terça-feira, 14 de julho de 2015

"Esparrama pelo chão", cazzo!


Texto originalmente publicado aqui.

Perdoem-me os leitores por abordar um assunto tão insignificante. Tratarei de batatas — mais especificamente, de batatinhas que nascem e se esparramam (ou não) pelo chão. Tenho ouvido desde o Ensino Médio que, na famosa trovinha, o segundo verso não seria “[se] esparrama pelo chão” — como tradicionalmente se declama —, mas, sim, “espalha rama pelo chão”. Segundo dizem, isso se deve ao fato de as batatas serem tubérculos e, sendo assim, crescerem debaixo da terra. O que se espalharia “pelo chão” seria a ramagem da batata. Confesso que, durante a infância e a adolescência, estive muitas vezes sobre batatas ainda na terra, mas nunca me ocorreu verificar se elas formam algum tipo de rama. Aí está um assunto para biólogos e agrônomos discutirem. Abordarei a questão por outra perspectiva.

Nunca soube qual é a origem do famigerado “espalha rama”. A figura mais proeminente a quem se atribui tal correção da trova é o professor Pasquale Cipro Neto, conhecido do grande público por oferecer dicas de Português em jornais, revistas e programas de televisão. Geralmente, o verso corrigido é apresentado ao lado de expressões populares que, com o passar do tempo, teriam sido “deformadas” na boca do povo. É o caso, por exemplo, de “cuspido e escarrado”, cuja versão original seria “esculpido em [mármore] carrara”, ou ainda “cor de burro quando foge”, que, originalmente, dizia-se “corro de burro quando foge”.

Entretanto, existe uma diferença aqui: enquanto os casos mencionados se referem ao gênero dos provérbios ou dos ditos populares, “Batatinha quando nasce” é uma trova (ou quadrinha) que, como tal, possui uma estrutura definida: estrofe de quatro versos, geralmente em redondilha maior (versos heptassílabos, isto é, de sete sílabas poéticas) e com rimas alternadas (esquema abab ou abcb). Vejamos:

Batatinha quando nasce
Esparrama pelo chão,
Menininha quando dorme
Põe a mão no coração.

Cuja escansão fica da seguinte maneira:

Ba/ ta/ ti/ nha/ quan/ do/ nas – 7 sílabas
Es/ par/ ra/ ma/ pe/ lo/ chão – 7 sílabas
Me/ ni/ ni/ nha/ quan/ do/ dor – 7 sílabas
Põe/ a/ mão/ no/ co/ ra/ ção – 7 sílabas

Além desta estranha “coincidência” no número de sílabas poéticas, há outra no que se refere aos acentos dos versos:

Ba/ ta/ ti/ nha/ quan/ do/ nas – as 3ª, 5ª e 7ª sílabas são tônicas
Es/ par/ ra/ ma/ pe/ lo/ chão – as 3ª, 5ª e 7ª sílabas são tônicas
Me/ ni/ ni/ nha/ quan/ do/ dor – as 3ª, 5ª e 7ª sílabas são tônicas
Põe/ a/ mão/ no/ co/ ra/ ção – as 3ª e 7ª sílabas são tônicas e a 5ª, subtônica.

Subtônicas são sílabas que, mesmo não sendo a tônica, possuem um som mais marcante do que as átonas mais tênues, que antecedem ou sucedem imediatamente a tônica. É um artifício muito comum contá-las como tônicas, a não ser no lugar das cesuras.

Escandindo os versos, utilizando o “esparrama pelo chão”, percebemos que existe uma regularidade métrica. O mesmo se dá quando consideramos a versão “se esparrama pelo chão”:

Sees/ par/ ra/ ma/ pe/ lo/ chão

Mais uma vez, encontramos um verso heptassílabo com acentos nas 3ª, 5ª e 7ª sílabas poéticas. Isto ocorre porque a última vogal de se e a primeira de esparrama se fundem numa mesma sílaba poética durante a pronúncia (fenômeno conhecido como crase); dizemos: “sesparrama pelo chão”. Agora vejamos “espalha rama pelo chão”:

Es/ pa/ lha/ ra/ ma/ pe/ lo/ chão

Eis um verso de 8 sílabas poéticas (octossílabo), com acentos nas 2ª, 4ª, 6ª e 8ª, o que foge do esquema métrico da trova, quebrando completamente seu ritmo. A partir disso, é possível deduzir que “[se] esparrama pelo chão” faz parte da versão original e que “espalha rama” é a distorção, a deformação, ao contrário do que se tem dito por aí.

O que houve foi uma “supercorreção”, quando se corrige algo que já estava correto. Provavelmente, alguém deduziu que, como as batatas crescem sob o solo, então o verso só poderia estar errado e tratou de adequá-lo ao sentido que julgou ser o mais correto. Quem quer que o tenha feito, caiu numa cilada boba: ignorou a função poética da linguagem, em que os significantes são mais importantes do que o significado, isto é, em que o como se diz é mais importante do que aquilo o que se quer dizer. Se há realmente alguma impropriedade em dizer que as batatas se espalham pelo chão, isso não tem importância, pois os versos da trova estão obedecendo a critérios sonoros, fônicos, e não botânicos. O ritmo da estrofe tem a primazia sobre a estrofe. Desafio qualquer um a estabelecer uma relação convincente de paralelismo lógico entre batatas nascendo no chão e meninas dormindo com a mão sobre o peito. As duas imagens são relacionadas na trova apenas por critérios que dizem respeito à dimensão rítmica da linguagem verbal.

Para não parecer que estou falando de um caso isolado, vejamos outras trovas de nossa cultura popular:

Se essa rua fosse minha,
Eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas de brilhante
Só p’ro meu amor passar.

Nessa rua tem um bosque,
Que se chama solidão,
Dentro dele mora um anjo
Que roubou meu coração.

Os versos são todos heptassílabos, com acentos nas 1ª, 3ª, 5ª e 7ª sílabas, sendo que, por vezes, a 5ª é subtônica.

Atirei o pau no gato,
Mas o gato não morreu,
Dona Chica admirou-se
Do berro que o gato deu.

Este é um exemplo interessante, pois o esquema métrico é formado por versos heptassílabos com acentos nas 3ª, 5ª e 7ª sílabas. O quarto verso, no entanto, possui os acentos nas 2ª, 5ª e 7ª. Solucionamos essa discrepância cantando “do berrô que o gato deu”, adequando a prosódia ao ritmo da trova.

Ou ainda:

O cravo brigou com a rosa
Debaixo de uma sacada,
O cravo saiu ferido,
A rosa, despedaçada.

Em que:

O/ cra/ vo/ bri/ gou/ co’a/ ro – 7 sílabas poéticas (acento nas 2ª e 5ª sílabas)
De/ bai/ xo/ deu/ ma/ sa/ ca – 7 sílabas poéticas (acento nas 2ª e 4ª sílabas)
O/ cra/ vo/ sa/ iu/ fe/ ri – 7 sílabas poéticas (acento nas 2ª e 5ª sílabas)
Ea/ ro/ sa/ despe/ da/ ça – 7 sílabas poéticas (acento na 2ª, sendo que tanto a 4ª quanto a 5ª sílabas podem ser contabilizadas como subtônicas).

Não há uma regularidade métrica tão estrita quanto nos outros exemplos, mas existe um paralelismo em que, considerando-se no quarto verso a quarta como a subtônica, temos um revezamento de versos heptassílabos com diferentes acentos, acompanhando a alternância das rimas: as rimas são cruzadas (abcb), assim como os versos com acentos nas 2ª e 5ª sílabas (digamos, x) se alternam com aqueles acentuados na 2ª e na 4ª, da seguinte forma: (xyxy), sendo que os versos rimados (b) são ambos y. A alternância de tipos de versos com o mesmo número de sílabas, mas com acentos diferentes, é comum nos sonetos parnasianos brasileiros, nos quais costumavam alternar os decassílabos heroicos (acentos nas 6ª e 10ª sílabas, às vezes na 2ª) com os sáficos (acentos nas 4ª, 8ª e 10ª sílabas poéticas).

Já em

Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar,
Vamos dar a meia volta,
Volta e meia vamos dar.

O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou,
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou.

... o esquema métrico é de versos heptassílabos com acentos nas 3ª, 5ª e 7ª sílabas, sendo a 5ª, por vezes, subtônica. A única exceção é o primeiro verso, com seis sílabas, acentuadas as 2ª e 4ª. A regularidade rítmica permite-nos supor que, orginalmente, o verso era “cirandinha, cirandinha”, que se encaixa perfeitamente no esquema do restante da canção, talvez reduzido para “ciranda, cirandinha” para eliminar a repetição desnecessária (uma questão de economia possível de ser observada com alguma regularidade quando estudamos fonética). A hipótese não é tão absurda porque a variação “cirandinha, cirandinha” é bem menos frequente, mas também pode ser ouvida em alguns lugares.

A questão é que, até a década de 1990, não se escutava essa história de “espalha rama”. O ônus da prova cabe a quem afirma que a tradição oral está errada. E como se poderia prová-lo? Simples, indo atrás das transcrições mais antigas da trova e verificando se os documentos registram “esparrama” ou “espalha rama”. Até que isto seja feito, não há real motivo para duvidar da versão que nos foi legada, pois ela se adéqua melhor a outros indícios verificáveis, como a estrutura própria das trovas. Não se trata, como possivelmente ocorre em “Ciranda, cirandinha”, de um verso que se adequava a um esquema métrico pré-estabelecido e que foi “descaracterizado” no uso corrente. Seria o oposto disso: um verso irregular que foi regularizado com o passar do tempo, deixando de ser “espalha rama” para se tornar “esparrama”. Mas a grande pergunta é: por que o verso, em sua origem, seria irregular?

Embora, até onde saibamos, o autor seja anônimo, é óbvio que houve um autor, pois trovas (com sua estrutura específica), ao contrário do que certa superstição populista poderia conceber, não surgem espontaneamente da cultura popular. O povo apropria-se da trova, que passa a fazer parte de seu repertório cultural, e ele (na verdade, indivíduos que o compõem) pode fazer-lhe alterações e distorções, modificando o texto original. O que seria inexplicável seria o fato de a trova ter sido composta inicialmente de maneira irregular, a menos que se tratasse de um provérbio adaptado à forma de uma trova. Tal hipótese é pouco provável, pois os versos não possuem um significado relevante ou definido e aparentam se relacionar única e exclusivamente por conta da sonoridade do conjunto. Quer dizer, se esses versos não compusessem desde o princípio uma trova, fica difícil imaginar o que eles pudessem querer dizer. A estrutura na qual eles estão encaixados parece ser sua razão de existir.

Esta discussão pode parecer uma implicância boba de minha mente neurótica (e talvez seja mesmo!). Entretanto, o que me incomoda é isso ser disseminado pelas escolas de todo o país, desacostumando os alunos à fruição da poesia. Ignora-se a função poética e tenta-se adequar a trova a um uso utilitário da linguagem, de forma que tudo se enquadre num significado corrente, lógico. No processo, perde-se a dimensão lúdica da poesia e deixamos de alimentar a imaginação e a sensibilidade de nossos jovens. Depois não adianta reclamar que os alunos não gostam de poesia, pois estamos lhes ensinando que a linguagem poética não se diferencia daquela de um verbete de dicionário. Por que então perder tempo com poesia?

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A narração dificultosa: "Cara-de-Bronze", de Guimarães Rosa



É com grande satisfação que informo aos (poucos) leitores do blog que minha dissertação de mestrado, defendida em dezembro de 2010, foi selecionada para a Série Produção Acadêmica Premiada da USP, sendo contemplada com sua publicação em formato e-book (pdf) e disponibilizada para download gratuito no site da série.

O texto é resultado de três anos e oito meses de pesquisa e trata-se de uma investigação crítica do conto "Cara-de-Bronze", de João Guimarães Rosa, que consta do livro Corpo de baile (e que depois integraria o volume No Urubuququá, no Pinhém). Ao longo do trabalho, procurei demonstrar como o intrincado arranjo formal do conto — que inclui narração, texto dramático, notas de rodapé, um roteiro cinematográfico e formas da cultura popular, como trovas, narrativa tradicional e improvisos poéticos — resulta da configuração estética de matéria histórico-social definida, relacionada à modernização da sociedade brasileira ao longo do século XX no contexto da expansão do capitalismo industrial nos países subdesenvolvidos. Dito assim, parece coisa de outro mundo, mas não é. Além disso, há também uma tentativa de confrontar a visão de mundo de Guimarães Rosa, cristalizada no universo ficcional da obra, levando em conta seus aspectos ideológicos e certa leitura conservadora que o autor faz do processo de modernização brasileiro.

Espero que apreciem. O estudo pode ser baixado AQUI.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Onde queres canção, sou poesia: uma análise da letra de "O quereres", de Caetano Veloso


Retornando à discussão sobre a poeticidade das letras de música — e tendo lido os argumentos de Bruno Tolentino —, resolvi mudar de tática. Em vez de trabalhar no campo das possibilidades, partirei de um exemplo concreto para depois, num texto que deve se seguir a este, fazer a discussão teórica. Começo, então, com a letra de “O quereres”, de Caetano Veloso, que já havia sido mencionada no ensaio anterior. Vamos a seu primeiro verso:

Onde queres revólver, sou coqueiro

O verso, aliás como toda a canção, é estruturado a partir do emprego da antítese, figura de linguagem que expressa uma oposição de ideias: enquanto o interlocutor, no contexto de um relacionamento amoroso, quer uma coisa (“revólver”), o eu lírico assume uma condição contrária a tal anseio (“coqueiro”). Percebe-se também o uso de mais uma figura de linguagem: a metáfora, em que o eu lírico se faz substituir por outro termo, estabelecendo uma relação na qual eu = coqueiro. Mas não é só, pois “coqueiro”, assim como “revólver”, não deve ser lido denotativamente, de maneira literal, pois “coqueiro” evoca aqui a ideia de calma, tranquilidade, enquanto “revólver” sugere violência, raiva. Temos, portanto, duas metonímias, nas quais os termos substituem ideias a eles diretamente relacionadas. Num verso de cinco palavras, temos nada menos do que quatro figuras de linguagem, sendo que, para que a antítese funcione, é preciso que as metonímias sejam percebidas, senão talvez ficasse obscura a oposição entre os termos. Mas poderíamos dizer o contrário também: é a antítese que nos leva a pensar de que modo “revólver” e “coqueiro” podem se opor, induzindo o leitor/ouvinte a procurar o sentido conotativo por trás das palavras. Ou seja: essas figuras estão organicamente integradas, uma vez que estabelecem entre si uma relação de mútua dependência.

Chamo a atenção sobre tal arranjo não para louvar o virtuosismo poético de Caetano, que beira o barroco nessa canção, mas para mostrar sua funcionalidade: o verso desdobra-se em camadas de sentido, provocando e requerendo interpretação, e da interpretação de uma das partes depende o entendimento do todo: o círculo hermenêutico se fecha num único verso. O resultado do esforço interpretativo é: 1) coqueiro = tranquilidade; eu = coqueiro; logo, eu = tranquilidade; 2) revólver = violência; teu desejo = revólver; logo, teu desejo = violência; 3) conclusão: eu teu desejo. E tudo isso em apenas cinco palavras! Se, conforme Pound, “Literatura é linguagem carregada de significado” (POUND, s.d., p. 32) e, por sua vez, “poesia é mais condensada forma de expressão verbal” (Idem, ibidem: p. 40), espero que o leitor conceda que estamos diante de um autêntico exemplo de poesia neste verso. Ocorre que tal verso abre uma estrofe de oito versos, nos quais o mesmíssimo esquema se repete outras seis vezes:

Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Das seis estrofes do poema (não estou contando o refrão), quatro delas se desenvolvem a partir desse esquema, estabelecendo algumas associações inusitadas, como em “Onde queres comício, flipper-vídeo”, em que são opostas a ideia de uma politização que o interlocutor espera do eu lírico e atividades consideradas alienantes, como o videogame e a televisão. Além disso, às quatro figuras de linguagem do esquema reiterado ao longo de toda a canção (o que por si só configura outra figura de linguagem: a anáfora), soma-se mais uma, a elipse: “Onde queres comício, [sou] flipper-vídeo”, o que ocorre não fortuitamente, pois eu disse sobre o primeiro verso que se tratavam de cinco palavras, mas eu também poderia ter dito que se tratavam de dez sílabas poéticas, uma vez que estávamos diante de um decassílabo heroico (com um acento, isto é, uma sílaba tônica, na sexta sílaba poética):

1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
On/
de/
que/
res/
re/
vól/
ver/
sou/
co/
quei
           
Tirando algumas pouquíssimas exceções — o que inclui o refrão (escrito em redondilha maior) —, a letra de “O quereres” foi composta tendo o decassílabo heroico por base rítmica. Sim, caro leitor, o mesmo metro com o qual Camões escreveu Os lusíadas e seus sonetos (para não falar de Dante Alighieri e sua A divina comédia). Portanto, a elipse do verso anterior tinha a função de adequar este à métrica do restante da letra. Não há surpresas, uma vez que a canção — fazendo uso da metalinguagem — entrega a certa altura: “Onde queres o livre, decassílabo”. Um dos versos que escapa à métrica é o segundo a seguir:

Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão

Enquanto o primeiro é um decassílabo heroico perfeito, o segundo é um decassílabo em que o pé escorregou da sexta para a quinta sílaba poética. É difícil supor a razão disso ter acontecido, mas uma possibilidade está na sonoridade marcante conseguida com o jogo de rimas internas e cruzadas: não-razão; talvez-vês. Pode ser que Caetano Veloso tenha achado mais interessante manter a sonoridade obtida pelos dois versos do que respeitar a todo custo o esquema previamente traçado, o que significaria sacrificar o (bom) efeito obtido. A despeito disso, nossa tendência natural é, por conta da sonoridade da letra, deformar a pronúncia de “vislumbro” para adequá-lo ao decassílabo heroico. Quando se ouve a canção sendo cantada, percebe-se algo como “E onde vês, eu não víslumbro razão”. Os demais versos que escapam à métrica do conjunto, que são três, concentram-se na última estrofe; destaquei-os em negrito:

O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é em mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim

Nos dois primeiros versos destacados, ocorre o mesmo que no verso anterior: há um deslocamento do pé para a sílaba anterior, o que, durante a execução da música, Caetano geralmente procura corrigir com uma sutil mudança na acentuação das palavras. E não estou dizendo que ele o faz deliberadamente para consertar os versos, mas porque o próprio ritmo da estrofe, que tem como vértice o decassílabo heroico, naturalmente induz a isso. É o mesmo caso do “berrô” que o gato deu em “Atirei o pau no gato”. O último verso é o mais problemático, pois percebe-se uma tentativa de aglutinar “que há e” em uma única sílaba poética, o que não é eufônico. No entanto, durante a execução, isso não é tão percebido, pois, como se trata do último verso, ele é cantado de forma pouco mais pausada e prolongando-se as vogais finais, o que, por si só, já rompe com o ritmo habitual dos demais versos.

O fato de “O quereres” ter sido escrita numa métrica fixa não é nenhuma exclusividade. Para me ater a dois outros exemplos bastante conhecidos, cito o “Samba da bênção”, de Vinícius de Moraes, composto também em decassílabos heroicos, e “Construção”, de Chico Buarque, cujos versos são dodecassílabos com acento na sexta sílaba poética, medida conhecida como alexandrino arcaico (que se diferencia do alexandrino clássico por não respeitar a cesura).

Vamos agora ao assunto da letra. Nela, o eu lírico demonstra seu desejo de adequar-se às expectativas do outro (“Eu queria querer-te e amar o amor/ Construir-nos dulcíssima prisão/ Encontrar a mais justa adequação”), de modo a escapar aos desencontros do encontro amoroso (“Tudo métrica e rima e nunca a dor”), sugerindo que, idealmente, o amor deveria ser tal qual um poema organicamente composto e com todas as partes integradas, sem dissonâncias. Entretanto, a realidade não corresponde aos anseios e segue caminhos mais oblíquos (“Mas a vida é real e de viés”), tornando-se uma armadilha àquele que ama (“E vê só que cilada o amor me armou”), que consiste em enredar os sujeitos na teia de suas contradições e levando-os à frustração (“Eu te quero e não queres como sou/ Não te quero e não queres como és”).

O amador, ao lançar sobre o eu lírico projeções que não encontram neste correspondência (“O quereres e o estares sempre a fim/ Do quem em mim é de mim tão desigual”), gera uma reação confusa, de quem ora quer bem ao amador, ora o quer mal, levando inclusive a desgostar do desejo em si (“Faz-me querer-te bem, querer-te mal/ Bem a ti, mal ao quereres assim”). Utilizando-se de um oximoro, “infinitamente pessoal”, aponta-se o quanto o querer escapa ao controle consciente do sujeito, que não consegue equalizar seus anseios íntimos e seu objeto de desejo, sendo que “infinitivo” é a forma do verbo quando neutro em relação às condições de sua conjugação, como a categoria de pessoa. Ou seja: na formulação de Caetano, conjuga-se o impessoal (infinitivo) com o pessoal, como maneira de apontar que o querer (forma do verbo no infinitivo) dá-se num ponto cego da experiência subjetiva em que o indivíduo não se reconhece como sendo ele próprio, embora tal ponto seja parte constituinte dessa experiência (uma bela e sintética definição do conceito psicanalítico de “pulsão”). Finalmente, apresenta-se o desejar como uma forma de conhecer-se a si mesmo, confrontando-se com as próprias limitações e as condições reais do caso amoroso, para além de qualquer projeção idealizante (“E eu querendo querer-te sem ter fim/ E, querendo-te, aprender o total/ Do querer que há e do que não há em mim”).

Portanto, temos aqui o desejo apresentado como paixão, como pathos, uma força externa que arrebataria o sujeito, tirando-o do domínio de si e tornando-o passivo. Ocorre que, conforme apontado no oximoro analisado, essa força acomete o sujeito não desde fora, mas desde aquelas regiões obscuras de sua psique, do inconsciente. No desejo, há uma ruptura com a ideia do sujeito como uma integridade psicológica racionalmente articulada, isto é, com a noção do sujeito do conhecimento das filosofias cartesiana e kantiana, por exemplo. O sujeito do desejo (que sequer é sujeito de fato, antes um “sujeitado pelo desejo”) não coincide com a identidade que o sujeito do conhecimento formula sobre o sujeito como um todo. É por isso que há esse descompasso entre o que esperamos de quem desejamos e o que este realmente é; o desejo não é um cálculo, mas um perder-se de si, um descaminho que nos leva à senda inesperada do outro (um outro externo, o objeto do desejo, mas também um outro interno, instância psicológica na qual não nos reconhecemos, embora nos constitua). Portanto, é em torno do descompasso entre nossas expectativas em relação à realidade e a realidade ela mesma que gira o eixo da letra de “O quereres”, com seu jogo vertiginoso de antíteses.

Se me permitem ir um pouco mais longe, é possível filiar a canção de Caetano aos sonetos de Camões que procuram investigar a natureza do sentimento amoroso. Em “Amor é um fogo que arde sem se ver”, encontramos o mesmo enfoque nos aspectos contraditórios do impulso erótico, ao passo que, no que se refere a “Transforma-se o amador na cousa amada”, temos uma divergência fundamental. No segundo soneto, tipicamente neoplatônico, a Ideia do outro na mente do eu lírico é suficiente por si só, ocorrendo uma diluição dos limites entre ambos. De certa maneira, postula-se que o outro ideal, porque essência, é mais satisfatório que o outro real (acidental e transitório). Em “O quereres”, temos justamente a inadequação do ser real (no caso, o eu lírico) à idealização criada em torno dele.

Tal argumento, contudo, não é de fácil apreensão. As quarta e quinta estrofes, que é onde ele se desenvolve, são labirínticas e obscuras, ao modo barroco. Não se trata, portanto, de uma canção que entrega seu significado numa primeira audição, nem mesmo em uma dúzia de audições distraídas. Faz-se necessário um esforço deliberado de interpretação; é uma letra para um leitor/ouvinte “agudo”, capaz de desbravar as sinuosas entrelinhas do texto. Isso, por si só, não é uma qualidade, pois o hermetismo pode ser apenas o disfarce suntuoso de um argumento banal (o que, para mim, não é o caso), mas se destaco tal característica é para rebater a ideia de que a canção necessariamente comunica-se de maneira direta à sensibilidade de seu receptor, sem mobilizar seu intelecto. É possível — como na verdade é bem provável que aconteça na maioria das vezes — que as pessoas gostem de “O quereres” única e exclusivamente por sua melodia ou pela beleza de alguns versos, mesmo sem conseguir penetrar suas camadas de sentido, resultantes da tessitura intrincada de inúmeras figuras de linguagem (a maioria das quais nem cheguei a comentar). No entanto, isso não anula a riqueza semântica, a complexidade técnica e a força poética do texto.

Com certeza, “O quereres” não é o texto mais profundo ou complexo que já tive de enfrentar como leitor e crítico literário, mas tampouco é o mais superficial, mesmo se comparado a poemas de autores consagrados. Para deslindá-lo, precisei empregar meu instrumental analítico, empreendendo uma leitura exigente, na qual destacaram-se as seguintes qualidades: densidade semântica, maestria técnica, autonomia rítmica em relação à melodia (afinal de contas, está escrito em decassílabos heroicos) e possibilidade de diálogo com a tradição literária, resultando, pela síntese dos aspectos mencionados, numa fatura estética positiva. Arriscaria dizer que, muito embora não esteja ao nível dos grandes clássicos da língua portuguesa, a letra de Caetano corresponde com folga àqueles critérios estabelecidos por Pound para a poesia em seu O ABC da Literatura. Em suma, trata-se de um bom poema, embora não seja exatamente um grande poema. E não nos esqueçamos que o conjunto da poesia não é formado apenas pelos grandes poemas; dele constam também os maus poemas.

Nem todas as letras de música atingem o mesmo nível estético de “O quereres”. Se dela parto, no entanto, é por tratar-se de um texto que realiza muito do potencial poético da canção, erodindo os limites que a separam da poesia escrita (limites que, como espero ter demonstrado no texto anterior, são historicamente construídos, pois, na gênese da poesia, canção e poema eram uma coisa só). A diferença de qualidade entre poesia cantada e poesia escrita são, desse modo, circunstanciais e discutirei, no próximo texto, quais são as circunstâncias responsáveis por essa diferença — ocasião em que debaterei diretamente os argumentos de Bruno Tolentino.

Ouça a canção aqui:

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Na lata da canção cabe a poesia? Resposta de um crítico vira-lata a Bruno Tolentino




Publicado originalmente aqui, em 10/06/2013.

Quase toda vez que acompanho uma discussão que procure definir se letra de música é ou não uma forma de poesia, deparo com formulações do tipo: “Como já   provou Bruno Tolentino, letra de música e poema não são a mesma coisa; pertencem a gêneros distintos”. Não sei ao certo em que ocasião Tolentino teria demonstrado por A + B que canção ≠ poema; o que conheço é uma entrevista dada por ele à Veja, na qual se toca no assunto. Como ignoro o caminho pelo qual o poeta chegou a suas conclusões, concentrar-me-ei nos argumentos genéricos daqueles que, vez por outra, evocam sua autoridade para evitar entrar no mérito da questão.

[Nota: A formulação de Tolentino encontra-se no livro A balada do cárcere, em sua introdução ("Da Quod Jubes, Domine") e nos dois textos finais ("DJ & déjà vu" e a fictícia entrevista "As joias e as cartas de amor"). Desde que o texto presente foi publicado pela primeira vez, tive a oportunidade de lê-los e protelo escrever uma resposta, sendo que ainda considero válidos os argumentos aqui expostos.] 

“Canção e poema são gêneros distintos”. O primeiro problema desta afirmação é uma filigrana teórica, digna de um sábio bizantino, ocupado em discutir o sexo dos anjos enquanto o exército inimigo assoma às muralhas da cidade. A rigor, poesia não é um gênero. Antes que o uso de “literatura” se disseminasse no século XIX, “poesia” era o termo geralmente empregado para se referir às obras estéticas de natureza verbal, fossem elas escritas ou não (a bem da verdade, aquilo o que os gregos antigos chamavam de poíēsis engloba um espectro muito amplo de atividades artísticas e artesanais). Com a popularização das formas literárias em prosa, já nos limiares da era burguesa, “poesia” passou a designar exclusivamente as obras escritas em versos. Gradativamente, os gêneros dramático e diegético (ou épico, ou narrativo, conforme a corrente teórica que se escolha) migraram para a prosa, deixando a poesia entregue ao gênero lírico e, desde então, lírica e poesia costumam ser, no senso-comum, tomadas como sinônimos, mas não são.

Se nos ativermos à definição “poesia é uma composição verbal de natureza estética concebida em versos”, então sim, toda canção é poética, toda letra de música é um poema. Mas parece que não é apenas isso que vai pela cabeça das pessoas quando se põem a discutir se letra de música é ou não poesia. Assim sendo, outra possibilidade de abordar a questão seria: “a canção faz parte do gênero lírico ou constitui um gênero diverso?”.

Como é amplamente conhecido, poesia e canção possuem uma mesma origem; mais do que isso: historicamente, aquela parece derivar desta. Isto pode ser constatado não apenas passando em revista os primórdios da arte poética naquelas culturas que deitaram as raízes da civilização ocidental, como também observando aquelas comunidades que, ainda hoje, permanecem à margem do universo da escrita. Originariamente, poesia é palavra cantada; é na canção que se manifesta, pela primeira vez, o gênio poético humano. Pelo menos é o que afirma Segismundo Spina, em Na madrugada das formas poéticas, amparado por uma consistente tradição de estudos antropológicos: “A poesia primitiva, entretanto, não é exclusivamente a poesia dos povos pré-letrados, mas a poesia que está ligada ao canto, indiferenciada, anônima e coletiva. É a poesia no seu estágio ancilar, isto é, subordinada à música e à coreografia, mais especialmente àquela. (...) A função ancilar da poesia está representada pela associação em que viveu com a música, de certo modo com a dança, antes que surgisse a pessoa do poeta, a poesia individual” (SPINA, 2002, p. 15). Segundo o lingusta Roman Jakobson, mesmo em comunidades que desconhecem a música instrumental, a poesia surge integrada a uma modalidade vocal de música.

Sabe-se bem que o próprio nome do gênero lírico foi retirado do instrumento — a lira — que fazia o acompanhamento das composições poéticas que formavam seu repertório entre os gregos. Além disso, na Grécia antiga, todos os demais gêneros ditos poéticos também recebiam alguma forma de acompanhamento musical, seja com instrumentos de cordas, de sopro ou percussivos, tanto que, em alguns textos de Platão, música e poesia são tratadas como sinônimos. Vale lembrar, conforme Albin Lesky apontou, que os enredos da tragédia ática têm sua origem nos corais que transmitiam a história dos heróis da pólis, constituindo um material que, depois, encontrar-se-ia com o cerimonial do culto a Dionísio, configurando o drama grego clássico. Não apenas o coro permaneceu como parte do teatro dos gregos antigos, como ele ainda evoluía coreograficamente em torno do altar principal ao som de uma música, e a função de treinar e reger o coro das apresentações teatrais era considerada uma honra pública, disputada por algumas das figuras políticas mais proeminentes de Atenas.

Consta que tenham sido os sábios alexandrinos os primeiros a dissociar poesia e música. Não podemos esquecer, porém, a contribuição dos trovadores medievais no surgimento da poesia europeia da Idade Moderna, como no caso da influência direta dos provençais sobre a obra lírica de Dante e Petrarca. Tais trovadores escreviam poemas exclusivamente para suas composições musicais (procurando o equilíbrio perfeito entre motz el son — palavra e som), sem dizer que muitas das formas poéticas tradicionais originaram-se das formas do cancioneiro popular, trazendo ainda características estruturais relacionadas às necessidades específicas do canto, como a própria métrica. O soneto, por exemplo, deriva de uma forma de canção. Não por acaso, a poesia medieval portuguesa está organizada em cancioneiros e suas formas são todas relacionadas ao canto: cantigas de amigo, de amor, de escárnio e de maldizer.

Por todos esses fatos que acabo de elencar, se a canção constitui um gênero próprio, à parte do lírico, faz-se necessário considerar que tal separação se deu por meio de um processo historicamente construído e não está dada na origem, portanto nem na “essência”, dos fenômenos aqui considerados. No máximo, pode-se dizer que a canção não corresponde a uma concepção moderna do que seja a poesia. Mas então o que é, afinal de contas, isso o que estamos chamando de “poesia”? Muitas foram as tentativas de definir o que ela é, mas nenhuma mostrou-se definitiva. De agora em diante, tratarei de algumas definições amplamente difundidas, procurando observar até que ponto elas permitem ou não o enquadramento da canção no domínio do poético.

Primeiramente, tratarei da concepção apresentada por Octavio Paz em O arco e a lira, embora ela seja excessivamente inclusiva. Para Paz — talvez de olho na acepção original do termo entre os antigos —, todo artista digno do nome é um poeta e toda obra verdadeiramente artística, uma forma de poema, logo, não haveria qualquer dificuldade de incluirmos a canção aqui. No entanto, a atual discussão levanta um problema mais específico: a possível correspondência entre letra de música e a expressão por excelência do poético, segundo o próprio Paz; importa saber se letra de música é uma espécie de poema, no sentido estrito desta palavra.

Para não nos afastarmos do cerne do problema, vamos nos ater à questão do poético naquilo o que o poema tem de mais específico: sua natureza verbal. Segundo Octavio Paz, a razão de ser da linguagem é o ritmo e é no verso que tal vocação rítmica se manifesta de maneira mais plena. Teria sido apenas com o passar dos séculos, com a necessidade de adequar a fala a um discurso cada vez mais intelectualizado, que a linguagem verbal teria se afastado desse seu “núcleo primitivo”, até fixar-se na prosa, no texto escrito de caráter discursivo, sacrificando muito de sua pulsação original e de sua ambiguidade polissêmica em nome de uma precisão das ideias. O ritmo, contudo, continuaria pulsando na poesia, pois “o ritmo se dá espontaneamente em toda forma verbal, mas só no poema se manifesta plenamente. Sem ritmo não há poema; só com ritmo não há prosa” (PAZ, 1982, p. 82). A métrica, por exemplo, sustentar-se-ia não por uma necessidade de ordenar o discurso e disciplinar a sensibilidade do poeta, como certa compreensão pós-romântica faz crer, mas pela própria natureza rítmica da poesia: “os acentos e as pausas constituem a parte mais antiga e mais puramente rítmica do metro; ainda estão próximos da pancada do tambor, da cerimônia ritual e dos calcanhares dançantes que batem no chão. Graças ao acento, o metro se põe de pé e é unidade dançante” (Idem, p. 88). Seria justamente pela conversão da métrica em unidade meramente convencional, desligada das necessidades intrínsecas da fala, que os modernistas teriam passado a adotar o verso livre como forma de restituir ao poema sua vitalidade original.

Pois bem, se poesia é essencialmente linguagem sustentada pelo ritmo, a pergunta que nos cabe é: até que ponto letras de músicas possuem autossuficiência rítmica, isto é, não serão elas dependentes do complemento musical para que suas potencialidades rítmicas se realizem? É possível ler uma canção desconhecendo sua melodia e nela sentir a pulsação da linguagem à qual Octavio Paz se referia? E, por outro lado: será inconcebível ler um poema e nele perceber um ritmo meramente mecânico, ou até mesmo forçado, sem fluência? Creio que meu leitor, por sua própria experiência, há de me conceder que, adotando-se tal critério, a distinção entre canção e poema não se faz mais tão evidente. Para não me prolongar muito em análises, consideremos apenas a estrofe final da canção “O quereres”, de Caetano Veloso:

O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim

As palavras desta estrofe, mesmo descoladas de sua melodia, mantém um ritmo próprio, não apenas pela repetição de sons e do verbo querer, mas também pela dinâmica vertiginosa que as ideias estabelecem entre si. Há algo de barroco: ao argumento sinuoso, de difícil apreensão imediata — quiçá propositalmente obscuro —, soma-se o jogo virtuosístico das antíteses. A reflexão transmitida por essas palavras também não é de pouca monta: o que ama o amador na cousa amada? Ama o ser amado como ele é ou uma projeção de suas próprias expectativas? Será que o que desejamos no outro não é senão nosso próprio desejo? Se assim é, o exercício de descobrir o que amamos no outro pode ser um exercício de introspecção, pois ao “querer-te sem ter fim” acabo também querendo “aprender o total” sobre a natureza do próprio desejo (“o querer que há”) e os limites de minha identidade (“o que não há em mim”). Em tal embaralhamento das categorias do eu e do outro, o desejo, contraditório por essência, é expresso por um paradoxo — “infinitivamente pessoal” —, abrindo uma nova pergunta: “quem é que no amador ama a cousa amada?”, e colocando em cheque a identidade daquele que deseja com a apreensão consciente de sua própria alteridade (problematizando, em termos psicanalíticos, a relação do id com o eu).

Ainda aqui, caro leitor? Pois então retomemos o fio da meada. Para Octavio Paz, porém, o que distingue a linguagem poética daquela que não o é (chamá-la-emos de “discursiva”) não é somente sua suscetibilidade ao ritmo, mas também a maneira como, por meio da imagem (conjunto de relações semânticas que constituem uma unidade imaginária fundamental), aquela explora as virtualidades de sentido das palavras, em vez de sacrificá-las a um sentido inequívoco, cuja finalidade se restringe à comunicação. No poema, um ser pode se identificar com outro ser, sem, contudo, perder sua identidade primeira. O ser é ao mesmo tempo uma coisa e outra, e ambas podem ser contraditórias e até mesmo excludentes. Para ilustrar melhor, vejamos os primeiros versos da canção “Metáfora”, de Gilberto Gil:

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: “Lata”
Pode estar querendo dizer o incontível

A lata, ente que, na realidade concreta, “existe para conter algo”, pode ser um signo que, no poema, transmita um significado outro, até mesmo oposto a seu significado original. Sem deixar de ser apenas lata, esta se torna uma figura que significa ainda outra coisa; dessa maneira, o delimitado e o delimitante se fazem paradoxalmente incomensuráveis. Assim é a palavra na poesia: em vez do receptáculo de um significado fixo e pré-estabelecido, como uma lata, ela se torna o nó de uma teia virtualmente infinita de possibilidades semânticas. Passamos de uma lata a uma nebulosa de sentidos.

Aliás, neste ponto, a reflexão de Octavio Paz sobre a imagem e a natureza da linguagem poética esbarra na segunda concepção de poesia que gostaria de abordar. Em ABC da Literatura, Ezra Pound define, sinteticamente, a literatura da seguinte maneira: “Literatura é linguagem carregada de significado” e “grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível” (POUND, s.d., p. 32). O que possibilitaria a existência da literatura como tal é que, enquanto “numerais e palavras que se referem a invenções humanas têm significados rígidos, definidos”, “não há limite para o número de qualidades que algumas pessoas podem associar com uma dada palavra ou espécie de palavra, e muitas delas variam de indivíduo para indivíduo” (Idem, p. 41). Observando que a palavra em Alemão para poesia — dichtung — remete-se ao verbo dichten, que quereria dizer “condensar”, Pound afirma ser a poesia “a mais condensada forma de expressão verbal” (Idem, p. 40). Portanto, o que definiria a poesia seria sua densidade semântica.

Todavia, é forçoso reconhecer que nem todo poema poderia ser considerado alta literatura, nos termos em que Pound a entende. Meu leitor, se é dado à caça de novos poetas na internet, certamente já deve ter corrido os olhos por diversos poemas acabrunhantes, que, em sua total previsibilidade, nada tem a dizer além daquilo o que já se espera que eles digam. Mesmo os grandes poetas costumam ter seus poemas medíocres, que, embora lançando mão da linguagem conotativa, não possuem a riqueza interpretativa que se esperaria da “grande literatura”. Há até mesmo poetas de considerável prestígio cultural que nunca sequer rasparam nesse grau de exigência estipulado por Pound. Agora pergunto: faz sentido alçar qualquer poema, por mais medíocre que seja, à categoria de poesia, ao passo que se nega às mais elaboradas letras de música a mesma condição? Será mesmo que a melhor das canções de Chico Buarque não é capaz de ultrapassar em valor poético o mais descartável dos poemas líricos de Camões?

Se meus leitores imaginarem que um determinado texto, só por ter sido concebido como algo a ser cantado, é incapaz de atingir a densidade semântica necessária à poesia, sugiro que abram a Bíblia no livro de Salmos. Até hoje, milênios depois de sua escritura, pessoas recorrem a tais peças líricas atrás de conforto e orientação, imagino que com alguma serventia. Por outro lado, há muitos poemas por aí que pouco (ou nada) de realmente interessante tem a nos dizer. A tendência deles é desaparecer na poeira do tempo, mas nem sempre é o que acontece.

Outra concepção do que seja a poesia é a de Roman Jakobson, num inconclusivo artigo chamado “O que fazem os poetas com as palavras”, sintetizado de uma conferência pronunciada pelo célebre linguista na Faculdade de Letras de Lisboa, em 1972. Sabemos que uma das contribuições de Jakobson está na sistematização das funções da linguagem, dentre as quais se destaca a função poética. Nesta, há uma ênfase sobre a mensagem transmitida, sobre os aspectos propriamente “materiais” que a compõem (relativos à dimensão do significante no signo linguístico), não tanto sobre sua participação no circuito comunicativo. O interesse recai sobre como se diz e não tanto sobre o que é dito. Porém, a função poética não é exclusividade da poesia: além de estar presente na literatura de uma forma geral, ela ainda é constantemente empregada na publicidade e no humor (no emprego de trocadilhos, por exemplo). Embora seja na poesia que a função poética se mostre de maneira mais evidente (de modo que poderíamos definir aquela como “construção verbal na qual há a predominância da função poética da linguagem”), ainda assim qualquer coisa de específico nos escapa em tal definição. Talvez seja esse o problema que Jakobson pretendeu solucionar em sua conferência.

Como Octavio Paz, Jakobson parte do lugar-comum de que a poesia surge na confluência entre som e sentido, mas há uma particularidade no modo como Jakobson formula essa confluência: “Fala-se de estruturas rítmicas, fala-se de aliteração ou de rima: são, sem dúvida, realidades, mas não se trata só de música, está sempre em jogo a relação entre som e sentido: tudo na linguagem é, nos seus diversos níveis, significante” (JAKOBSON, 1973, pp. 7-8). “Significante” está sendo utilizado aqui em lato sensu e não conforme seu uso na linguística; Jakobson está querendo dizer que, num poema, cada escolha do autor, seja em nível vocabular ou sintático, tem uma razão de ser, cumpre uma função específica na estrutura do texto. Cada signo deve estabelecer uma relação significante, ou necessária, com os demais signos que integram a unidade linguística do texto, de maneira que a modificação de um único elemento é capaz de transformar todo o sistema, para melhor ou para pior.

Diferentemente da prosa, em que geralmente a mesma coisa pode ser dita de maneiras diferentes sem que haja uma perda comunicativa relevante, no poema, as palavras parecem aspirar a uma ordem ideal, a um dizer definitivo, no qual a configuração da mensagem se torna uma parte essencial de seu significado; por isso a dificuldade de traduzir poesia. Como afirma Waly Salomão em “Fábrica do poema” (belissimamente musicado por Adriana Calcanhoto, aliás): “sonho o poema de arquitetura ideal/ cuja própria nata de cimento encaixe palavra por/ palavra”. No poema ideal, cada palavra tem um lugar definido, impermutável. Seria isso o que os poetas fariam com as palavras. Edgar Allan Poe curtiu isso.

É neste ponto que a inclusão da letra de música no âmbito da poesia torna-se discutível. Será que a necessidade de adequar a letra à melodia não pode significar o comprometimento de uma organização mais eficaz das palavras? Sim, não duvido que isso aconteça, mas não costuma acontecer também com poemas metrificados? Quantas vezes não encontramos um poeta dando uma “forçada de barra” para que o verso caiba no metro escolhido, ou percebemos que a obediência ao esquema de rimas acaba gerando versos sem sentido, banais ou que não guardam qualquer relação de necessidade com os demais versos do poema ou da estrofe? Mesmo no verso livre às vezes é preciso forjar uma conclusão para que o poema não fique em aberto, ou tirar uma estrofe da cartola para fazer a ponte entre outras duas que parecem desconexas. Nas palavras mais do que avalizadas de João Cabral de Melo Neto: “Nos poetas daquela família para quem a composição é procura, existe como o pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em branco, exerciam sua força. Porque eles sabem de que é feita essa força — é feita de mil fracassos, de truques que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir” (MELO-NETO, 1994, p. 723).

Se a grande maioria das canções não se encontra ao nível de exigência que Pound estabelece para a poesia, o mesmo pode ser dito da maior parte da produção poética, não só a contemporânea, como também a de todas as eras. Hoje, quando encaramos a tradição literária, vemos uma série de autores e obras já filtrados, estudados e chancelados; toneladas de maus poemas e poetas medíocres desapareceram de nosso campo de visão. Para cada Manuel Bandeira, milhares de versejadores de circunstância existiram na mesma época. E ninguém há de dizer que um poema, por pior que seja, não é poesia. Se elegermos critérios muito elevados para o que é poesia, a maior parte daquilo o que chamamos como tal deixa de sê-lo. Neste caso, estaremos elegendo arbitrariamente um conceito que não alcança a totalidade dos fenômenos que pretende explicar, sendo que, quando a realidade desmente a teoria... bem, sabemos muito bem o que fazer com a teoria. Quem há de dizer que o mais bobo dos poemas de Oswald de Andrade não é um poema, que não integra o âmbito da poesia? Não estou aqui refutando as concepções de Paz, Pound ou de Jakobson, mas apenas sugerindo que elas se referem a um ideal de poesia, ao qual as obras poéticas reais se adéquam em diferentes graus.

Como espero ter demonstrado, não há qualquer aspecto fundamental que nos permita negar a uma letra de canção, por mais tosca que seja, seu estatuto poético, pois não somente de bons poemas é feita a poesia — se quisermos definir o que a poesia é, não devemos excluir os maus poemas do rol dos fenômenos considerados. Canção e poema lançam mão basicamente dos mesmos meios expressivos e estéticos em sua construção textual: geralmente são escritos em versos, utilizam linguagem conotativa e a atenção ao arranjo formal das palavras tem em ambos uma importância decisiva. Assim sendo, letra de música é também uma forma de poema, é também poesia. Sequer poderíamos falar que a canção é um subgênero da lírica, uma vez que a canção antecede as demais manifestações líricas; a canção, isto sim, é uma das diversas formas da lírica, a mais antiga delas.

A questão, desde o início, esteve mal formulada: é óbvio que letra de música é uma forma poética, o que se discute, afinal de contas, e de maneira equivocada — pois não se alcançavam os termos reais da discussão —, é se as canções atingem o grau de elaboração necessário para integrá-las ao âmbito daquilo o que Pound chamava de “grande literatura”, ou então ao nível da “alta cultura”. Há poemas que são grande literatura e outros que não são. Haverá canções que são grande literatura? Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil & cia. fazem grande literatura com suas músicas? Esta é a verdadeira questão, à qual pretendo retornar num próximo texto.

sábado, 27 de dezembro de 2014

O voyeurismo na poesia parnasiana de Raimundo Correia


Texto publicado originalmente na Revista Germina

O crítico português Duarte de Montalegre, em seu Ensaio sobre o Parnasianismo brasileiro, definiu da seguinte maneira a postura do poeta parnasiano: “(...) o parnasiano é um sensual; a sua atitude poética perante o mundo limita-se a uma vivência de plasticidades, de harmonias, de cores”[1], ou seja: a poesia parnasiana remeter-se-ia, por oposição às escolas literárias idealistas (como o Romantismo), prioritariamente ao mundo dos fenômenos sensíveis. Entretanto, é possível distinguir na sensualidade aludida — ou, melhor dizendo, nessa “sensorialidade” — a ascendência do elemento visual sobre os demais, tanto que, não raro, os poemas de nosso Parnasianismo eram chamados “quadros” ou “cromos”. Percebe-se, portanto, a visualidade como aspecto central da configuração do universo imaginário da poesia parnasiana, o que assume uma interessante feição ao abordarmos a vertente erótica de tal poesia no Brasil: o voyeurismo, caracterizado não somente pela descrição do corpo feminino, como também por colocar em cena (tematizar) a própria situação do voyeur, daquele que, sorrateiro, flagra a intimidade de seu objeto de desejo.

Afonso Romano de Sant’anna, em seu estudo sobre o erotismo na poesia brasileira, foi o primeiro a dar a devida importância ao voyeurismo como componente da ars erotica parnasiana. Opondo o Parnasianismo a uma tendência “oral” da poesia romântica, Sant’anna fala de um “reincidente voyeurismo” de nossos parnasianos, resultado de uma duplicidade da mulher como signo: ao passo que ela é apresentada como Vênus (significante), subsiste nela um substrato ideológico que a acaba identificando com a Virgem Maria (significado). Tal duplicidade, relacionada à gênese de nossa cultura patriarcal — fortemente marcada pela tradição católica — e reforçada pela posição que o positivismo dedicava à mulher em seu sistema, cria uma situação na qual, ao mesmo tempo em que a figura feminina apresenta-se como objeto de desejo, a possibilidade da realização desse desejo é interdita[2]. Por consequência, o distanciamento, que se manifesta pela “repetição dos verbos ‘ver’ e ‘olhar’” e no qual o sentido da visão substitui o corpo do eu lírico, surge como um expediente que visa mitigar a carga erótica relacionada à representação do corpo feminino[3].

Seria ingênuo afirmar que a repressão não é uma poderosa força atuando na conformação do erotismo parnasiano. Entretanto, a análise de Sant’anna, ao enfocar a poesia erótica preferencialmente pelo prisma da interdição, acaba deixando de lado algumas importantes nuances. O distanciamento — ao instaurar o espaço necessário à perspectiva voyeurística — opera dentro da concepção de visualidade do Parnasianismo, que, se elide a possibilidade do contato entre eu lírico e figura feminina, ao mesmo tempo força ao limite as normas do decoro estilístico. Subsiste, no voyeurismo parnasiano, a tentação de mostrar sempre um pouco além do permitido. Para isso, é preciso que tal desejo de ver conforme-se a uma linguagem depurada de qualquer obscenidade, o que facultaria ao poeta sua investida no campo minado das fantasias.

Possivelmente, o poeta que melhor encarnou os dilemas e as ambiguidades do voyeurismo parnasiano no Brasil foi Raimundo Correia. Para mostrá-lo, limitar-me-ei, dentre seus poemas que apresentam a nudez feminina como tema, àqueles que, de alguma maneira, colocam em jogo a questão do olhar.

A avidez do olhar

A estreia literária de Raimundo Correia acontece em 1879, com o livro Primeiros sonhos. Trata-se de um livro tipicamente romântico (ultrarromântico, para ser mais preciso), no qual se sente grande influência de Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu, numa época em que grande parte da intelectualidade brasileira já acusava o esgotamento do Romantismo. Machado de Assis assim escrevia, também em 79: “(...) acho legítima explicação do desdém [pelo Romantismo] dos novos poetas: eles abriram os olhos ao som de um lirismo pessoal, que salva as exceções, era a mais enervadora música possível, a mais trivial e chocha. A poesia subjetiva chegara efetivamente aos derradeiros limites da convenção, descera ao brinco pueril, a uma enfiada de coisas piegas e vulgares”[4]. Não nos esqueçamos que, um ano antes, o Romantismo fora alvo de jovens poetas nas páginas do Diário do Rio de Janeiro. Tais poetas publicavam poemas escarnecendo a velha escola literária, que, por sua vez, era defendida — também em versos — por poetas mais tradicionalistas, num episódio que ficou conhecido como Batalha do Parnaso[5]. Não é por acaso, portanto, que o próprio Raimundo Correia chegue a apontar o caráter anacrônico de seu primeiro livro[6].

Pouco haveria o que dizer sobre esse livro, que replica mecanicamente os lugares-comuns identificados por Mário de Andrade na poesia lírico-amorosa de nossos românticos, reunidos pelo autor de Macunaíma sob a definição de “complexo do medo do amor”[7]. Em Primeiros sonhos, encontramos a figura da virgem pudica e langorosa, o eu lírico tímido e submisso (sempre à beira da paralisia diante da mulher amada) e a sublimação do sentimento amoroso, destituído de qualquer conotação erótica. Um tipo de poesia que, ao mesmo tempo em que reúne vários tropos da tradição lírica europeia (pelo menos desde o Trovadorismo occitânico), serviu de conveniente meio de expressão a indivíduos formados numa cultura patriarcal baseada na idealização dos vínculos familiares, na sacralização da mulher no papel de mãe e na valorização (prescritiva) da virgindade feminina.

Portanto, é no segundo livro de Correia — Sinfonias, de 1883 — que a temática erótica aparece em contornos mais nítidos. Sinfonias é uma obra bastante representativa de uma época na qual, durante o ocaso do Romantismo, concorriam várias tendências poéticas, dentre elas um Parnasianismo ainda incipiente. O livro divide-se em duas partes: na primeira, de natureza mais propriamente lírica, reminiscências românticas convivem com elementos parnasianos e outros do “realismo”; na segunda, o que vemos é uma poesia de caráter político, empenhada num projeto de reforma social modernizante e que se encaixa no que, à época, era chamado de poesia socialista ou social-realista. A obra de Raimundo Correia assume uma feição exclusivamente parnasiana apenas a partir de seu terceiro livro, Versos e versões, de 1887.

Levando em conta Sinfonias e Versos e versões, nos quais a temática erótica aparece de maneira mais pronunciada, procurarei ater-me aos poemas que apresentam características parnasianas, deixando de lado os que, no primeiro livro, são diretamente filiados à poesia realista, como os sonetos “Na penumbra” e “Après le combat”.

Para os propósitos deste ensaio, o mais significativo poema do conjunto é “Plena nudez”, publicado em Sinfonias. Embora seja perceptível a inspiração de tal soneto no “Profissão de fé” de Carvalho Júnior (em que o autor combate os lugares-comuns do lirismo-amoroso romântico, sobretudo a excessiva sublimação da figura feminina), distingue-se a eleição do ideal de beleza clássico, considerado perene em contraposição aos modismos hodiernos. Vamos a ele:

Eu amo os gregos tipos de escultura;
Pagãs nuas no mármore entalhadas;
Não essas produções que a estufa escura
Das modas cria, tortas e enfezadas.

Quero um pleno esplendor, viço e frescura
Os corpos nus; as linhas onduladas
Livres; da carne exuberante e pura
Todas as saliências destacadas...

Não quero, a Vênus opulenta e bela
De luxuriantes formas, entrevê-la
Da transparente túnica através:

Quero vê-la, sem pejo, sem receios,
Os braços nus, o dorso nu, os seios
Nus... toda nua, da cabeça aos pés!
           
O eu lírico reivindica uma visualização integral das graças feminis da estátua de Vênus, sem que o pudor do artista lhe oblitere a vista. Na verdadeira arte, a nudez terá de ser plena, total, radiante, não devendo haver qualquer impedimento ao olhar. Além disso, a evocação da arte grega como modelo talvez nos remeta a um relacionamento mais livre com o nu, isento das noções de pecado e vergonha que caracterizam a civilização judaico-cristã. Um soneto que parece colocar em prática os princípios defendidos em “Plena nudez” é “Ouro sobre azul”, também de Sinfonias:

Quando ela, sobre as águas transparentes,
Surge em casta nudez, em amor acesa,
A vaga envolve em ósculos frementes
Todo o corpo da olímpica princesa.

O misto de luxúria e de pureza
Dos seus contornos nítidos, patentes,
É o poema excelso da Beleza
Em estrofes de Paros, reluzentes...

Vendo-a assim, cuido ver, branca de espuma,
Vênus que surge, e da onda que flutua
No verde flanco lânguida se apruma;

E soltos, vendo-lhe os cabelos, cuido
Ver despenhar-se sobre a deusa nua
Serena catadupa de ouro fluido...

“Casta nudez”, “todo o corpo”, “contornos nítidos” e “deusa nua”; embora o poeta não se detenha em nenhuma parte específica do corpo feminino (com exceção dos cabelos), a nudez da deusa é sem dúvida o tema principal do poema, como as passagens coligidas permitem supor. Trata-se de uma visão geral e genérica do nu, sem o detalhamento requerido em “Plena nudez”: “Os braços nus, o dorso nu, os seios/ Nus (...)”, mas ainda assim um poema de manifesta sensualidade. Embora o observador da cena não seja diretamente representado, percebemo-lo nas seguintes passagens: “Vendo-a assim, cuido ver (...)” e “(...) vendo-lhe os cabelos, cuido/ ver (...)”. O eu lírico apresenta-se como aquele que frui a brilhante aparição da deidade nua. Trata-se de uma estratégia distinta da que verificamos no poema “Aspásia”, de Versos e versões:

Ao clarão oriental do sol; da balsamina,
Doce, pelo nariz bebendo a essência fina;
Do lábio a polpa a abrir, mais úmida e vivaz,
Que a polpa sumarenta e rija do ananás;
Com as mãos a soster dos seios copiosos
O gêmeo e branco par, os dois limões cheirosos,
Os dois globos de neve humana; e o largo olhar
Embebedando em luz; toda a se espreguiçar,
Num espreguiçamento e num bocejo estranho,
Aspásia vacila antes de entrar no banho...
Como a expelir do sono os fluidos mais sutis,
Os membros distendia, às curvas e aos quadris
As linhas desmanchando, ondulosas, redondas...
(...)
Finalmente ela entrou na líquida esmeralda,
Pouco a pouco... meteu, primeiro, o leve pé
De jaspe e rosa, e após cingia-a já até
Quase ao meio da branca e deliciosa perna
A água, a se desfazer numa carícia terna...
Mas um berro brutal, de súbito, atroou,
E no ambiente aromado ativo se espalhou
Esse olor especial de que fala, no idílio
Agreste e pastoril das Éclogas, Virgílio;
Entre as moitas estava a contemplar-lhe os mil
Encantos da nudez e o busto feminil,
Com olhos de lascívia e de volúpia mornas,
Um sátiro enramado, um Coridon de cornos,
Um bode enfim... Surpresa, ela olhou para trás,
Estremeceu, e viu-se então a coisa mais
Estranha e original, que imaginar se pode: —

O bode a persegui-la, e ela a fugir do bode!...

Neste poema, o papel do voyeur é transmitido do eu lírico ao sátiro que observa Aspásia banhar-se. Aliás, a situação de voyeurismo estabelecida entre as duas personagens é um dos elementos que contribuem para a criação da atmosfera erótica do poema, introduzindo uma tensão sexual inexistente em “Ouro sobre azul”. A consumação do impulso amoroso é uma possibilidade mantida em aberto, ainda que tal consumação signifique, no fim das contas, um ato de violência sexual. Não esqueçamos que a perseguição da beldade nua por um ente da floresta é um tema mitológico recorrente, encontrado também em “O leque”, de Alberto de Oliveira. Outro aspecto interessante a considerar em “Aspásia” é que nele encontramos o nu mais detalhado da obra de Raimundo Correia, e o mais sensual. Além de suas diversas informações visuais, o poema ainda abarca o paladar (o lábio comparado à “polpa sumarenta e rija do ananás”; a “branca e deliciosa perna”), o olfato (os seios como “dois limões cheirosos”; o “ambiente aromado ativo”) e o tato (“A água, a se desfazer numa carícia terna...”), mobilizando uma gama de sensações.

Agora vejamos “Noite de inverno”, também de Versos e versões:

Enquanto a chuva cai, grossa e torrencial,
         Lá fora; e enquanto, ó bela!
         A lufada glacial
Tamborila a bater nos vidros da janela;

         Dentro, esse áureo torçal
Do cabelo que, rico, em ondas se encapela,
         Deslaça; e o alvor ideal
Do teu corpo à avidez do meu olhar revela;

         Porque, à avidez do olhar
         Do amante, é grato, ao menos,
Dessas noites no longo e monótono curso,

         — Claro como o luar —
         Ver um busto de Vênus
Surgir nu dentre as lãs e dentre as peles de urso.

O corpo da mulher revela-se como espetáculo à “avidez do olhar” do eu lírico; entretanto, algo muda de figura. A princípio, a conjunção enquanto sugere uma oposição entre o frio da chuva, com sua “lufada glacial”, e o ambiente onde eu lírico e sua amada se encontram, que supomos aquecido. Ocorre, todavia, que à medida que sua nudez se desvela, a mulher torna-se tão fria quanto a noite chuvosa. Seu cabelo é “áureo” e “rico” como o ouro, elemento mineral; o “alvor” da pele é “ideal”, o que eleva o corpo feminino além da realidade concreta; o “busto de Vênus” é “claro como o luar”. A própria escolha do termo “busto”, em detrimento do mais frequente “colo” ou de “seio”, demonstra a intenção de aproximar a amada de uma estátua, representando-a fria em contraste com “lãs” e “peles de urso”, que transmitem a ideia de calor.

Affonso Romano de Sant’anna aponta outros dois expedientes pelos quais o teor erótico da poesia parnasiana seria mitigado, além do distanciamento já referido: o esfriamento, em que a figura feminina é apresentada por meio de “metáforas duras e frias”, e a imobilidade, segundo a qual a mulher é fixada como estátua, portanto impossibilitada de corresponder ao afeto de seu admirador (o que chamo, não sei se com alguma originalidade, de complexo de Pigmaleão do Parnasianismo brasileiro)[8]. Ambos os expedientes podem ser percebidos em “Noite de inverno”. Se em “Ouro sobre azul” e “Aspásia” o tema mitológico ganha vida, introduzindo o poema num clima de sensualidade, em “Noite de inverno” a mulher transmudada em estátua de Vênus é investida de frieza — sua nudez é gélida como o clarão da lua, muito diferente do calor mediterrâneo que pressentimos nos outros dois poemas.

Aqui surge uma questão interessante: ao que parece, o tema clássico é o que faculta ao poeta sua entrada nos domínios do erótico. Chancelados pela tradição como elementos da alta cultura, tais temas, inúmeras vezes representados na arte ocidental, perdem qualquer teor obsceno ou perverso que, porventura, pudessem ter originalmente. Por outro lado, a nudez da mulher contemporânea apresentava-se de maneira problemática à consciência dos artistas na segunda metade do século XIX. Em seu livro A pintura da vida moderna, o crítico de arte norte-americano T. J. Clark reconstitui o escândalo que o quadro Olympia, de Édouard Manet, causou ao ser exposto no Salão de Paris de 1865[9]. Entre outras razões para o escândalo, estaria o fato de Manet, ao representar a nudez de sua figura central, prescindir de todo o repertório clássico que, por sua natureza alegórica, garantia ao nu certa dignidade artística, além do que, optando pelo tema da cortesã, o artista o apresentava em desacordo com a ideologia da época, que criara um mito social reconfortante sobre a prostituição, destituindo-a de seu caráter de classe ao priorizar a imagem da prostituta de luxo. Comentando o nu como gênero da arte francesa de meados do século XIX, Clark aponta seu convencionalismo universalizante: “A inevitável força sexual dessa nudez é convertida em várias ações e atributos, e traduzida numa linguagem opulenta e convencional. O que resta é um corpo, dirigido ao espectador franca e diretamente, mas em grande medida generalizado na forma, arranjado num esquema complexo e visível de rimas, expurgado de particularidades, oferecido como uma versão livre, mas respeitosa, dos modelos corretos, aqueles que melhor enunciam a natureza”[10].

Olympia (1863) - Édoaurd Manet

Devemos levar em consideração que o parnasianismo, incluindo o brasileiro, compartilhava com a arte academicista francesa do século XIX vários temas. Abundam, na arte do período, inúmeros nascimentos ou aparições marítimas de Vênus e, se fôssemos listar os poemas de nossos poetas parnasianos sobre o assunto, a lista seria enorme. Para ficar em alguns exemplos, citemos, de Raimundo Correia, além do já apontado “Ouro sobre azul”, o soneto “Citera”, do livro de 1891 (Aleluias). Alberto de Oliveira, por sua vez, possui o poema “Aparição nas águas” (de seu primeiro livro, Canções românticas) e uma série de três sonetos intitulada “Afrodite”, presente em Meridionais. Além disso, Olavo Bilac, com seus poemas “O julgamento de Frineia” e “Aspásia”, parece dialogar com dois quadros de Jean-Léon Gérôme: Phryné devant l’Aéropage (1861) e Socrate venant chercher Alcibiades chez Aspasie (Idem), respectivamente.

Phryné devant l’Aéropage (1861) - Jean-León Gérôme

Portanto, o que temos no poema “Plena nudez” parece ser a defesa do “ideal pagão” caro à arte europeia do século XIX e que, conforme T. J. Clark, proporcionava “um espaço no qual o corpo da mulher pudesse ser consumido sem desmedida prevaricação”[11]. A nudez da mulher contemporânea, ao contrário, ameaçava embaralhar as categorias sobre as quais estavam fundados os sistemas de representação social da época. Se, na França, a prostituta ajudava a constituir, por negativo, a imagem da chamada “mulher honesta”[12], no Brasil, país fortemente marcado por suas origens patriarcais, essa questão mostrava-se ainda mais sensível.

Mary Del Priori descreve como a imagem da santa-mãezinha (de inspiração mariológica) tornou-se um modelo de comportamento às mulheres do Brasil Colonial. Ao longo dos séculos XVI e XVII, houve a sacralização do papel social de mãe, de modo que a mulher era restrita aos cuidados da casa e da família, o que a integrava no projeto colonizador e liberava os esforços masculinos para a produção econômica e a defesa do território, além de assegurar o contingente de “portuguesinhos” para levar adiante o processo de colonização. A Igreja, por sua vez, enxergava na mulher o elo de transmissão da doutrina e dos valores católicos às gerações futuras (não nos esqueçamos de que isso se dava em pleno contexto da Contrarreforma). Dessa maneira, elege-se o modelo da santa-mãezinha como ideal de comportamento cujo objetivo era adequar a sexualidade feminina aos rígidos padrões da moralidade tridentina e instrumentalizar a mulher (isto é, direcionar suas energias e seu trabalho social) para o esforço colonizador[13].

Atribuía-se então à mulher, na condição de mãe, uma respeitabilidade que era também marca de distinção de classes. Numa sociedade em que o sistema produtivo polarizava-se entre senhores e escravos, a maior parte da população livre vivia numa situação de aguda instabilidade social, sobrevivendo de expedientes provisórios, o que podia significar uma existência levada em trânsito, ao capricho das oportunidades de trabalho. Como consequência, eram comuns nessa parcela da população as uniões informais, às vezes efêmeras, sem falar que muitas mulheres pobres, sem meios próprios de subsistência, sentiam-se impelidas a aceitar arranjos ilegítimos, como o concubinato ou até mesmo a prostituição. Assim, as mulheres de extração mais baixa (muitas delas de origem indígena e africana) pareciam, aos olhos da casa-grande, moralmente degradadas e destituídas de qualquer senso de decência. Portanto, a respeitabilidade da mulher de família patriarcal, estabelecida como norma para o comportamento feminino, devia-se a determinadas circunstâncias socioeconômicas favoráveis, constituindo um privilégio para poucas e um ideal a ser perseguido pelas classes menos favorecidas[14].

É esse o arcabouço ideológico com o qual a representação do corpo feminino ameaçava romper, caso não fossem respeitados os protocolos que prescreviam, em se tratando da nudez, a temática clássica. O perigo era embaralhar as categorias sociais relativas à condição feminina, gerando um apagamento da fronteira entre a mulher honesta e a desfrutável, e introduzindo na poesia aspectos que a moralidade pública preferia manter à margem, como uma sexualidade não enquadrada nos padrões matrimoniais e familiares. A ausência daqueles elementos que constituíam as convenções artísticas da época instaurava, no cerne do poema, um conflito entre o impulso voyeurista (típico do Parnasianismo, como vimos) e uma preocupação com a dignidade intrínseca da arte (decoro) e a decência do público. Vejamos, a esse respeito, o soneto “No banho”, de Sinfonias:

Não eras só na câmera deserta
Quando o banho tomavas perfumoso;
Banho feito do aroma voluptuoso
Que às odaliscas a Turquia oferta...

Fora — do estio estava a clama aberta —
Dentro — o sossego morno e silencioso —
E eu às ocultas te mirava, ansioso;
Não eras só na câmera deserta...

E em torno derramaste o olhar celeste;
Desfolhaste-te, flor; nu, dentre a veste
Teu colo começou a aparecer,

E a espalda, e o dorso... E, vencedor sublime,
Eu, forte, não perdi-te nem perdi-me,
E ai! podia perder-me e te perder!

O que temos aqui não é somente a configuração de uma perspectiva voyeur por meio do detalhamento pictórico da nudez feminina, mas também a tematização da própria situação de voyeurismo, em que o eu lírico espiona sorrateiramente uma mulher que se banha. O voyeur assume o primeiro plano da cena e a excitação que percorre o soneto dá-se tanto pelo prazer da indiscrição quanto pela nudez em si, esboçada, aliás, apenas nos dois tercetos. O poema ousa ao não se refugiar no território pacificado das referências clássicas, apesar de uma episódica alusão às odaliscas (figuras que, devido a seu exotismo oriental, integravam o rol dos lugares-comuns eróticos aceitáveis na arte do século XIX), contudo, sua ousadia possui limites claros: a gradação pela qual a nudez feminina é evocada interrompe-se logo abaixo do dorso, restando ao leitor completar com a imaginação a lacuna deixada em aberto pelo sinal de reticências. Logo em seguida, o eu lírico gaba-se de seu autocontrole, pois poderia ter colocado a perder sua honra e a da mulher caso cedesse aos desejos que o consumiam. A renúncia ao gozo é motivo de orgulho, uma vez que preserva os valores que regulam socialmente a vida sexual, mas não se consegue ocultar a ambiguidade da situação: a contemplação da mulher num momento de intimidade já é uma transgressão dos valores que o eu lírico julga estar defendendo.

“No banho” é um exemplo bastante ilustrativo do embate entre um imperativo visual, que procura converter a sexualidade em espetáculo, e as normas sociais que prescrevem a mais severa discrição quanto às coisas do sexo. No soneto de Raimundo Correia, ambas as forças são tematizadas e tenta-se encontrar um ponto de equilíbrio entre elas, de modo que uma não seja completamente sacrificada em favor da outra. Dando continuidade a estas reflexões, passemos ao poema “No jardim” (Sinfonias):

Estavas no jardim. Raiara um dia
Fresco, primaveril, resplandecente;
Nos tanques cheios de água, intermitente,
Quérulo, o vento as flores espargia...

Bela, sem que me visses, eu te via
Colhendo rosas; teu roupão na frente
Suspenso um pouco, negligentemente,
Rósea porção da perna descobria...

Que desalinho cândido! que braço!
Como enchia-se níveo o teu regaço
Das flores que caíam-te da mão!

E mal me viste, em fogo, te fitando,
Rubra em pejo, a fugir foste deixando
Uma esteira de rosas pelo chão...

Embora a situação e o ambiente representados sejam tipicamente românticos, dignos de um Casimiro de Abreu, e não haja qualquer referência clássica, o poema é essencialmente parnasiano, como se pode perceber pela ênfase na descrição em detrimento do lirismo. O eu lírico, ainda que personificado, praticamente nada nos fala de suas emoções e sentimentos, restringindo-se a nos apresentar da maneira mais detalhada e nítida possível a cena na qual participa na condição de mero espectador, pelo menos até a última estrofe, em que a moça percebe sua presença. Pode-se dizer que estamos diante de uma cena romântica apresentada de acordo com princípios formais parnasianos, dando testemunho não só do hibridismo de Sinfonias, como também da permanência de elementos românticos na poesia parnasiana de Raimundo Correia.

Por trás da aparente inocência do quadro, podemos sentir o erotismo no foco dado à perna parcialmente descoberta da mulher e ao “níveo regaço” que se vislumbra através de suas vestes desalinhadas. Basta isso para que o olhar do eu lírico acenda-se “em fogo”, assustando seu objeto de desejo. Ao contrário do que acontece na poesia romântica, não é preciso que o poeta insista sobre a pureza de sua amada, empregando repetidamente qualificativos relacionados à castidade. Em “No jardim”, tudo o que precisamos saber sobre o caráter da figura feminina está concentrado em “rubra em pejo” e em sua fuga ao descobrir-se espionada. É a própria descrição da mulher e a narração dos fatos que nos dão as informações necessárias, sem que o autor mencione explicitamente as virtudes da mulher observada. O voyeurismo um tanto idílico deste soneto nos remete à passagem de uma paráfrase que Raimundo Correia — também em Sinfonias — escreveu a partir de um poema de Victor Hugo que conta a história do beijo de um jovem casal numa cerejeira:

Quando entre as ramas via algum fruto maduro,
Como um botão de fogo, entre os sarçais, vermelho,
Subia mais, mostrando, em um desleixo puro,
A perna inteira até a curva do joelho...

A escolha do poema de Victor Hugo certamente não é fortuita, pois indica uma tendência dos poemas de Correia e que consiste na apresentação dos olhos como os principais órgãos de satisfação erótica. Tanto nesta paráfrase quanto em “No jardim”, a inocência e a graça infantil da mulher amada são o que impedem o olhar do eu lírico de entregar-se a seus impulsos. Apesar da incorporação cada vez mais evidente dos princípios parnasianos, mesmo assim fazem-se sentir aspectos relacionados ao complexo romântico do medo do amor, testemunhando a continuidade da experiência social que lhe serve de fundamento.

Como podemos perceber, nesses poemas o olhar do voyeur recua diante de seu objeto de desejo, seja por sua própria firmeza moral, seja pelo recato da figura feminina. Quando o poema destaca-se do sistema de convenções clássicas, entram em circulação os valores morais da sociedade de origem patriarcal, que encontravam no lirismo-amoroso romântico um meio conveniente de manifestação. Porém, a própria situação de escopismo neles configurada, que coloca o eu lírico na condição do voyeur, introduz no poema uma nota perversa (sexualmente falando), perturbando tanto a resolução moral de “No banho” quanto a atmosfera idílica de “No jardim”.

Considerações finais

Ao longo do século XIX, a sociedade brasileira passava por profundas transformações. Uma das mais significativas foi o deslocamento das elites rurais para as cidades, processo descrito e analisado por Gilberto Freyre em Sobrados e mucambos[15]. Nas cidades, as famílias proprietárias entravam em contato com uma realidade social mais diversificada e complexa, incorporando novas formas de sociabilidade, inspiradas no estilo de vida burguês das nações europeias industrializadas. Não demoraria até que os rebentos dessas famílias, educados de acordo com os sistemas de pensamento mais modernos da época, acabassem por contestar os fundamentos sobre os quais se estabelecia a sociedade brasileira de então, combatendo o regime monárquico, a escravidão e os valores patriarcais de nossa formação cultural (incluindo, aqui, o papel atribuído à mulher). O grande marco desse impulso reformista da juventude brasileira ficou conhecido como “Geração de 70” (1870), capitaneada por figuras como Tobias Barreto e Sílvio Romero.

Contudo, esse desejo de reforma da sociedade esbarrava num obstáculo: como modernizar a cultura e o pensamento brasileiros quando nossas estruturas econômicas mantinham-se basicamente as mesmas desde o período colonial, com a economia voltada ao fornecimento em larga escala de produtos primários para o mercado internacional? Situação, esta, que se preservaria, com alterações epidérmicas (como a substituição da mão de obra escrava pela de trabalhadores em condição de semi-servidão) até pelo menos a década de 1930. A história do século XIX no Brasil, como se vê, constituiu-se ao sabor de rupturas e acomodações, entre descontinuidades e continuidades.

É sobre esse pano de fundo social de efervescência e sedimentação da cultura brasileira nos 1880 que melhor apreendemos o voyeurismo vacilante de Raimundo Correia. Por um lado, percebe-se o intuito de levar o erotismo além dos limites estabelecidos pela moralidade patriarcal, que tão bem se enquadrava na produção lírico-amorosa de nossos poetas românticos — intuito que se configura como um desejo de desvelar a nudez feminina. Por outro, a resolução de ver e representar o corpo da mulher “sem pejo, sem receios” esbarra nos valores patriarcais, como a sobrevalorização da castidade feminina, tão logo o poeta abandona o repertório prestigioso das convenções classicistas. Um voyeur vacilante para uma sociedade que ora parece avançar, ora girar em falso.

Restou, ainda, para uma oportunidade futura, a investigação daquilo o que Manuel Bandeira, tratando do erotismo na poesia de Raimundo Correia, identificou como sendo uma “decantação da nudez”[16], o que, infelizmente, escaparia aos limites do atual ensaio.


Referências bibliográficas

ANDRADE, Mário de.  “Amor e medo”. In: Aspectos da literatura brasileira. 4ª ed. São Paulo: Livraria Martins; Brasília: INL, 1972, pp. 197-230.

ASSIS, Machado de. “A nova geração”. In: Crítica literária. São Paulo: Ed. Brasileira, 1959, pp. 180-244.

BANDEIRA, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros: poesia da fase parnasiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

CLARK, T. J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. Tradução José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2004

CORREIA, Raimundo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961.

MONTALEGRE, Duarte de. Ensaio sobre o parnasianismo brasileiro. Coimbra: Coimbra Ed., 1945.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 15 ª ed. São Paulo: Global, 2004.

PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidade no Brasil Colônia. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.



[1] MONTALEGRE, Duarte de. Ensaio sobre o parnasianismo brasileiro. Coimbra: Coimbra Ed., 1945, p. 14.
[2] SANT’ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, pp. 66-73.
[3] Idem, ibidem: p. 74.
[4] ASSIS, Machado de. “A nova geração”. In: Crítica literária. São Paulo: Ed. Brasileira, 1959, pp. 181-2.
[5] Segundo Manuel Bandeira, a designação “parnasianismo” não está vinculada à Batalha do Parnaso. O termo, tomado de seu correspondente na literatura francesa, teria sido utilizado pela primeira vez no Brasil em 1886, numa nota crítica de Alfredo de Souza a um livro de Francisco Lins. BANDEIRA, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros: poesia da fase parnasiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, pp. 7-8.
[6] Ao final de primeiros sonhos, diz Raimundo Correia: “Reconheço, que há neste meu primeiro trabalho literário composições ridiculamente contrárias ao espírito da época”. CORREIA, Raimundo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961, p. 120.
[7] ANDRADE, Mário de.  “Amor e medo”. In: Aspectos da literatura brasileira. 4ª ed. São Paulo: Livraria Martins; Brasília: INL, 1972, pp. 197-230.
[8] SANT’ANNA, 1993, p. 74.
[9] CLARK, T. J. “A escolha de Olympia”. In: A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus seguidores. Tradução José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 129-209.
[10] Idem, ibidem: p. 185.
[11] Idem, ibidem: p. 182.
[12] Idem, ibidem: p. 165.
[13] PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidade no Brasil Colônia. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2009, pp. 40-1.
[14] Idem, ibidem: p. 41.
[15] FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 15 ª ed. São Paulo: Global, 2004.
[16] BANDEIRA, Manuel. “Raimundo Correia e seu sortilégio verbal”. In: CORREIA, Raimundo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961, p. 18-9.

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