sexta-feira, 14 de março de 2014

Aí vem o "Pavão bizarro"


Nos próximos meses, estarei publicando pela Editora Patuá meu primeiro livro de poesia, chamado Pavão bizarro. Ele é composto por 39 poemas, escritos em sua grande maioria entre os anos de 2006 e 2014 (cerca de cinco deles são um pouco anteriores). A princípio, o objetivo era simplesmente dominar os meios técnicos da escrita, o que explica certa experimentação gratuita com as formas e uma ênfase na metalinguagem. Com o passar do tempo, no entanto, fui verificando que alguns poemas já eram mais do que meros exercícios técnico-formais e que o conjunto apresentava uma consistência que justificava sua publicação. Não posso dizer que, ainda hoje, os poemas do livro representem integralmente meu pensamento e minha concepção de poesia, mas eles registram um longo e por vezes árduo percurso, incluindo a superação de longos períodos em que me achava completamente inapto a continuar escrevendo qualquer coisa que não fosse crítica literária. Publicar o Pavão bizarro, de certa maneira, é limpar o terreno para novos projetos, novas preocupações... Mas não foi um processo fácil encontrar os meios para publicá-lo. Nesse sentido, só tenho a agradecer à Editora Patuá, que tem aberto espaço para novos autores ou autores menos conhecidos do público, com um catálogo recheado de títulos de poesia (coisa muito rara em nosso mercado editorial).

Pavão Bizarro, cujo projeto editorial é de Eduardo Lacerda, conta ainda com a ilustração de Leonardo Mathias na capa e com um prefácio finíssimo escrito por Fábio César Alves. O livro já está disponível para venda no site da editora, como pré-lançamento. Segue um aperitivo:

O anjo torto

Por natureza, os
anjos são seres
etéreos, frágeis
corpos de matéria
luminosa (róseos
fogos-fátuos); vide
os querubins de Rafael.

Mas não este que
Antônio Francisco
Lisboa, vulgo
Aleijadinho, arrancou
das entranhas da pedra
— em vez de asas, grossas
raízes lhe brotam das costas.

Será este o anjo torto
que vaticinou de Drummond,
já no nascimento, a malfadada sina?

Um anjo canhestro que
a própria terra, ruminando,
teceu na trama de suas trevas,
e coube ao artista fazer o parto
de seu corpo espesso e compacto,
irredutível às puras essências
do espírito; espúria
matéria escura.

Para ler mais alguns poemas e/ou comprar o livro (que só poderá ser adquirido pela página da editora na internet), clique AQUI.

domingo, 9 de março de 2014

O jogo de interesses ocultos na trama de "Pierre Menard, autor del Quijote"



O conceito de ideologia não afirma que todo o espírito serve apenas para que alguns homens eventualmente escamoteiem eventuais interesses particulares, fazendo-os passar por universais, mas sim quer desmascarar o espírito determinado a ser falso e, ao mesmo tempo, apreendê-lo conceitualmente em sua necessidade. (ADORNO, 2003, p. 68)

No último parágrafo de “Pierre Menard, autor del Quijote”[2], o narrador sugere que a empreitada de Menard em reescrever o Dom Quijote de Cervantes, enriquece, por meio de uma técnica nova — “la técnica del anacronismo deliberado y de las atribuciones erróneas” —, a arte da leitura: “Esa técnica puebla de aventura los libros más calmosos. Atribuir a Louis Ferdinand Céline o a James Joyce la Imitación de Cristo ¿no es una suficiente renovación de esos tenues avisos espirituales?” (p. 55). Partindo dessa premissa, proponho a seguinte questão: é possível ler o conto “Pierre Menard”, de Jorge Luis Borges, como se fora escrito por Machado de Assis? Explico-me: neste trabalho, pretendo interpretar o conto borgiano a partir da consideração de certos procedimentos literários familiares aos leitores de Machado de Assis. Mais especificamente, pretendo interpretá-lo à luz do instrumental teórico e metodológico mobilizado por Roberto Schwarz em suas leituras do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas.

O primeiro aspecto que discutirei é a construção do narrador, que apresenta traços de um narrador não confiável, ou narrador posto em situação. Trata-se da constituição de um ponto de vista narrativo que, como parte especialmente interessada na situação narrada ou tão comprometida com ela a ponto de se tornar incapaz de apresentar uma visão objetiva dos fatos, exige que o leitor se mantenha sempre com o pé-atrás, como ocorre com Bento Santiago, narrador de Dom Casmurro (SCHWARZ, 1997, p. 12). No primeiro parágrafo de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, primeiro conto de Ficciones e que antecede “Pierre Menard”, encontramos uma descrição de tal procedimento:

Bioy Casares había cenado conmigo esa noche y nos demoró una vasta polémica sobre la ejecución de una novela en primera persona, cuyo narrador omitiera o desfigurara los hechos e incurriera en diversas contradicciones, que permitieran a unos pocos lectores — a muy pocos lectores — la adivinación de una  realidad atroz o banal. (p. 16)

Acredito que tal descrição se adéqua ao narrador de “Pierre Menard”, figura de caráter questionável, que coloca sob suspeita a trama do conto, inclusive a possibilidade de que o protagonista da história tenha obtido sucesso, ainda que parcial, em sua impossível tarefa. Entretanto, assim como em Dom Casmurro a polêmica sobre a traição de Capitu desvia o foco da questão principal — a construção de um narrador interessado em convencer o leitor da culpa de sua esposa —, o objetivo deste trabalho não é afirmar que o conto borgiano apresenta uma farsa e que Pierre Menard não teria escrito os fragmentos de Dom Quixote atribuídos a ele pelo narrador, mesmo porque o texto não traz dados conclusivos a esse respeito. Meu intuito é demonstrar como a trama se constrói a partir de uma perspectiva não confiável, ao que se soma o caráter volúvel da personagem principal (que veremos num segundo momento da análise), tornando os fatos narrados cada vez mais incríveis, com todas as nuances de sentido que tal palavra possa conter.


O narrador

Sabemos que o narrador integra o círculo literário do qual fazia parte Pierre Menard, arvorando-se defensor da memória do amigo morto, injustiçado, segundo ele, por um catálogo “falaz” confeccionado por Madame Bachelier, repleto de omissões e adições. O narrador então decide ele mesmo reparar tal injustiça, escrevendo outro catálogo, do qual conste não apenas a obra “visível” do escritor, a conhecida pelo público, como também sua obra “invisível”, que consiste na reescritura milagrosa de Dom Quixote. Já no primeiro parágrafo, porém, o narrador expõe traços nada louváveis de caráter:

         La obra visible que ha dejado este novelista [Pierre Menard] es de fácil y breve enumeración. Son, por lo tanto, imperdonables las omisiones y adiciones perpetradas por Madame Henri Bachelier en un catálogo falaz que cierto diario cuya tendencia protestante no es un secreto ha tenido la desconsideración de inferir a sus deplorables lectores — si bien estos son pocos y calvinistas, cuando no masones y circuncisos. (grifo do autor — p. 41)

Aos olhos do narrador, a tendência protestante deprecia o jornal, que se destina a leitores “deploráveis”, entre os quais estão listados calvinistas, maçons e judeus, acrescentando uma nota antissemita ao preconceito religioso. Como se sabe, preconceitos são obstáculos para uma apreciação mais isenta da realidade e, uma vez que o narrador os evidencia tão claramente, e nas primeiras frases de seu relato, deveria deixar o leitor de prontidão logo de saída. E o parágrafo continua:

Los amigos auténticos de Menard han visto con alarma ese catálogo y con cierta tristeza. Diríase que ayer nos reunimos ante el mármol final y entre los cipreses infaustos y ya el Error trata de empañar su Memoria... Decididamente, una breve rectificación es inevitable. (Idem)

Reparemos na retórica vazia, repleta de lugares-comuns detestáveis, como “mármol final”, “cipreses infaustos”, as palavras error e memoria grafadas com maiúsculas, revelando uma linguagem beletrista, empostada e caricata — postiça, poderíamos dizer. Se a perspectiva do narrador, que manifesta uma série de preconceitos, não instaura uma coordenada confiável para a leitura, o mesmo acontece com seu instrumento de análise, a linguagem, que parece perseguir o efeito fácil e banal. O passo seguinte é o reconhecimento retórico da pouca autoridade do narrador, que se apoia em figuras da alta sociedade para avalizar seu relato:

         Me consta que es muy fácil recusar mi pobre autoridad. Espero, sin embargo, que no me prohibirán mencionar dos altos testimonios. La baronesa de Bacourt (en cuyos vendredis inolvidables tuve el honor de conocer al llorado poeta) ha tenido a bien aprobar las líneas que siguen. La condesa de Bagnoregio, uno de los espíritus más finos del principado de Mónaco (y ahora de Pittsburg, Pennsylvania, después de su reciente boda con el filántropo internacional Simón Kautzsch, tan calumniado, ¡ay!, por las víctimas de sus desinteresadas maniobras) ha sacrificado “a la veracidad y a la muerte” (tales son sus palabras) la señoril reserva que la distingue y en una carta abierta publicada en la revista Luxe me concede asimismo su beneplácito. Esas ejecutorias, creo, no son insuficientes. (p. 42)

Como forma de retribuir a confiança dos poderosos e garantir que esta não lhe falte, o narrador carrega na politesse, empregando uma linguagem adulatória que ultrapassa os limites do bom gosto. A autoridade que o narrador trata de angariar não é de ordem intelectual, mas social e econômica, tanto que o nome da revista na qual a condessa publica seu apoio, Luxe, sugere uma publicação especializada no estilo de vida e nos hábitos de consumo das classes abastadas. Entretanto, a credibilidade do testemunho invocado é colocada em xeque no próprio movimento do discurso. A condessa de Bagnoregio é casada com o “filantropo internacional” Simón Kautzsch, mas como pode ser considerado filantropo alguém cujas “manobras” causam “vítimas”? E, se tais manobras causam prejuízo a outrem, como considerá-las “desinteressadas”? Acrescente-se a isso a afetação da interjeição “¡ay!”, e começamos a perceber que o narrador usa de ironia para caracterizar seu círculo social. A defesa do suposto filantropo é, na verdade, uma acusação enviesada. O narrador mente de forma descarada, exagerando no tom e nos trejeitos, deixando pistas de sua falsidade intencional. Toda a narrativa de “Pierre Menard”, como pretendo demonstrar, baseia-se no esforço sistemático de, sucessivamente, escamotear e desvelar interesses, como aparece pontualmente no caso do esboço que o narrador traça de Kautzsch.

Sobre a condessa, por sua vez, o narrador aponta que ela anualmente faz publicar uma revista com o objetivo de “rectificar los inevitables falseos del periodismo y presentar ‘al mundo y a Italia’ una auténtica efigie de su persona, tan expuesta (en razón misma de su belleza y de su actuación) a interpretaciones erróneas o apresuradas” (p. 45). Assim como seu marido é caluniado por suas “manobras desinteressadas”, a condessa de Bagnoregio é exposta à calúnia dos jornalistas, na razão direta de sua atuação. O narrador, como que inadvertidamente, sugere indícios que suscitam dúvidas sobre a integridade moral da condessa, ao mesmo tempo em que louva sua beleza, travestindo de galanteio suas insinuações. Portanto, o narrador afiança a credibilidade de seu relato evocando o testemunho de uma pessoa que, como ele próprio acaba indicando, não merece muita credibilidade. Neste ponto, damo-nos conta que não há nenhuma coordenada confiável na narrativa e que estamos à mercê de um narrador cheio de subterfúgios.

Mas — devemos nos perguntar — por que o narrador mente? A detração implícita da condessa e do marido demonstra uma consciência crítica em relação ao comportamento das pessoas de seu círculo. Tal consciência, porém, é expressa apenas de maneira indireta, lançando mão da ironia. O que exatamente faz com que o narrador precise dissimular seus pensamentos e adular, ainda que da boca para fora e por meio de uma retórica vazia, figuras pelas quais sente indisfarçada repulsa?

Vimos que o narrador conheceu Pierre Menard num evento semanal promovido pela baronesa; ele também cita a revista anual financiada pela condessa, que Gabriele d’Annunzio, um colaborador, num rasgo de eloquência, denominou como “victorioso volumen” (p. 45). Ao que parece, trata-se de um grupo de eruditos cujas atividades intelectuais estão ligadas ao patrocínio de figuras remanescentes da nobreza europeia. De um lado, temos esses membros da nobreza, financiando as artes e a cultura, garantindo assim algum prestígio intelectual, para não falar da dívida de gratidão dos homens de letras; do outro lado, temos esses mesmos homens de letras, que encontram no aporte financeiro da nobreza as condições para exercer suas atividades, obtendo, por sua vez, prestígio social. É uma troca de favores. A condessa faz publicar sua revista como maneira de “retificar” as calúnias que a imprensa escreve sobre ela. Como seus colegas que colaboram com a revista, o narrador parece implicado, ao menos publicamente, com o nome da condessa, mesmo suspeitando não serem tão caluniosos assim os ataques que a imprensa lhe reserva.

Vimos, numa passagem anterior, que o narrador procura se amparar no prestígio de suas benfeitoras para justificar sua autoridade, o que significa que, para obter alguma visibilidade social para seu trabalho, é preciso que ele se comprometa com os interesses das duas, obrigando-se a assumir uma atitude subalterna. Como exemplo dessa atitude, podemos citar a nota na qual ele afirma não se “atrever” a competir com “las páginas áureas” que a baronesa de Bacourt prepara a respeito de Menard (p. 46), colocando, mais uma vez, o exagero retórico a serviço de angariar a simpatia dos poderosos.

Desde o primeiro parágrafo do conto, o narrador cuida de circunscrever a si e a seus próximos entre os “amigos autênticos” de Menard, reivindicando para seu grupo exclusividade sobre a obra do escritor morto. Em última instância, trata-se de garantir algum prestígio, por isso a manifestação de rivalidade em relação à Madame Henri Bachelier, que parece disputar com o círculo literário do narrador o espólio intelectual, talvez modesto (a julgar pelo conjunto da obra), de Menard. Além de denegrir o catálogo da baronesa, chamando-o de “falaz” e rebaixando o público ao qual se destina, o narrador ainda tem a delicadeza de omitir de seu próprio catálogo os sonetos “circunstanciales” que Menard dedicou ao “hospitalario, o ávido, álbum de Madame Bachalier” (p. 45). No último parágrafo do conto, o narrador reserva mais uma alfinetada à baronesa, dizendo que o prodigioso esforço de Menard em reescrever Dom Quixote possibilita que se leia “Le jardin Du Centaure de Madame Henri Bachelier como si fuera de Madame Henri Bachelier” (p. 55), insuflando dúvidas a respeito da autoria do livro (e como não se lembrar da passagem de Dom Casmurro em que o narrador justifica o título do livro com base no apelido que lhe dera o poeta do trem? — “O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto”).

O narrador de “Pierre Menard” representa um perfil sócio-psicológico definido: o do homem de letras dependente do favor dos poderosos. Como tal, está disposto a compensar a consciência da precariedade de sua posição com expedientes que lhe preservem o orgulho e rendam alguma satisfação subjetiva, a despeito das circunstâncias criadas por sua situação de dependência. O favor consiste num mecanismo de dominação social destinado a preservar a autoestima do favorecido, à medida que este enxergue naquele uma forma de reconhecimento de seu valor pessoal[3]. O narrador parece se valer desse mecanismo ao exibir como credenciais o aval da baronesa de Bacourt e da condessa de Bagnoregio. Entretanto, ele não perde de vista as conveniências por trás da benevolência da condessa, nem deixa de mencionar a origem possivelmente escusa dos recursos empregados (dinheiro, podemos supor, advindo das desinteressadas manobras de seu esposo). O narrador se agarra ferozmente a seu orgulho, o que talvez explique o prazer com que ele espalha insinuações sobre a conduta de seus benfeitores. Ridicularizar seus benfeitores sem que eles percebam, enquanto finge louvá-los, eis uma forma de afirmar sobre eles uma superioridade intelectual. Inclusive, a retórica empolada verificada em certos trechos, repleta de clichês, pode ser compreendida como uma maneira de assegurar o reconhecimento imediato de um público para o qual a cultura possui um valor meramente ornamental. A dinâmica de classes sociais apresentada na trama funciona como vetor de configuração dos elementos da composição literária, ditando inclusive os traços estilísticos da obra.

Além de preconceituoso, bajulador e cínico, o narrador é hipócrita, fingindo defender publicamente a conduta de pessoas cujo comportamento intimamente condena. É essa figura que nos relata o feito extraordinário de Pierre Menard; contamos apenas com sua palavra como garantia da milagrosa reescritura dos fragmentos do Dom Quixote. Isso já seria o suficiente para que lêssemos seu relato com reservas, mas ainda é necessário questionar: o narrador teria algum interesse na história contada? Obteria alguma vantagem mentindo? Como vimos em relação à diatribe com Madame Bachelier, o narrador procura vincular-se à imagem de Pierre Menard com a finalidade de tirar uma casquinha de seu prestígio literário. No entanto, conforme a relação da obra visível de Menard permite supor, esse prestígio não há de ser dos maiores, dado o volume e a relevância da obra. Mais vantajoso então seria atribuir a Menard a execução de uma obra miraculosa e sem precedentes, “interminablemente heroica” e “tal vez la más significativa de nuestro tiempo” (p. 45). Claro, estou especulando. Mas o fato é que, mesmo descontando os prováveis interesses que o narrador possa ter nos fatos contados, ainda assim não teríamos motivos para confiar em seu relato, devido ao caráter duvidoso apresentado por ele desde o primeiro parágrafo da narrativa.


Pierre Menard
           
Se precisamos nos prevenir quanto ao caráter do narrador, algo semelhante acontece com o protagonista da história. No prólogo de Ficciones, Borges afirma que a listagem das obras de Menard serve como um “diagrama de su historia mental” (p. 2). Como não estou capacitado para avaliar em profundidade o significado de todas essas obras, nem é este o objetivo deste trabalho, satisfaço-me em apontar algumas delas, tentando delinear alguns traços do caráter de Menard:

e) Un artículo técnico sobre la posibilidad de enriquecer el ajedrez eliminando uno de los peones de torre. Menard propone, recomienda, discute y acaba por rechazar esa innovación.
(...)
p) Una invectiva contra Paul Valéry, en las Hojas para la superación de la realidad de Jacques Reboul. (Esa invectiva, dicho sea entre paréntesis, es el reverso exacto de su verdadera opinión sobre Valéry. Este así lo entendió y la amistad antigua de los dos no corrió peligro.) (pp. 43-4)

Estas amostras permitem ver que Menard não tinha problemas em exprimir ideias que não correspondiam a sua verdadeira opinião, além de indicar uma facilidade em defender, com o mesmo empenho, pontos de vista opostos. A respeito disso, páginas adiante, o narrador menciona a “casi divina modestia de Pierre Menard”, que consistia justamente em “su hábito resignado o irónico de propagar ideas que eran el estricto reverso de las preferidas por él” (p. 52). Numa nota de rodapé à lista de suas obras, ficamos sabendo que Menard também era dado a brincadeiras que podiam gerar equívocos entre os ouvintes:

¹ Madame Henri Bachelier enumera asimismo una versión literal de la versión literal que hizo Quevedo de la Introduction à la vie devote de san Francisco de Sales. En la biblioteca de Pierre Menard no hay rastros de tal obra. Debe tratarse de una broma de nuestro amigo, mal escuchada. (p. 45)

Tal referência, além de servir de pretexto para que o narrador menospreze mais uma vez o catálogo de Madame Bachelier, traz um dado interessante. Como não foi encontrado nenhum rastro da transcrição de Quevedo na biblioteca do escritor, o narrador sugere que tudo não tenha passado de uma troça. Entretanto, também não há qualquer vestígio da reescritura de Dom Quixote, a não ser o produto final: os nono e trigésimo oitavo capítulos da primeira parte do romance de Cervantes, além de um fragmento do capítulo vinte e dois, idênticos, linha por linha, ao texto original. Isso porque, apesar do rigoroso método que estabeleceu para cumprir sua tarefa — que, segundo o trecho de uma carta sua, transcrita pelo narrador, consistia em “ensayar variantes de tipo formal o psicológico” para depois “sacrificarlas al texto original y a razonar de un modo irrefutable esa aniquilación” (p. 50) —, Menard decidiu “perder” voluntariamente os esboços de sua obra, tanto que o narrador se queixa: “En efecto, no queda un solo borrador que atestigüe ese trabajo de años” (p. 47). Ora, se a ausência de rastros na biblioteca do escritor é motivo suficiente para que o narrador descarte a existência da transcrição da transcrição de Quevedo, o que atesta a veracidade da “obra invisível” de Menard, a não ser algumas páginas absolutamente idênticas ao original cervantino? O narrador, portanto, emprega dois pesos e duas medidas.

Em outra nota de rodapé, o narrador afirma recordar-se dos cadernos quadriculados de Menard, que este costumava queimar em suas caminhadas, fazendo com eles “una alegre fogata” (p. 54). Analisando friamente, tudo o que temos são as palavras de um narrador nada confiável e as cartas deixadas por um escritor que tinha a “divina modéstia” de sempre dizer o contrário do que pensava. Como narrador e protagonista mentem de maneira sistemática, não há como saber com certeza se os eventos narrados de fato aconteceram. Tudo não passaria de uma fraude? Impossível afirmar, mas é provável. Para aquilatar o perfil de Menard, passemos mais uma vez os olhos sobre a lista de suas obras:

q) Una “definición” de la condesa de Bagnoregio, en el “victorioso volumen” — la locución es de otro colaborador, Gabriele d’Annunzio — que anualmente publica esta dama para rectificar los inevitables falseos del periodismo y presentar ‘al mundo y a Italia’ una auténtica efigie de su persona, tan expuesta (en razón misma de su belleza y de su actuación) a interpretaciones erróneas o apresuradas.
r) Un ciclo de admirables sonetos para la baronesa de Bacourt (1934). (p. 45)

Menard está envolvido na mesma rede de interesses que o narrador do conto, rendendo homenagem às duas caridosas damas da nobreza. Entretanto, isso não devia representar grandes problemas para ele, que parece manifestar um talento natural para a dissimulação e para a volubilidade. Não devemos confundir tal volubilidade com aquela que Roberto Schwarz identifica no narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas. A volubilidade de Brás Cubas está relacionada com a situação das elites brasileiras de seu tempo, que aderiam à ideologia política de prestígio na época, o liberalismo, ao mesmo tempo em que se beneficiavam da exploração do trabalho escravo. Conforme as necessidades e as conveniências, eram liberais e escravocratas, concomitantemente (SCHWARZ, 2000, pp. 35-40). Além disso, numa sociedade em que a maior parte da população vivia em condição servil ou dependia diretamente da autoridade pessoal dos proprietários, estes acabaram desenvolvendo uma larga margem de manobra para seu arbítrio (Idem, ibidem: p. 88-9). Mas não é essa a volubilidade que constatamos em Pierre Menard. Sua volubilidade se parece mais com o traquejo de José Dias, o agregado culto de Dom Casmurro, obrigado a se adaptar constantemente às condições ditadas pelos donos da casa, numa espécie de volubilidade reflexa e defensiva, que tem sua origem no capricho dos senhores[4].

Ao analisar a produção especificamente literária de Menard, constatamos que, desconsiderando as obras circunstanciais e de feição puramente encomiástica (o perfil da condessa de Bagnoregio, um círculo de sonetos dedicados a baronesa Bacourt e aqueles incluídos no álbum de Madame Bachelier), resta apenas um único soneto, publicado em duas versões no ano de 1899 (p. 42), além de dois trabalhos de tradução e uma transposição de Cimetière marin, de Valéry, em versos alexandrinos (pp. 43-4). Grande parte do gênio literário de Menard estava comprometida em agradar os poderosos; a outra, engajada em exprimir incessantemente o pensamento de outros autores. Portanto, podemos discernir a imagem de um artista cuja expressão individual caiu totalmente refém de suas conveniências extraliterárias, a ponto de se tornar um mero reprodutor, quiçá talentoso, de ideias que não são as suas. Nesse sentido, sua autoimposta tarefa de reproduzir o Dom Quixote de Cervantes, palavra por palavra, parece representar a situação, elevada ao absurdo, de alguém que, absolutamente absorvido por interesses alheios, tornou-se incapaz de expressar suas próprias ideias. Menard deixaria de ser o arranjador literário de ideias alheias para reproduzir ipsis litteris o discurso consagrado de um outro.

O empenho de Pierre Menard em levar a cabo sua abnegada missão (ou em forjar tê-la levado a cabo) poderia ter como objetivo reservar para si alguma glória numa carreira literária não muito notável, em nome da qual a personagem precisou se sujeitar ao jogo de interesses comandado por figuras como a condessa de Bagnoregio. Talvez a provável fraude tivesse como objetivo compensar os parcos resultados obtidos a um preço muito caro: a total eliminação de sua autonomia de pensamento e expressão, que redunda numa eliminação também de sua individualidade autoral.


O simbolista de Nîmes

Até agora, um elemento da caracterização do protagonista foi deixado de lado; segundo as palavras do narrador, Menard é um “simbolista de Nîmes, devoto esencialmente de Poe, que engendró a Mallarmé, que engendró a Valéry” (p. 49). Tendo em vista tal nobre genealogia, vejamos o que ela representa para os resultados desta análise. O simbolismo, movimento literário surgido na França ao final do século XIX, integra um processo histórico de autonomização da arte que culminou no esteticismo, tendência da arte em se autocentrar, tomando a si própria como conteúdo e abdicando de representar a realidade social (BÜRGER, 2008, p. 108). Para entender como a arte atingiu esse estágio, é preciso levar em consideração as transformações que a ascensão da sociedade burguesa imprimiu ao desenvolvimento artístico.

Tradicionalmente, a arte desempenhava uma série de funções sociais, como, por exemplo, no culto religioso ou nas formas cortesãs de sociabilidade. Nesse contexto, a arte estava ligada ao clero e à nobreza pela instituição do mecenato, devendo atender às expectativas e aos objetivos das classes que a patrocinavam. Com a ascensão da burguesia e a organização da sociedade de consumo, as obras de arte passaram a estar à disposição do mercado, que, além de levá-las a um público maior, ainda se tornou fonte de renda para os artistas, livrando-os de sua dependência em relação à corte e à Igreja. Essa sujeição da arte ao mercado propiciou que ela se desvinculasse de suas tradicionais funções na sociedade, criando para ela uma demanda específica (HABERMAS, 2003, pp. 46-56).

No plano da Filosofia, essa transformação se fez acompanhar por reflexões que reivindicavam para a arte um domínio autônomo — o estético —, apartado das questões de ordem prática ou intelectual. Assim, o objetivo da obra de arte não seria mais instruir (como diziam as poéticas clássicas), mas apenas deleitar, propiciando uma fruição desinteressada; a arte deveria tão somente produzir beleza, o que seria um fim em si mesmo. Embora desde o começo da Idade Moderna já houvesse reflexões nesse sentido, foi durante o Iluminismo que tal concepção ganhou força[5], encontrando em Kant seu principal formulador. Em sua Crítica da faculdade do juízo, Kant descreve o belo como algo capaz de comprazer “independente de todo interesse”, diferentemente do agradável, que satisfaz os sentidos e responde a inclinações pessoais, e do bom, que expressa conformidade a uma finalidade prática, conceitualmente definida. Por um lado, o belo não satisfaz nem deixa insatisfeito (requisitando uma atitude puramente contemplativa), e possui uma validade universal, embora diga respeito a uma operação mental subjetiva, impossível de ser atingida por meio dos conceitos; por outro, não possui qualquer finalidade, encontrando em si mesmo seu próprio fim (KANT, 2008, pp. 49-61). Portanto, o belo seria o objeto de uma fruição “pura e desinteressada”, sendo “interesse” definido como o apreço por algo que satisfaz nossas inclinações individuais ou que atende às necessidades de uma finalidade prática (extraestética, portanto) (Idem, ibidem: pp. 49-52).

Contudo, tanto esse processo histórico de autonomização quanto sua formulação teórica só resultaram no esteticismo a partir do momento em que a arte, alijada de suas funções tradicionais, abandona a representação da realidade social, passando a se ocupar de si mesma, de suas técnicas e procedimentos, ou do mundo subjetivo do artista, reduzido ao solipsismo. Nesse sentido, o simbolismo, definido por Edmund Wilson (s.d.) como “uma tentativa, através de meios cuidadosamente estudados — uma associação de ideias, representada por uma miscelânea de metáforas — de comunicar percepções únicas e pessoais” (p. 22), pode ser considerado um momento chave do esteticismo em literatura, para o que contribui o total desprezo que, via de regra, o poeta simbolista nutria em relação à realidade empírica e à vida cotidiana (BALAKIAN, 2007, p. 67). Para transmitir suas experiências irredutivelmente pessoais, era preciso que o poeta inventasse uma linguagem única, desfigurando a linguagem comum ao tentar obter dela as sugestões mais sutis e as imagens mais sofisticadas (WILSON, op. cit.: 45).

Tal aspecto do simbolismo pode ser entendido como uma reação à democratização da linguagem literária, decorrente da conversão da obra em mercadoria. Ian Watt descreve como o romance — sob o impacto do surgimento de um público consumidor de literatura decorrente da organização do mercado editorial — tornou-se um gênero de destacada importância na Inglaterra do século XVIII. Destinado a um público mais amplo, originário dos estratos médios da população urbana, o romance prescindia das convenções dos gêneros tradicionais, que supunham uma educação formal erudita, para privilegiar uma linguagem mais corrente e temas relacionados à vida do homem comum, burguês (WATT, 1990, p. 45). O simbolismo, ao contrário, manifestou franca hostilidade à sensibilidade do homem comum, procurando instituir uma espécie de aristocracia espiritual. Em última análise, tratava-se de assegurar a dignidade da literatura, seu caráter desinteressado, diante das necessidades criadas por uma lógica editorial mercantilista ou mesmo por uma disseminação da palavra escrita, que, por meio da imprensa, passou a atingir um maior espectro da sociedade.

O desejo de uma linguagem poética pura, livre das exigências de comunicabilidade e dos resíduos da experiência cotidiana, transparece numa das obras de Menard, “una monografía sobre la posibilidad de construir un vocabulario poético de conceptos que no fueran sinónimos o perífrasis de los que forman el lenguaje común, ‘sino objetos ideales creados por una convención y esencialmente destinado a las necesidades poéticas’” (pp. 42-3). Esse projeto coloca Menard em sintonia com os preceitos da escola literária à qual, segundo o narrador, ele estaria ligado. Ao que tudo indica, no entanto — e nisso residiria a engenhosidade de Borges neste conto —, para que Menard possa garantir espaço para suas atividades, foi preciso que ele se comprometesse com os interesses de figuras remanescentes da nobreza. Há uma ironia histórica nisso: embora a organização da sociedade burguesa em sociedade de consumo tenha sido o que permitiu à arte desvincular-se de suas funções tradicionais, atingindo um estatuto autônomo, Pierre Menard, em nome desta mesma autonomia e contra os efeitos da mercantilização da literatura, associa-se, por meio de uma espécie informal de mecenato (o favor), à nobreza, classe da qual a arte precisou se desvincular em seu processo de emancipação. Contudo, mesmo nesse arranjo o capital empresarial se faz presente pela união das nobrezas nacionais europeias com o capitalismo internacional, como sugere o casamento da condessa de Bagnoregio com Simón Kautzsch, da Pensilvânia, estado norte-americano de forte tradição industrial. É interessante que o narrador, ao falar de Kautzsch, omita as reais atividades da personagem, preferindo dar destaque a sua suposta obra filantrópica, de abrangência internacional e que deixa uma série de vítimas pelo caminho. Talvez o narrador enxergue vulgaridade nas atividades do marido da condessa, pelo quanto de cálculo e interesses econômicos elas introduzam no círculo das relações sociais representados no conto.

Num exercício formidável de volubilidade, Menard precisa conciliar o caráter desinteressado de seu trabalho com a adesão aos interesses daqueles que o viabilizam, permitindo que o poeta não precise se sujeitar às exigências do mercado ou da sociedade como um todo. Inclusive, a negação de qualquer consequência social da atividade artística se faz perceber na improdutiva tarefa de reescrever Dom Quixote, que nada acrescenta ao mundo nem mesmo à tradição literária. É como se Menard dedicasse todas as suas forças à execução de um esforço absolutamente fútil, procurando ressaltar sua independência em relação a qualquer necessidade prática (mas, para tanto, é preciso que ele se comprometa ideologicamente com os objetivos daqueles que, financeiramente, possibilitam esse esforço). Em suma, na tentativa de conciliar compromissos antagônicos, o simbolista de Nîmes se reduz ao mutismo de repetir incessantemente as palavras de outrem.


Considerações finais

Como venho fazendo desde o começo deste artigo, gostaria de salientar mais uma vez que meu objetivo não foi provar que o enredo de “Pierre Menard” consiste na representação de uma farsa, mas, sim, que a trama foi construída de tal maneira a nos fazer colocar em dúvida o que está sendo narrado. Até onde sei, esse é um aspecto relevante do texto que até agora parece ter sido ignorado ou subestimado pela crítica, talvez encantada pela magia intertextual prometida pelo conto, o que facilitaria a circunscrição de sua análise ao âmbito da tradição literária. Ao contrário disso, meu objetivo foi desvelar a rede de interesses sociais que a obra configura, acusando o complexo jogo de refrações que distingue a perspectiva autoral das de seu narrador e suas personagens.

Não é demais lembrar que, assim como acontece com o ensaio escrito por Pierre Menard a respeito de Paul Valéry, a avaliação que o poeta simbolista faz de Dom Quixote corresponde ao reverso exato das opiniões do autor. Para Menard, que não consegue imaginar o universo sem os versos de Poe, o romance de Cervantes é “contingente” e “não necessário” (p. 49), enquanto, para Borges, o mesmo livro ocupa uma posição central na literatura ocidental, tanto que a ele o escritor dedica algumas de suas melhores reflexões[6]. Sobretudo, o intuito de Menard em reescrever Dom Quixote é um caso inflacionado daquilo o que Borges (1998), num de seus ensaios, chamou de “superstição do estilo” (pp. 214-7). Segundo tal ensaio, o que teria assegurado a Dom Quixote sua perenidade seria o caráter descuidado de sua linguagem (segundo certos preceitos de perfeição estilística), resultante da prioridade concedida por Cervantes aos aspectos propriamente ficcionais do texto. Ao passo que obras literárias exaustivamente trabalhadas resistem mal às mudanças da linguagem no tempo e perdem muitas de suas qualidades durante a tradução, “Quixote ganha batalhas póstumas contra seus tradutores e sobrevive a toda versão descuidada”, do que se conclui: “a página de perfeição, a página na qual nenhuma palavra pode ser alterada sem prejuízo, é a mais precária de todas” (Idem, ibidem: p. 216). Portanto, o objetivo de Menard de “producir unas páginas que coincidieran — palabra por palabra y línea por línea — con las de Miguel de Cervantes” (p. 47) é por princípio uma negação daquilo que constituiria, para Borges, o real valor literário do texto cervantino, uma total redução do romance à dimensão material de sua linguagem, o que incorreria num fetichismo da palavra.

Por sobre as palavras do narrador, um nível acima no plano da composição literária, sentimos pairar uma consciência que tensiona os elementos da obra, oferecendo um enquadramento irônico para os acontecimentos que integram o enredo. Assim, podemos perceber que há todo um empenho em deslindar o complexo das relações de classe configurado, que, uma vez trazido à luz, repõe os termos nos quais a trama é formulada. Se, conforme leitura corrente, Pierre Menard funciona como uma alegoria da situação do escritor dos países de origem colonial diante da tradição literária europeia — obrigado a reorganizar os elementos desta a partir de seu horizonte histórico e cultural específico —[7], é trabalho ainda por fazer analisar o modo como o deslocamento irônico da narração, com seu jogo de refrações, prepara o debate.

Outro desdobramento possível, levando em conta as consequências das conclusões aqui encontradas, seria pensar no conto como uma crítica à dimensão ideológica da concepção moderna de autonomia estética. O conto mostra como o caráter aparentemente desinteressado da atividade artística de Menard está embaraçado numa teia de interesses econômicos e sociais que lhe dá sustentação. Dessa maneira, a obra oferece a redução particularizadora de uma situação de alcance mais geral, pois, como Peter Bürger aponta, o desligamento da arte esteticista das condições materiais nas quais ela está inserida — na medida em que a obra de arte recusa o conjunto de referências que a lastreiam em seu contexto de origem — resulta justamente de tais condições[8], como espero ter demonstrado, de forma sucinta e simplificada, na terceira parte deste artigo. Se assim é, creio que seria necessário reexaminar a produção narrativa de Borges, averiguando se “Pierre Menard...” representa um caso isolado ou, se ao contrário, a denúncia da dimensão ideológica do esteticismo está presente em outros de seus textos narrativos, o que poderia significar uma inflexão nos estudos da obra do escritor argentino, frequentemente louvado por seus jogos de espelho metalinguísticos e seus labirintos de referências intertextuais, dos quais nem sempre se logrou tirar algum potencial crítico.


Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W. “Palestra sobre lírica e sociedade”. In: Notas de literatura I. Tradução Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, pp. 65-89.

BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Tradução José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

BALAKIAN, Anna. O simbolismo. Tradução José Bonifácio. São Paulo: Perspectiva, 2007.

BORGES, Jorge Luis. Ficciones. Madrid: Alianza Editorial, 1997.
———— . Obras completas. São Paulo: Globo, 1998. Vol. I.
———— . Outras inquisições. Tradução Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

HABERMAS, Jünger. Mudança estrutural na esfera pública. 2ª ed. Tradução Flávio R. Khote. Rio de Janeiro: tempo Brasileiro, 2003.

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 2ª ed. Tradução Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978, pp. 11-28.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
———— . Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
———— . “A poética envenenada de ‘Dom Casmurro’”. In: Duas meninas. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 7-41.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009

WATT, Ian. A ascensão do romance. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

WILSON, Edmund. O castelo de Axel. Tradução José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, s.d.





[2] BORGES, Jorge Luis. “Pierre Menard, autor del Quijote”. In: Ficciones. Madrid: Alianza Editorial, 1997, pp. 41-55. Todas as citações da obra se referem a esta edição.
[3] Para uma análise de como funciona tal mecanismo no contexto social do escravismo brasileiro de meados do século XIX, cf. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 20. Nas próximas partes deste trabalho, especificaremos o contexto social no qual se dá a história de “Pierre Menard”.
[4] Sobre José Dias, Schwarz (2000) afirma: “(...) note-se que o agregado leva o amor dos formalismos à última consequência, que é a descrença nas formas elas mesmas. Assim, ele salta de uma a outra conforme a sua conveniência e sem constrangimento, desobrigado de consistência, com desapreço vertiginoso pela dignidade que cultua, o que lhe proporciona uma espécie de liberdade de movimento diante de seus senhores”. (p. 23).
[5] Para uma descrição sintética desse processo, cf. TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, pp. 45-60.
[6] Cf. BORGES, Jorge Luis. “Magias parciais do ‘Quixote’”. In: Outras inquisições. Tradução Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 61-5. Em tal ensaio, Borges identifica na grande obra de Cervantes a origem de alguns procedimentos que caracterizarão sua própria escrita.
[7] Cf. SANTIAGO, Silviano. “O entre-lugar do discurso latino-americano”. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978, pp. 11-28.
[8] BÜRGER, op. cit.: p. 101.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Impassibilidade, frigidez e masoquismo: uma leitura erótica da poesia parnasiana de Francisca Júlia

Detalhe de "Musa Impassível", estátua em mármore de Victor Brecheret para o túmulo de Francisca Júlia.

Texto apresentado no XV Congresso de Estudos Literários da UFES

Francisca Júlia da Silva foi uma poetisa da segunda geração do parnasianismo brasileiro, nascida em Xiririca — atual Eldorado — no interior paulista, e incluída por Mário de Andrade entre os cinco “mestres do passado” em seu necrológio à poesia parnasiana publicado em 1921, no Jornal do Comércio. Mesmo tendo deixado uma obra razoavelmente pequena, angariou considerável prestígio literário por seus poemas impressos em jornais tanto de São Paulo quanto do Rio de Janeiro, chamando a atenção de vários intelectuais de destaque da época. A publicação de seus dois livros principais, Mármores e Esfinges (este último uma espécie de versão revista e ampliada, com algumas supressões, do primeiro), apenas confirmou sua posição como um dos nomes mais aclamados da poesia brasileira do final do século XIX e início do XX. Para muitos, Francisca Júlia foi, entre nós, quem mais fielmente seguiu o modelo do parnasianismo francês (RAMOS, 1961, p. 28), enquanto outros poetas, em geral, tendiam a amaneirar e a temperar os rígidos preceitos da escola literária com o passar do tempo. Apesar disso, a poetisa paulista também flertou com o simbolismo na vertente mística de sua obra.

Desde o princípio, uma das características que mais chamou a atenção da crítica em sua obra foi certo acento másculo de sua poesia, um estilo que poderíamos definir como “viril”. A publicação do soneto “Paisagem” em A Semana, a 13 de outubro de 1894, levou Artur Azevedo, Valentim Magalhães, Araripe Júnior e Lúcio Mendonça a duvidarem que o autor do poema fosse realmente uma mulher. O mais incrédulo de todos, porém, foi o crítico e poeta João Ribeiro, que, imaginando tratar-se de um poema de Raimundo Correia, respondeu à “poetisa imaginária” com uma espécie de pastiche do estilo utilizado na composição do soneto. Desfeito o equívoco, o crítico escreveria o prólogo de Mármores, de 1895.

Em tal prólogo, após fazer o mea culpa em relação a sua leitura inicial da obra de Francisca Júlia — e se defender das acusações, segundo ele injustas, de que “só via nas mulheres as aptidões inferiores das cozinheiras” (SILVA, 1902, p. I) —, João Ribeiro afirma: “E todos nós inquiríamos se era verdadeiramente de mulher aquele coração enérgico e possante, capaz de propelir o sangue de um milhão de artérias” (Idem, p. III). Isso porque os versos da poetisa paulista destoavam da “banalidade vulgar e desolante do comum das poesias escritas outrora por mulheres” (Idem, idibem, p. IV), caracterizada por uma “languidez antipática e irracional”, da parte de meninas “rubicundas e gordas (...) algumas até glutonas” que “andavam a chorar pelos cantos da casa e a morrer em cada verso” (Idem, ibidem, pp. IV-V).

Em outros termos, o que João Ribeiro parece acusar em tal produção poética feminina é a permanência de certos lugares-comuns do romantismo, que há muito haviam caducado. Foi justamente essa visão lânguida e enfermiça da mulher que Carvalho Júnior combatera no soneto “Profissão de fé”, reunido no livro póstumo Parisina, de 1879. No soneto, o poeta declara seu ódio às “virgens pálidas, cloróticas” do romantismo, preferindo “a exuberância dos contornos,/ As belezas da forma, seus adornos,/ A saúde, a matéria, a vida enfim”. Some-se a isso o seguinte comentário de João Ribeiro: “Francisca Júlia tem pouco mais de vinte anos de idade. Sente-se a custo, às vezes, nas suas produções, a ternura dos verdes anos que só a adolescência é capaz de sugerir e realizar, porque a frieza clássica de seus versos é absoluta”, e percebe-se que o crítico, ele também poeta parnasiano, parece estar contrapondo a excelência artística da autora de Mármores ao público que, via de regra, era relacionado ao romantismo: mulheres e jovens, principalmente estudantes.

É nesse contexto que Francisca Júlia, mulher e ainda por cima na flor da idade, procura galgar os degraus mais altos da carreira literária. Numa carta de 1894, endereçada a Max Fleiuss, a poetisa evidencia como lhe calou fundo a crítica de Severiano de Rezende, quando da publicação de seu primeiro poema na imprensa. Severiano teria lhe dado o seguinte conselho: “Minha senhora, há ocupações mais úteis: dedique-se aos trabalhos de agulha” (RAMOS, op. cit., p. 6). Não é por acaso, portanto, que Francisca Júlia desenvolveu um estilo absolutamente contido, no qual se procura apagar qualquer traço de feminilidade. No afã de desvincular sua poesia dos estereótipos relacionados à condição feminina numa sociedade ainda muito atrelada aos valores patriarcais (fundamentados, segundo Gilberto Freyre, numa profunda especialização dos sexos — FREYRE, 2004, pp. 207-8), a autora de Esfinges acabou por elidir ou sublimar de sua obra a sexualidade em geral, ou ao menos foi isso que pretendeu fazer. Também não deve ter sido casual o fato de Francisca Júlia, depois de algum tempo, ter se afastado dos círculos literários para abraçar uma vida doméstica, assim como sua aproximação de uma poesia mística e devocional, mais de acordo com as expectativas que se tinha em relação ao papel da mulher na sociedade brasileira. O universo familiar pode ter se tornado inconciliável com sua persona pública e literária, projetada tanto em sua obra poética quanto entre os meios letrados. Mas isso tudo, é claro, são suposições. O que me interessa agora é mostrar como Francisca Júlia logrou obter esse estilo “másculo” de escrita que tanto surpreendeu seus contemporâneos.


Um estilo vigoroso


Pode-se dizer que há no parnasianismo um predomínio de aspectos descritivos sobre o lirismo, como destaca Mário de Andrade em relação a Castro Alves, que, segundo o autor de Macunaíma, foi uma espécie de precursor de nossos poetas parnasianos (ANDRADE, 1972, p. 120). Isto é, mais do que expressar estados psicológicos, importava apresentar da maneira mais nítida e exata possível as situações e os objetos que compõem o assunto do poema. Disso resulta a tão propalada objetividade parnasiana, segundo a qual o conteúdo era captado por uma perspectiva externa ao que está sendo representado, perspectiva essa que nem sempre chegava a se configurar como eu lírico. O extremo de tal tendência consistiria na ideia de impassibilidade, que preconizava o mais completo distanciamento dos planos da enunciação e do enunciado no que se refere ao teor emocional do que é narrado ou descrito. Tanto o mais excruciante sofrimento quanto a mais esfuziante das alegrias deveriam ser abordados por um mesmo tom analítico, equilibrado e racional.

Ocorre que tais preceitos de objetividade e impassibilidade (sobretudo o último) nunca foram rigorosamente respeitados no parnasianismo brasileiro, flanqueados que eram pelo pendor lírico de nossos poetas. Como afirma Manuel Bandeira: “(...) a diferença dos parnasianos em relação aos românticos está na ausência não do sentimentalismo, que sentimentalismo, entendido como afetação do sentimento, também existiu no parnasianismo, mas de uma certa meiguice dengosa e chorosa, bem brasileira aliás” (BANDEIRA, 2009, p. 100). Contudo, Francisca Júlia foi quem mais longe levou a obediência a esses preceitos, tornando-se a mais impassível de nossos parnasianos. Cabe questionar se isso não se deu porque a prescrição de impessoalidade lhe oferecia as circunstâncias para o apagamento de qualquer marca de fragilidade ou vulnerabilidade que poderia ser creditada a sua condição feminina.

A parte mais significativa da obra de Francisca Júlia — aquela propriamente parnasiana e que se limita, por um lado, pelos poemas iniciais (alguns dos quais refugados na preparação de Esfinges) e, por outro, pela poesia mais espiritualizada — caracteriza-se por um distanciamento olímpico da perspectiva estruturante do poema em relação ao assunto. Destacam-se nesse conjunto verdadeiros “quadros” e a composição de cenas sem a mínima interferência emocional do eu lírico. Isso não significa que, na poesia de Francisca Júlia, encontramos um tom neutro e anódino. Na realidade, há nela frequentemente um ímpeto retórico, como podemos perceber no primeiro quarteto do soneto “Os argonautas”:


Mar fora, ei-los que vão, cheios de ardor insano;
Os astros e o luar — amigas sentinelas —
Lançam bênçãos de cima às largas caravelas
Que rasgara fortemente a vastidão do oceano.[1]


Há uma tentativa de emprestar dramaticidade à cena, que é descrita de maneira dinâmica: “ardor insano” e “fortemente”, que evidenciam a energia e a coragem necessárias à superação das dificuldades, contrapõem-se a “amigas sentinelas” e “bênçãos”, que expressam a tranquilidade das altas esferas astrais, causando um efeito de contraste. Os homens se debatem freneticamente contra as forças da natureza, embora os astros, em sua calma inquebrantável, estejam a seu favor.

O expediente literário empregado nessa passagem é a hipotipose, que, na definição de Umberto Eco, constitui um conjunto variado de técnicas descritivas que têm como objetivo produzir, por meio da linguagem verbal, impressões visuais ao ouvinte ou leitor (ECO, 2003, pp. 170-1). Difere-a da mera descrição o fato de, com ela, o autor perseguir determinados efeitos artísticos, agindo sobre a sensibilidade estética dos receptores ao criar uma imagem vívida e sugestiva das situações e dos objetos representados. Francisca Júlia, ao lançar mão da hipotipose, mantém suspenso qualquer juízo subjetivo em relação ao que é descrito. Não há empatia, apenas a intenção de impactar o leitor com um estilo vigoroso, apelando para os sentidos e não para as emoções; tampouco há, em seus poemas, o convite a uma reflexão sobre as condições da existência humana.

E foi o estilo vigoroso da poetisa — caracterizado pela escolha de termos que expressam força, intensidade e movimento —, aliado a uma contenção emocional espartana, que surpreendeu seus contemporâneos justamente por se originar num “coração de mulher”, considerado mais terno e delicado. Impermeável ao drama humano e alheia à complicação psicológica, a vertente estritamente parnasiana da poesia de Francisca Júlia suscita inúmeras sensações no leitor, mas não permite a emoção; impressiona, mas não comove. É o ideal de poesia expresso no poema “Musa Impassível I”, no qual o eu lírico, ao mesmo tempo em que diz não querer que “um gesto sequer de dor ou de sincero luto” enfeie a face de sua musa, pede-lhe “Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,/ Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,/ Ora o surdo rumor de mármores partidos”. Vejamos, de agora em diante, como se dá a questão do erotismo ou da sensualidade em tal poesia.


A sensualidade em Francisca Júlia


A princípio, falar de erotismo em Francisca Júlia pode parecer uma impropriedade, pois os elementos eróticos de sua poesia, quando os há, aparecem quase sempre muito sublimados. A exceção está naqueles poemas em que é representado o nu feminino de acordo com as convenções do parnasianismo, como nos sonetos “Anfitrite” e “Rainha das águas”, este último dedicado a Alberto de Oliveira — autor de “Aparição nas águas” e de uma série de três sonetos dedicados a Afrodite, que parecem ter servido de inspiração ao poema de Francisca Júlia.

“Anfitrite” talvez seja o poema da poetisa em que a nudez é desvelada de maneira mais clara: “Surge, esplêndida e vem, envolta em áurea bruma,/ Anfitrite; e, a sorrir, nadando à tona d’água,/ Lá vai... mostrando à luz suas formas redondas,/ Sua clara nudez salpicada de espuma,/ Deslizando no glauco amículo das ondas”. Ainda assim, a nudez é sumária, genérica, dispensando detalhes e especificações, e a figura que deveria ser a central do poema, Anfitrite, aparece somente ao nono verso. A maior parte do poema, o que inclui os dois quartetos iniciais, foi gasta na criação da ambientação, na representação do cenário que serve de fundo à deidade nua, de modo que há um sutil deslocamento do motivo principal para o segundo plano.

Quando comparado aos poemas de Alberto de Oliveira que abordam tema semelhante, o soneto de Francisca Júlia revela uma grande diferença, pois, nos poemas de Oliveira, o corpo feminino, com riqueza relativa de detalhes, é o interesse central. Essa diferença se torna ainda mais patente em “Rainha das águas”, em que a figura feminina, no primeiro quarteto, é metonimicamente evocada apenas por sua boca e cabelos (“Mar fora, a rir, da boca o fúlgido tesouro/ Mostrando, e sacudindo a farta cabeleira, [...]”), sem ser sequer nomeada, para reaparecer apenas no último verso, com o sol refletindo na coroa que adorna a “cabeça real da bela soberana”. Toda a rainha das águas, que dá título ao poema, resume-se a isso: o “fúlgido tesouro” da boca, a “farta cabeleireira” e a “cabeça real”. Entre os dois primeiros versos e o último (por onde se espalham os parcos indícios da soberana), a longa descrição de uma cena marítima. O corpo foi totalmente elidido, submerso.

Na obra de Francisca Júlia, há uma relutância geral com a sensualidade, da qual a elisão do corpo feminino é apenas uma manifestação. Para ficar ainda nos motivos marítimos, consideremos o poema “A ondina”, no qual a figura feminina, que corre nua na praia, com os cabelos soltos (mais uma vez, uma nudez genérica, sem detalhamento) é surpreendida por um monstrengo surgido das sombras, que começa a persegui-la, até que o mar a esconda em seu regaço. A sexualidade em Francisca Júlia, quando chega a se apresentar, é sempre de forma ameaçadora, neste caso, como uma possibilidade de estupro.

Em “A dança das centauras”, temos um grupo dessas criaturas mitológicas envolvido numa espécie de jogo marcial. Elas dançam e lutam com a brancura dos seios “pompeando à luz” e o “cabelo solto ao léu”, enquanto terçam armas. Não há qualquer conotação erótica em sua nudez e estamos numa atmosfera guerreira, até mesmo violenta. A partir do primeiro terceto, tais figuras amazônicas fogem em debandada pelo aparecimento de Hércules brandindo, com o “heroico braço”, sua “clava argiva” (imagem de evidente conotação fálica). É como se o célebre herói, símbolo máximo de força e virilidade entre os gregos antigos, rompesse o círculo de uma feminilidade autocentrada, que se faz autônoma em relação ao sexo masculino pela incorporação de características deste (não por acaso, centauros são seres híbridos). O contato com o sexo oposto, que suspende o jogo e a luta, isto é, o clima de liberdade e coragem, não pode ser sentido senão como promessa de aniquilamento. A introdução da presença masculina no poema vem desfazer a fantasia de um universo feminino autodeterminado. Nada mais compreensível considerando o contexto histórico-social de Francisca Júlia, no qual o poder estava distribuído desigualmente entre os sexos e a mulher mantinha-se sujeita à autoridade patriarcal.  Mas ainda mais do que isso: o surgimento de Hércules, repondo os lugares de gênero, promove a sexualização de tal universo, sustando o aparente recato da nudez das centauras. Elas fogem certamente dos braços de Hércules, notório matador de monstros, mas será que não fogem também de seus olhos, por meio dos quais são obrigadas a reconhecer a dimensão sexual de seu próprio corpo?

É interessante perceber que tanto “A ondina” quanto “A dança das centauras” colocam em jogo o tema da fuga. Foge-se, nos dois casos, de uma presença masculina ameaçadora que traz consigo a sombra de uma sensualidade que se pretendia manter afastada. Os poemas colocam em jogo, em suma, o medo do sexo.


A mulher-carrasco
           

No que se refere às personagens femininas da obra de Francisca Júlia, as mais peculiares são aquelas encontradas nos dois sonetos da série “Musa Impassível” e em “Vênus”. No primeiro “Musa Impassível”, há um clamor para que a musa mantenha a mais glacial indiferença diante do sofrimento humano:


Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.


Já no segundo soneto da série, o eu lírico pede à musa para que o transporte aos “Olímpicos-Lares”, “onde os Deuses pagãos vivem eternamente” e de onde se pode ver “os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo”. Mas o que nos interessa é a evocação: “Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,/ Gela o sorriso ao lábio e às lágrimas estanca!”. “Sobrecenho austero”, “olhar de pedra” e sorriso gelado são as características dessa figura feminina nada maternal, insensível e absorta com os vultos grandiosos da literatura ocidental e da mitologia grega. O mais curioso, todavia, é quando tais características são atribuídas, num outro soneto, também à deusa Vênus, justamente a deusa do amor e da beleza entre os antigos:


Branca e hercúlea, de pé, num bloco de Carrara,
Que lhe serve de trono, a formosa escultura,
Vênus, túmido o colo, em severa postura,
Com seus olhos de pedra o mundo inteiro encara.

Um sopro, um quê de vida o gênio lhe insuflara;
E impassível, de pé, mostra em toda a brancura,
Desde as linhas da face ao talhe da cintura,
A majestade real de uma beleza rara.

Vendo-a nessa postura e nesse nobre entono
De Minerva marcial que pelo gládio arranca,
Julgo vê-la descer lentamente do trono,

E, na mesma atitude a que a insolência a obriga,
Postar-se à minha frente, impassível e branca,
Na régia perfeição da formosura antiga.
           

Vênus também é impassível, feito a musa, e, também como esta, possui “olhos de pedra”. Sua postura é severa, seu porte é majestático e sua atitude, insolente. Não há nada de amoroso ou de sedutor nessa deusa, à qual veio se colar a imagem da deusa da guerra Minerva. Se Vênus nasce do esperma de Urano derramado nas águas do mar, surgindo já adulta em sua radiante nudez, Minerva nasce da cabeça de Júpiter, também adulta, porém vestida de armadura (e, além disso, permanece virgem). Há um simbolismo contraditório na Vênus de Francisca Júlia. Como se não bastasse, ela ainda é classificada, logo de saída, como “hercúlea”. Se em “A dança das centauras” Hércules aparece como o princípio masculino que vem ameaçar um universo feminino fechado sobre si mesmo, em “Vênus” é esse próprio princípio que é incorporado à imagem feminina. Menos deusa do que estátua, menos amante do que guerreira, ela é andrógina e, talvez por isso mesmo, autossuficiente.

A Vênus de Francisca Júlia remete a outra Vênus: Wanda, personagem de A Vênus das peles, de Sacher-Masoch; tanto ela quanto a Musa Impassível apresentam elementos que as aproximam da mulher-carrasco na fantasia masoquista. Segundo Delleuze, em Sacher-Masoch: o frio e o cruel, o que define a mulher-carrasco do masoquismo não é seu prazer em causar sofrimento — ao contrário do que afirma a concepção tradicional que vê sadismo e masoquismo como perversões complementares —, mas sua capacidade de fazer sofrer sem ceder à compaixão; “sem piedade, mas sem ódio”, nas palavras de Dragomira, heroína de A pescadora de almas, outro romance de Masoch (apud DELLEUZE, 2009, p. 42). Na verdade, na obra de Masoch, uma mulher nunca se torna algoz cedendo à inclinação de sua natureza (o que a tornaria essencialmente sádica), mas por meio de um processo pedagógico no qual a vítima vai gradativamente adequando sua parceira a seus desejos autopunitivos.
           
Na porção estritamente parnasiana da obra de Francisca Júlia, vemos uma tentativa de afastar qualquer resquício de sensualidade como forma de elidir do texto marcas de feminilidade (sejam elas biológicas ou culturalmente construídas), tanto no estilo utilizado quanto no tratamento dado aos temas. Como consequência, há um recrudescimento de uma espécie de feminilidade intransitiva que se dá por meio da incorporação de traços convencionalmente atribuídos ao sexo masculino. Há uma recusa dos papéis de mãe e de amante, resultando na imagem de uma mulher fria, impedida de se afeiçoar, pois talvez haja a percepção de que são justamente os vínculos formados pelo afeto que ameaçam a autonomia da mulher; e isso num nível provavelmente inconsciente. Entretanto, a sensualidade abafada acaba retornando de forma enviesada, por meio de elementos sutilmente masoquistas.

Em “O mergulhador”, inspirado num tema de Murger, o poeta é comparado a um mergulhador que desce ao fundo do mar — no palácio das sereias — atrás da pérola mais rara para adornar os cabelos de uma “clara rainha”, que é quem lhe exige a façanha. Percebemos um jogo amoroso que consiste na sujeição a uma figura feminina majestática e caprichosa. Porém o exemplo mais explícito de verdadeiro gozo masoquista está no poema “Dona Alda”:


Hoje D. Alda madrugou. Às costas
Solta a opulenta cabeleira de ouro,
Nos lábios um sorriso de alegria,
Vai passear ao jardim; as flores, postas
Em longa fila, alegremente, em coro,
Saúdam-na: “Bom dia!”
D. Alda segue... Segue-a uma andorinha;
Com seus raios de luz o sol a banha;
E D. Alda caminha...
Uma porção de folhas a acompanha...
Caminha... Como um fúlgido brilhante,
O seu olhar fulgura.
Mas — que cruel! — ao dar um passo adiante,
Enquanto a barra do roupão sofralda,
Pisa um cravo gentil de láctea alvura!
E este, sob os seus pés, inda murmura:
“Obrigado, D. Alda.”


O cândido cravo agradece a pisadela dos mimosos pés de D. Alda. Um poema assim aparentemente tão pueril e gracioso acaba ganhando um insuspeitado tom perverso quando relacionado ao erotismo sufocado do restante da obra de Francisca Júlia.


Conclusão


Francisca Júlia firmou-se como poetisa prestigiada por meio de um estilo vigoroso e de uma rígida contenção emocional, o que lhe rendeu o epíteto de o mais parnasiano de nossos parnasianos, quem sabe a única a levar realmente a sério o princípio da impassibilidade. Para tanto, talvez tenha sentido a necessidade de restringir ao máximo o teor sensual de seus poemas, o que, como vimos, teve como consequência um sentimento do sexo como ameaça de aniquilamento e certo viés masoquista difuso. De certa maneira, sua trajetória literária esclarece em muitos pontos o momento histórico que o Brasil atravessava na passagem do século XIX para o XX.

Uma das principais características do século XIX foi a migração do capital para as grandes cidades, o que se fez acompanhar do deslocamento do patriarcado rural para a área urbana. Com o estabelecimento nas cidades, o estilo de vida das famílias patriarcais foi se modificando, o que incluía a situação das mulheres. O regime de reclusão no qual elas até então viviam foi gradativamente dando lugar a uma vida social mais variada, em que a cultura mantinha um importante papel como capital simbólico, como elemento distintivo entre classes. Com o decorrente aumento do nível de instrução das mulheres das famílias mais privilegiadas, abriu-se a elas a possibilidade de participar do ambiente cultural que existia nas cidades, embora o mesmo não se desse quanto à participação na política e na economia.

Como se sabe, a modernização dos modos — em grande parte tributária da importação do estilo de vida da burguesia europeia — não se fez acompanhar da modernização das estruturas econômicas e sociais do país, que se mantiveram basicamente as mesmas pelo menos até a década de 30 do século XX, de maneira que, por muito tempo ainda, sobreviveriam valores de nosso passado colonial, que davam forma e substância à mentalidade do patriarcado brasileiro. Nesse sentido, a obra de Francisca Júlia é o testemunho de um impasse: por um lado, estavam dadas as condições práticas para a participação das mulheres no âmbito da cultura, incluindo aí a literatura; por outro, persistiam valores que atribuíam à mulher uma posição inferiorizada, restringindo-lhe virtualmente o campo de ação. A solução encontrada pela poetisa paulista foi apagar de seu texto, tanto quanto possível, todas as marcas de feminilidade, escrevendo poemas que fossem “dignos de mãos masculinas”.


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[1] “Os argonautas”, assim como o soneto homônimo de Raimundo Correia (tradução de um poema de José María de Heredia), trata das Grandes Navegações do início da Era Moderna e não da tripulação da nau Argos, da história mitológica de Jasão. A referência clássica comparece aqui como uma analogia para conceder dimensão mítica às viagens de Vasco da Gama, Colombo, Pedro Álvares Cabral & Cia. Portanto, não há qualquer anacronismo na utilização do termo “caravelas”. 
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