilidade matemática de Escobar, que acabara de calcular, mentalmente, a renda da família Santiago:

Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão; um padre que estava com eles não gostou.

— A modéstia, disse-nos, não consente esses gestos excessivos; podem estimar-se com moderação.

Escobar observou-me que os outros e o padre falavam de inveja e propôs-me viver separados. Interrompi-o dizendo que não; se era inveja, tanto pior para eles.

— Quebremos-lhe a castanha na boca!

— Mas...

— Fiquemos ainda mais amigos que até aqui.

Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos. É ilusão, de certo, se não é efeito das longas horas que tenho estado a escrever sem parar. Suspendamos a pena por alguns instantes... (Cap. XCIV)

A afetuosidade entre as duas personagens mostra-se excessiva, chegando a merecer uma reprimenda do padre. Aqui há um ponto importante que pode passar despercebido: Escobar refere-se aos “outros”, os demais alunos do seminário, como fonte de inveja da amizade entre os dois. Aparentemente, não é a primeira vez que eles se tornam motivo de atenção no seminário, o que uma passagem anterior confirma:



— Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no seminário você é a pessoa que mais me tem entrado no coração, e lá fora, a não ser a gente da família, não tenho propriamente um amigo.

— Se eu disser a mesma coisa, retorquiu ele sorrindo, perde a graça; parece que estou repetindo. Mas a verdade é que não tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro e creio que já notaram; mas eu não me importo com isso. (Cap. LXXVIII — grifo meu)

Será que a proximidade entre Bentinho e Escobar levantara algum tipo de suspeita? As falas de Escobar sugerem que sim. Outro aspecto interessante da cena no pátio é o modo como as personagens dão-se as mãos, ao que se segue uma rápida intervenção do narrador, procurando dissipar qualquer conotação amorosa por trás do ato e mudando nitidamente de assunto: “É ilusão, de certo, se não é efeito das longas horas que tenho estado a escrever sem parar. Suspendamos a pena por alguns instantes...”. Tal demonstração de afeto, ao que parece, não é incomum entre eles. Na segunda vez em que Escobar vai à casa da família Santiago, temos:


(...) durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas, como se me não visse desde longos meses.

— Você janta comigo, Escobar?

— Vim para isto mesmo. (Cap. XCIII — grifo meu)

Ao que se segue, depois de jantar, uma cena um tanto idílica:

Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí, mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio; depois continuamos. Quais foram as reflexões não me lembra agora; lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, ele riu também. A minha alegria acordava a dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão claro, que a natureza parecia rir também conosco. São assim as boas horas deste mundo. (idem)
           
Esses momentos em que os dois amigos se mantêm de mãos dadas guarda um interessante paralelo com a passagem em que Bentinho, ao surpreender Capitu escrevendo o nome de ambos no muro, obtém a confirmação de que seus sentimentos por ela eram correspondidos:


(...). Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exata daquele gesto. Devia tê-la marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas não traria nenhum, tal era a diferença entre o estudante e o adolescente. Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres.

Não soltamos as mãos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas. Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a meter-se uns pelos outros... (Cap. XIV — grifo meu)

Na passagem entre Capitu e Bentinho, o dar-se as mãos possui um evidente componente amoroso e erótico, tanto que inspira o narrador a uma reflexão sobre o fato de a personagem, àquela altura, desconhecer as “regras do amar” e ser ainda “virgem de mulheres”. O paralelo desta passagem com aquelas duas em que Escobar toma as mãos de Bentinho permite supor, em alguma medida, uma correspondência entre as três situações. No mínimo, tal simetria lança uma sombra sobre as duas cenas entre Bentinho e Escobar, enchendo-as de ambiguidade. Além disso, o entrelaçar das mãos assume, nas três passagens, a função de selar uma espécie de pacto, de compromisso de continuidade e estreitamento de relações.

Preciso admitir que as passagens até aqui analisadas são um tanto circunstanciais e inconclusivas. Elas, contudo, permitem inferir a existência de uma tensão sexual na amizade entre Bentinho e Escobar. Percebam que, em nenhum momento, cheguei a cogitar que as duas personagens tenham efetivamente mantido um relacionamento amoroso. Se houve qualquer envolvimento emocional mais profundo, este parece ter sido de natureza puramente platônica. Ir além disso seria extrapolar as informações contidas no texto. Porém, não me parece arbitrário questionar a motivação por trás de tantas recorrências, reiterações, sugestões e insinuações, principalmente se tratando de uma obra repleta de armadilhas e mal-entendidos minuciosamente introduzidos pelo autor, como é o caso de Dom Casmurro. Não por coincidência, uma das linhas de investigação mais prolíficas nas últimas décadas tem sido justamente a tentativa de caracterizar Bento Santiago como um narrador não confiável (ou “narrador posto em situação”), forçando uma leitura a contrapelo da versão apresentada por ele dos fatos.

Deixei por último, para uma análise mais detida e em separado, a passagem que, a meus olhos, é a que melhor corrobora a hipótese desenvolvida nesta análise.

***

No capítulo CXVIII, Bento e Capitu, já casados, vão visitar Escobar e sua esposa, Sancha. Durante o jantar, o protagonista começa a cismar com os olhos da mulher do amigo, que parecem “quentes e intimativos”. Basta apenas uma troca de olhares mais demorada para que seu espírito se conturbe de vez, fazendo-o pensar em Sancha até a manhã seguinte. Não há, porém, como saber se a esposa de Escobar está realmente manifestando algum interesse por Bento ou se tudo não passa de uma fantasia deste. Em meio a tal situação, na qual os desejos do protagonista mostram-se à flor da pele, Escobar informa ao amigo seus planos de nadar no dia seguinte, mesmo sabendo que o mar estará bravio:



— O mar amanhã está de desafiar a gente, disse-me a voz de Escobar, ao pé de mim.

— Você entra no mar amanhã?

— Tenho entrado com mares maiores, muito maiores. — Você não imagina o que é um bom mar em hora bravia. É preciso nadar bem, como eu, e ter estes pulmões — disse ele batendo no peito — e estes braços; apalpa.

Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta confissão, mas não posso suprimi-la; era jarretar a verdade. Nem só os apalpei com essa ideia, mas ainda senti outra cousa: achei-os mais grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja; acresce que sabiam nadar. (grifo meu)

Depois de alguns minutos entretido em seu jogo de sedução, talvez imaginário, com Sancha, Bento apalpa os braços de Escobar e os sente como se fossem os dela. Transfere-se então a atração por Sancha aos braços de Escobar; se os braços destes são como os daquela, então, por consequência, por um instante que seja, Bento chegou a desejar o amigo. Segue-se o habitual tom confessional verificado nas partes mais embaraçosas da história, geralmente aquelas que envolvem algum componente sexual, muitas delas analisadas nas seções anteriores. Além desse deslocamento da libido, o narrador ainda alega ter sentido outra coisa, um sentimento adicional: os braços de Escobar eram grossos e fortes, a ponto de lhe causar inveja. Ele não estava mais fantasiando com os braços de Sancha, que certamente eram mais finos e fracos que seus próprios. Eram os braços de Escobar que o perturbavam.

Logo após, Bento e Capitu se despendem dos anfitriões, quando aquele percebe que as mãos de Sancha se demoraram mais do que de costume entre as suas, deixando-lhe uma impressão que duraria algum tempo: “Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de pecado”.

Todo o capítulo, não por acaso intitulado “A mão de Sancha”, contém um interesse anatômico. O desejo de Bento por Sancha se concentra nos olhos e nas mãos, enquanto, em Escobar, o que se destaca são os braços. As mãos, como já vimos, ao se apertarem forte e demoradamente, evidenciam um intenso vínculo afetivo; mais do que isso: selam uma espécie de compromisso. É apertando as mãos que Bentinho e Capitu expressam, pela primeira vez, a consciência da mútua afeição existente entre eles (Cap. XIV) e, com o mesmo gesto, Bentinho e Escobar prometem intensificar ainda mais sua amizade (Cap. XCIV). Quanto aos olhos, impossível não remetê-los aos de Capitu: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, na definição de José Dias, e “olhos de ressaca”, que tragam e envolvem quem os fita, segundo o próprio Bento. Em Machado, os olhos, principalmente os de uma bela mulher, têm quase sempre algo de perigoso, enganoso e ilusório — um quê de armadilha. Não são as “janelas de alma”, como se costuma dizer, mas um prisma no qual a alma sofre uma série de refrações, distorcendo e tornando nebulosas as motivações de sua dona. Em tais olhos, aliás, refrangem-se também o olhar e a imaginação do protagonista, incapaz de lê-los claramente. Ou seja: tanto mãos quanto olhos, independentemente de seu significado, apresentam uma nítida dimensão simbólica que os elevam além do corporal e os remetem a uma pletora de emoções mais complexas. Os braços, não. Machado chega a dedicar um capítulo aos braços de Capitu, ilustrando a escalada de ciúmes de seu protagonista:


De dançar [Capitu] gostava, e enfeitava-se com amor quando ia a um baile; os braços é que... Os braços merecem um período.

Eram belos, e na primeira noite que os levou nus a um baile, não creio que houvesse iguais na cidade, nem os seus, leitora, que eram então de menina, se eram nascidos, mas provavelmente estariam ainda no mármore, donde vieram, ou nas mãos do divino escultor. Eram os mais belos da noite, a ponto que me encheram de desvanecimento. Conversava mal com as outras pessoas, só para vê-los, por mais que eles se entrelaçassem aos das casacas alheias. Lá não foi assim no segundo baile; nesse, quando vi que os homens não se fartavam de olhar para eles, de os buscar, quase de os pedir, e que roçavam por eles as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro não fui, e aqui tive o apoio de Escobar, a quem confiei candidamente os meus tédios, concordou logo comigo. (Cap. CV)

Reparem novamente no uso das reticências, pelas quais o narrador se exime de expressar sua preferência sensual pelos braços da esposa, que só encontram paralelos, em Dom Casmurro, nos cabelos da mesma. A nudez dos braços de Capitu corresponde a uma nudez quase completa e a visão de outros homens a lhes roçarem com as mangas das casacas é praticamente um adultério. Augusto Meyer não deixa de perceber essa fixação por braços femininos que atravessa toda a obra de Machado, descrevendo “certa insistência tátil e visual matizada de fetichismo”, na qual o autor se entrega constantemente “à voluptuosa obsessão dos braços”. Referindo-se aos contos “Uns braços” e “A missa do galo”, em que os braços figuram como catalisadores dos desejos das personagens masculinas, o crítico identifica “a perturbadora revelação do amor na adolescência, o primeiro apelo da carne e do sexo”.

Em suma, os braços, em Machado de Assis, representam uma espécie de metonímia do corpo considerado em sua dimensão sexual; signo no qual se condensam as aflições eróticas das personagens. Para utilizar o repertório conceitual do filósofo e escritor francês Georges Bataille, eles representam a carne: “O movimento da carne excede um limite na ausência da vontade. A carne é em nós esse excesso que se opõe à lei da decência”. Isto é, a carne é a manifestação de uma sexualidade irredutível a qualquer sublimação, um corpo natural e avesso a qualquer simbolismo que o afaste de sua existência concreta, material. Por isso é extremamente significante que Bento desloque os braços de Sancha para Escobar e se coloque a apalpá-los, a senti-los, a invejá-los. Os braços de Escobar, rijos e fortes, adquirem contornos fálicos. Nesse sentido, a menção de Bento de que omitir sua confissão seria “jarretar a verdade” adquire novas conotações: jarretar é cortar os tendões da parte posterior da coxa; significa também amputar. O texto, omitida essa passagem em que Bento deseja os braços do amigo, ficaria como que castrado, destituído de suas conotações eróticas, falsificando o relato. De certa maneira, restituir ao texto sua profundidade sexual é preservar sua veracidade.

Uma inferência interpretativa que podemos fazer, embora incerta, é que a atração de Bento por Sancha nada mais é do que um deslocamento do desejo nutrido em relação a Escobar. Uma vez que Sancha, na condição de esposa, apresenta-se socialmente como o objeto do desejo de Escobar, cobiçar tal objeto talvez signifique desejar o desejo do amigo, apropriar-se de seus afetos por meio da apropriação daquilo no qual eles estão investidos. Sancha poderia corresponder a um dos pontos de uma triangulação erótica pela qual se manifesta a atração de Bentinho por Escobar. Isto, porém, é apenas mais uma inferência.

***

Como já foi dito duas vezes, mas não custa repetir, meu objetivo não foi provar cabalmente que Bento Santiago era apaixonado por Escobar. Contudo, acredito ter coligido elementos suficientes para sustentar que, no mínimo, parece haver um desejo reprimido, talvez até mesmo inconsciente, do protagonista em relação a seu melhor amigo; um desejo que não se sublimou completamente na amizade, mantendo um precipitado erótico nas entrelinhas do discurso do narrador. O homoerotismo do romance existe apenas como latência.


É importante ressaltar que tal desejo homoerótico não exclui, como hipótese, a sinceridade dos sentimentos de Bento em relação a Capitu, nem os demais interesses heterossexuais que o protagonista tenha manifestado ao longo da história. Como se sabe em psicologia, uma homossexualidade latente, como traço de uma bissexualidade constitutiva, não impede a formação psíquica de uma autoimagem heterossexual. O que há de novo, e de provocativo, na abordagem sugerida por Millôr é a possibilidade de conceber os ciúmes doentios de Bento em relação a Capitu e Escobar como uma projeção naquela de seus desejos por este último. Dessa maneira, Bentinho seria incapaz de confrontar em Capitu o reflexo de seus próprios fantasmas sexuais. Uma tese ousada e temerária, sem dúvida. Mas isso é assunto, quem sabe, para um próximo texto.


***

Referências bibliográficas

BATAILLE, Georges. O erotismo (ensaio). Tradução Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004.

FERNANDES, Millôr. O "outro lado" de Dom Casmurro. Pode ser lido aqui.

GLEDSON, John. "Dom Casmurro: uma nota introdutória". In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Globo, 2008.

MEYER, Augusto. "Da sensualidade". In: Machado de Assis (1935-1958). 4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio/ABL, 2008.

SCHWARZ, Roberto. "A poesia envenenada de Dom Casmurro". In: Duas meninas. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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