Texto publicado originalmente na Revista Germina
O
crítico português Duarte de Montalegre, em seu Ensaio sobre o Parnasianismo brasileiro, definiu da seguinte
maneira a postura do poeta parnasiano: “(...) o parnasiano é um sensual; a sua
atitude poética perante o mundo limita-se a uma vivência de plasticidades, de
harmonias, de cores”[1],
ou seja: a poesia parnasiana remeter-se-ia, por oposição às escolas literárias
idealistas (como o Romantismo), prioritariamente ao mundo dos fenômenos
sensíveis. Entretanto, é possível distinguir na sensualidade aludida — ou,
melhor dizendo, nessa “sensorialidade” — a ascendência do elemento visual sobre
os demais, tanto que, não raro, os poemas de nosso Parnasianismo eram chamados “quadros” ou “cromos”. Percebe-se, portanto, a visualidade como aspecto central da configuração do universo
imaginário da poesia parnasiana, o que assume uma interessante feição ao
abordarmos a vertente erótica de tal poesia no Brasil: o voyeurismo, caracterizado não somente pela descrição do corpo
feminino, como também por colocar em cena (tematizar) a própria situação do voyeur, daquele que, sorrateiro, flagra
a intimidade de seu objeto de desejo.
Afonso
Romano de Sant’anna, em seu estudo sobre o erotismo na poesia brasileira, foi o
primeiro a dar a devida importância ao voyeurismo como componente da ars erotica parnasiana. Opondo o Parnasianismo a uma tendência “oral” da poesia romântica, Sant’anna fala de um
“reincidente voyeurismo” de nossos parnasianos, resultado de uma duplicidade da
mulher como signo: ao passo que ela é apresentada como Vênus (significante),
subsiste nela um substrato ideológico que a acaba identificando com a Virgem
Maria (significado). Tal duplicidade, relacionada à gênese de nossa cultura
patriarcal — fortemente marcada pela tradição católica — e reforçada pela
posição que o positivismo dedicava à mulher em seu sistema, cria uma
situação na qual, ao mesmo tempo em que a figura feminina apresenta-se como
objeto de desejo, a possibilidade da realização desse desejo é interdita[2].
Por consequência, o distanciamento,
que se manifesta pela “repetição dos verbos ‘ver’ e ‘olhar’” e no qual o
sentido da visão substitui o corpo do eu lírico, surge como um expediente que
visa mitigar a carga erótica relacionada à representação do corpo feminino[3].
Seria ingênuo
afirmar que a repressão não é uma poderosa força atuando na conformação do
erotismo parnasiano. Entretanto, a análise de Sant’anna, ao enfocar a poesia
erótica preferencialmente pelo prisma da interdição, acaba deixando de lado
algumas importantes nuances. O distanciamento — ao instaurar o espaço
necessário à perspectiva voyeurística — opera dentro da
concepção de visualidade do Parnasianismo, que, se elide a possibilidade do
contato entre eu lírico e figura feminina, ao mesmo tempo força ao limite as
normas do decoro estilístico. Subsiste, no voyeurismo parnasiano, a tentação de
mostrar sempre um pouco além do permitido. Para isso, é preciso que tal desejo de
ver conforme-se a uma linguagem depurada de qualquer obscenidade, o que
facultaria ao poeta sua investida no campo minado das fantasias.
Possivelmente,
o poeta que melhor encarnou os dilemas e as ambiguidades do voyeurismo
parnasiano no Brasil foi Raimundo Correia. Para mostrá-lo, limitar-me-ei,
dentre seus poemas que apresentam a nudez feminina como tema, àqueles que, de
alguma maneira, colocam em jogo a questão do olhar.
A avidez do olhar
A estreia
literária de Raimundo Correia acontece em 1879, com o livro Primeiros sonhos. Trata-se de um livro
tipicamente romântico (ultrarromântico, para ser mais preciso), no qual se
sente grande influência de Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu, numa época
em que grande parte da intelectualidade brasileira já acusava o esgotamento do Romantismo. Machado de Assis assim escrevia, também em 79: “(...) acho legítima
explicação do desdém [pelo Romantismo] dos novos poetas: eles abriram os olhos ao som de um lirismo
pessoal, que salva as exceções, era a mais enervadora música possível, a mais
trivial e chocha. A poesia subjetiva chegara efetivamente aos derradeiros
limites da convenção, descera ao brinco pueril, a uma enfiada de coisas piegas
e vulgares”[4]. Não
nos esqueçamos que, um ano antes, o Romantismo fora alvo de jovens poetas nas
páginas do Diário do Rio de Janeiro. Tais poetas publicavam poemas escarnecendo
a velha escola literária, que, por sua vez, era defendida — também em versos —
por poetas mais tradicionalistas, num episódio que ficou conhecido como Batalha
do Parnaso[5]. Não é por
acaso, portanto, que o próprio Raimundo Correia chegue a apontar o caráter
anacrônico de seu primeiro livro[6].
Pouco haveria
o que dizer sobre esse livro, que replica mecanicamente os
lugares-comuns identificados por Mário de Andrade na poesia lírico-amorosa de
nossos românticos, reunidos pelo autor de Macunaíma
sob a definição de “complexo do medo do amor”[7]. Em Primeiros sonhos, encontramos a figura da virgem pudica e
langorosa, o eu lírico tímido e submisso (sempre à beira da paralisia diante da
mulher amada) e a sublimação do sentimento amoroso, destituído de qualquer
conotação erótica. Um tipo de poesia que, ao mesmo tempo em que reúne vários
tropos da tradição lírica europeia (pelo menos desde o Trovadorismo
occitânico), serviu de conveniente meio de expressão a indivíduos formados numa
cultura patriarcal baseada na idealização dos vínculos familiares, na
sacralização da mulher no papel de mãe e na valorização (prescritiva) da
virgindade feminina.
Portanto, é
no segundo livro de Correia — Sinfonias,
de 1883 — que a temática erótica aparece em contornos mais nítidos. Sinfonias é uma obra bastante
representativa de uma época na qual, durante o ocaso do Romantismo, concorriam
várias tendências poéticas, dentre elas um Parnasianismo ainda incipiente. O
livro divide-se em duas partes: na primeira, de natureza mais
propriamente lírica, reminiscências românticas convivem com elementos
parnasianos e outros do “realismo”; na segunda, o que vemos é uma poesia de
caráter político, empenhada num projeto de reforma social modernizante e que se
encaixa no que, à época, era chamado de poesia socialista ou social-realista. A
obra de Raimundo Correia assume uma feição exclusivamente parnasiana apenas a
partir de seu terceiro livro, Versos e
versões, de 1887.
Levando em
conta Sinfonias e Versos e versões, nos quais a temática erótica aparece de maneira mais pronunciada, procurarei ater-me
aos poemas que apresentam características parnasianas, deixando de lado os que,
no primeiro livro, são diretamente filiados à poesia realista, como os sonetos “Na
penumbra” e “Après le combat”.
Para os
propósitos deste ensaio, o mais significativo poema do conjunto é “Plena
nudez”, publicado em Sinfonias.
Embora seja perceptível a inspiração de tal soneto no “Profissão de fé” de
Carvalho Júnior (em que o autor combate os lugares-comuns do lirismo-amoroso
romântico, sobretudo a excessiva sublimação da figura feminina), distingue-se a
eleição do ideal de beleza clássico, considerado perene em contraposição aos
modismos hodiernos. Vamos a ele:
Eu amo os gregos tipos
de escultura;
Pagãs nuas no mármore
entalhadas;
Não essas produções
que a estufa escura
Das modas cria, tortas
e enfezadas.
Quero um pleno
esplendor, viço e frescura
Os corpos nus; as
linhas onduladas
Livres; da carne
exuberante e pura
Todas as saliências
destacadas...
Não quero, a Vênus
opulenta e bela
De luxuriantes formas,
entrevê-la
Da transparente túnica
através:
Quero vê-la, sem pejo,
sem receios,
Os braços nus, o dorso
nu, os seios
Nus... toda nua, da
cabeça aos pés!
O eu lírico
reivindica uma visualização integral das graças feminis da estátua de Vênus,
sem que o pudor do artista lhe oblitere a vista. Na verdadeira arte, a nudez
terá de ser plena, total, radiante, não devendo haver qualquer impedimento ao
olhar. Além disso, a evocação da arte grega como modelo talvez nos remeta a um
relacionamento mais livre com o nu, isento das noções de pecado e vergonha que
caracterizam a civilização judaico-cristã. Um soneto que parece colocar em
prática os princípios defendidos em “Plena nudez” é “Ouro sobre azul”, também
de Sinfonias:
Quando ela, sobre as
águas transparentes,
Surge em casta nudez,
em amor acesa,
A vaga envolve em
ósculos frementes
Todo o corpo da
olímpica princesa.
O misto de luxúria e
de pureza
Dos seus contornos
nítidos, patentes,
É o poema excelso da
Beleza
Em estrofes de Paros,
reluzentes...
Vendo-a assim, cuido
ver, branca de espuma,
Vênus que surge, e da
onda que flutua
No verde flanco
lânguida se apruma;
E soltos, vendo-lhe os
cabelos, cuido
Ver despenhar-se sobre
a deusa nua
Serena catadupa de
ouro fluido...
“Casta
nudez”, “todo o corpo”, “contornos nítidos” e “deusa nua”; embora o poeta não
se detenha em nenhuma parte específica do corpo feminino (com exceção dos
cabelos), a nudez da deusa é sem dúvida o tema principal do poema, como as
passagens coligidas permitem supor. Trata-se de uma visão geral e genérica do
nu, sem o detalhamento requerido em “Plena nudez”: “Os braços nus, o dorso nu,
os seios/ Nus (...)”, mas ainda assim um poema de manifesta sensualidade.
Embora o observador da cena não seja diretamente representado, percebemo-lo nas
seguintes passagens: “Vendo-a assim, cuido
ver (...)” e “(...) vendo-lhe os cabelos, cuido/
ver (...)”. O eu lírico apresenta-se como aquele que frui a brilhante aparição
da deidade nua. Trata-se de uma estratégia distinta da que verificamos no poema
“Aspásia”, de Versos e versões:
Ao clarão oriental do sol;
da balsamina,
Doce, pelo nariz
bebendo a essência fina;
Do lábio a polpa a
abrir, mais úmida e vivaz,
Que a polpa sumarenta
e rija do ananás;
Com as mãos a soster
dos seios copiosos
O gêmeo e branco par,
os dois limões cheirosos,
Os dois globos de neve
humana; e o largo olhar
Embebedando em luz;
toda a se espreguiçar,
Num espreguiçamento e
num bocejo estranho,
Aspásia vacila antes
de entrar no banho...
Como a expelir do sono
os fluidos mais sutis,
Os membros distendia,
às curvas e aos quadris
As linhas
desmanchando, ondulosas, redondas...
(...)
Finalmente ela entrou
na líquida esmeralda,
Pouco a pouco...
meteu, primeiro, o leve pé
De jaspe e rosa, e
após cingia-a já até
Quase ao meio da
branca e deliciosa perna
A água, a se desfazer
numa carícia terna...
Mas um berro brutal,
de súbito, atroou,
E no ambiente aromado
ativo se espalhou
Esse olor especial de que fala, no idílio
Agreste e pastoril das
Éclogas, Virgílio;
Entre as moitas estava
a contemplar-lhe os mil
Encantos da nudez e o
busto feminil,
Com olhos de lascívia
e de volúpia mornas,
Um sátiro enramado, um
Coridon de cornos,
Um bode enfim...
Surpresa, ela olhou para trás,
Estremeceu, e viu-se
então a coisa mais
Estranha e original,
que imaginar se pode: —
O bode a persegui-la,
e ela a fugir do bode!...
Neste poema,
o papel do voyeur é transmitido do eu lírico ao sátiro que observa Aspásia
banhar-se. Aliás, a situação de voyeurismo
estabelecida entre as duas personagens é um dos elementos que contribuem para a
criação da atmosfera erótica do poema, introduzindo uma tensão sexual
inexistente em “Ouro sobre azul”. A consumação do impulso amoroso é uma
possibilidade mantida em aberto, ainda que tal consumação signifique, no fim das contas, um ato de violência sexual. Não esqueçamos que a perseguição da
beldade nua por um ente da floresta é um tema mitológico recorrente, encontrado
também em “O leque”, de Alberto de Oliveira. Outro aspecto interessante a
considerar em “Aspásia” é que nele encontramos o nu mais detalhado da obra de
Raimundo Correia, e o mais sensual. Além de suas diversas informações visuais,
o poema ainda abarca o paladar (o lábio comparado à “polpa sumarenta e rija do
ananás”; a “branca e deliciosa
perna”), o olfato (os seios como “dois limões cheirosos”; o “ambiente aromado
ativo”) e o tato (“A água, a se desfazer numa carícia terna...”), mobilizando uma
gama de sensações.
Agora vejamos
“Noite de inverno”, também de Versos e
versões:
Enquanto a chuva cai,
grossa e torrencial,
Lá fora; e enquanto, ó bela!
A lufada glacial
Tamborila a bater nos
vidros da janela;
Dentro, esse áureo torçal
Do cabelo que, rico,
em ondas se encapela,
Deslaça; e o alvor ideal
Do teu corpo à avidez
do meu olhar revela;
Porque, à avidez do olhar
Do amante, é grato, ao menos,
Dessas noites no longo
e monótono curso,
— Claro como o luar —
Ver um busto de Vênus
Surgir nu dentre as
lãs e dentre as peles de urso.
O corpo da
mulher revela-se como espetáculo à “avidez do olhar” do eu lírico; entretanto,
algo muda de figura. A princípio, a conjunção enquanto sugere uma oposição entre o frio da chuva, com sua “lufada
glacial”, e o ambiente onde eu lírico e sua amada se encontram, que supomos aquecido. Ocorre, todavia, que à medida que sua nudez se
desvela, a mulher torna-se tão fria quanto a noite chuvosa. Seu cabelo é
“áureo” e “rico” como o ouro, elemento mineral; o “alvor” da pele é “ideal”, o
que eleva o corpo feminino além da realidade concreta; o “busto de Vênus” é
“claro como o luar”. A própria escolha do termo “busto”, em detrimento do mais
frequente “colo” ou de “seio”, demonstra a intenção de aproximar a amada de uma
estátua, representando-a fria em contraste com “lãs” e “peles de urso”, que
transmitem a ideia de calor.
Affonso
Romano de Sant’anna aponta outros dois expedientes
pelos quais o teor erótico da poesia parnasiana seria mitigado, além do distanciamento já referido: o esfriamento, em que a figura feminina é
apresentada por meio de “metáforas duras e frias”, e a imobilidade, segundo a qual a mulher é fixada como estátua,
portanto impossibilitada de corresponder ao afeto de seu admirador (o que
chamo, não sei se com alguma originalidade, de complexo de Pigmaleão do Parnasianismo brasileiro)[8]. Ambos os expedientes
podem ser percebidos em “Noite de inverno”. Se em “Ouro sobre azul” e “Aspásia”
o tema mitológico ganha vida, introduzindo o poema num clima de sensualidade,
em “Noite de inverno” a mulher transmudada em estátua de Vênus é investida de
frieza — sua nudez é gélida como o clarão da lua, muito diferente do calor
mediterrâneo que pressentimos nos outros dois poemas.
Aqui surge
uma questão interessante: ao que parece, o tema clássico é o que faculta ao
poeta sua entrada nos domínios do erótico. Chancelados pela tradição como
elementos da alta cultura, tais temas, inúmeras vezes representados na arte
ocidental, perdem qualquer teor obsceno ou perverso que, porventura, pudessem
ter originalmente. Por outro lado, a nudez da mulher contemporânea apresentava-se
de maneira problemática à consciência dos artistas na segunda metade do século
XIX. Em seu livro A pintura da vida
moderna, o crítico de arte norte-americano T. J. Clark reconstitui o
escândalo que o quadro Olympia, de
Édouard Manet, causou ao ser exposto no Salão de Paris de 1865[9]. Entre outras razões para
o escândalo, estaria o fato de Manet, ao representar a nudez de sua figura
central, prescindir de todo o repertório clássico que, por sua natureza
alegórica, garantia ao nu certa dignidade artística, além do que, optando pelo
tema da cortesã, o artista o
apresentava em desacordo com a ideologia da época, que criara um mito social
reconfortante sobre a prostituição, destituindo-a de seu caráter de classe ao
priorizar a imagem da prostituta de luxo. Comentando o nu como gênero da arte
francesa de meados do século XIX, Clark aponta seu convencionalismo
universalizante: “A inevitável força sexual dessa nudez é convertida em várias
ações e atributos, e traduzida numa linguagem opulenta e convencional. O que
resta é um corpo, dirigido ao espectador franca e diretamente, mas em grande
medida generalizado na forma, arranjado num esquema complexo e visível de
rimas, expurgado de particularidades, oferecido como uma versão livre, mas
respeitosa, dos modelos corretos, aqueles que melhor enunciam a natureza”[10].
Olympia (1863) - Édoaurd Manet |
Devemos levar
em consideração que o parnasianismo, incluindo o brasileiro, compartilhava com
a arte academicista francesa do século XIX vários temas. Abundam, na arte do
período, inúmeros nascimentos ou aparições marítimas de Vênus e, se fôssemos
listar os poemas de nossos poetas parnasianos sobre o assunto, a lista seria
enorme. Para ficar em alguns exemplos, citemos, de Raimundo Correia, além do já
apontado “Ouro sobre azul”, o soneto “Citera”, do livro de 1891 (Aleluias). Alberto de Oliveira, por sua
vez, possui o poema “Aparição nas águas” (de seu primeiro livro, Canções românticas) e uma série de três
sonetos intitulada “Afrodite”, presente em Meridionais.
Além disso, Olavo Bilac, com seus poemas “O julgamento de Frineia” e “Aspásia”,
parece dialogar com dois quadros de Jean-Léon Gérôme: Phryné devant l’Aéropage (1861) e Socrate venant chercher Alcibiades chez Aspasie (Idem), respectivamente.
Phryné devant l’Aéropage (1861) - Jean-León Gérôme |
Portanto, o
que temos no poema “Plena nudez” parece ser a defesa do “ideal pagão” caro à
arte europeia do século XIX e que, conforme T. J. Clark, proporcionava “um
espaço no qual o corpo da mulher pudesse ser consumido sem desmedida
prevaricação”[11].
A nudez da mulher contemporânea, ao contrário, ameaçava embaralhar as
categorias sobre as quais estavam fundados os sistemas de representação social
da época. Se, na França, a prostituta ajudava a constituir, por negativo, a
imagem da chamada “mulher honesta”[12], no Brasil, país fortemente marcado por suas origens patriarcais, essa questão mostrava-se ainda
mais sensível.
Mary Del
Priori descreve como a imagem da santa-mãezinha (de inspiração mariológica)
tornou-se um modelo de comportamento às mulheres do Brasil Colonial. Ao longo
dos séculos XVI e XVII, houve a sacralização do papel social de mãe, de modo
que a mulher era restrita aos cuidados da casa e da família, o que a integrava
no projeto colonizador e liberava os esforços masculinos para a produção
econômica e a defesa do território, além de assegurar o contingente de
“portuguesinhos” para levar adiante o processo de colonização. A Igreja, por
sua vez, enxergava na mulher o elo de transmissão da doutrina e dos valores
católicos às gerações futuras (não nos esqueçamos de que isso se dava em pleno contexto da Contrarreforma). Dessa maneira, elege-se o modelo da santa-mãezinha como ideal de
comportamento cujo objetivo era adequar a sexualidade feminina aos rígidos padrões
da moralidade tridentina e instrumentalizar a mulher (isto é, direcionar suas
energias e seu trabalho social) para o esforço colonizador[13].
Atribuía-se
então à mulher, na condição de mãe, uma respeitabilidade que era também marca
de distinção de classes. Numa sociedade em que o sistema produtivo polarizava-se
entre senhores e escravos, a maior parte da população livre vivia numa situação
de aguda instabilidade social, sobrevivendo de expedientes provisórios, o que
podia significar uma existência levada em trânsito, ao capricho das
oportunidades de trabalho. Como consequência, eram comuns nessa parcela da
população as uniões informais, às vezes efêmeras, sem falar que muitas mulheres
pobres, sem meios próprios de subsistência, sentiam-se impelidas a aceitar
arranjos ilegítimos, como o concubinato ou até mesmo a prostituição. Assim, as mulheres de extração mais baixa (muitas delas de origem indígena e africana)
pareciam, aos olhos da casa-grande, moralmente degradadas e destituídas de
qualquer senso de decência. Portanto, a respeitabilidade da mulher de família
patriarcal, estabelecida como norma para o comportamento feminino, devia-se a
determinadas circunstâncias socioeconômicas favoráveis, constituindo um
privilégio para poucas e um ideal a ser perseguido pelas classes menos
favorecidas[14].
É esse o
arcabouço ideológico com o qual a representação do corpo feminino ameaçava
romper, caso não fossem respeitados os protocolos que prescreviam, em se
tratando da nudez, a temática clássica. O perigo era embaralhar as categorias
sociais relativas à condição feminina, gerando um apagamento da fronteira entre
a mulher honesta e a desfrutável, e introduzindo na poesia aspectos que a
moralidade pública preferia manter à margem, como uma sexualidade
não enquadrada nos padrões matrimoniais e familiares. A ausência
daqueles elementos que constituíam as convenções artísticas da época
instaurava, no cerne do poema, um conflito entre o impulso voyeurista (típico
do Parnasianismo, como vimos) e uma preocupação com a dignidade intrínseca da
arte (decoro) e a decência do público. Vejamos, a esse respeito, o soneto “No
banho”, de Sinfonias:
Não eras só na câmera
deserta
Quando o banho tomavas
perfumoso;
Banho feito do aroma
voluptuoso
Que às odaliscas a
Turquia oferta...
Fora — do estio estava
a clama aberta —
Dentro — o sossego
morno e silencioso —
E eu às ocultas te
mirava, ansioso;
Não eras só na câmera
deserta...
E em torno derramaste
o olhar celeste;
Desfolhaste-te, flor;
nu, dentre a veste
Teu colo começou a
aparecer,
E a espalda, e o
dorso... E, vencedor sublime,
Eu, forte, não
perdi-te nem perdi-me,
E ai! podia perder-me
e te perder!
O que temos
aqui não é somente a configuração de uma perspectiva voyeur por meio do
detalhamento pictórico da nudez feminina, mas também a tematização da própria
situação de voyeurismo, em que o eu lírico espiona sorrateiramente uma mulher
que se banha. O voyeur assume o primeiro plano da cena e a excitação que
percorre o soneto dá-se tanto pelo prazer da indiscrição quanto pela nudez em si, esboçada, aliás, apenas nos dois tercetos. O poema
ousa ao não se refugiar no território pacificado das referências clássicas,
apesar de uma episódica alusão às odaliscas (figuras que, devido a seu exotismo
oriental, integravam o rol dos lugares-comuns eróticos aceitáveis na arte do
século XIX), contudo, sua ousadia possui limites claros: a gradação pela qual a
nudez feminina é evocada interrompe-se logo abaixo do dorso, restando ao leitor
completar com a imaginação a lacuna deixada em aberto pelo sinal de
reticências. Logo em seguida, o eu lírico gaba-se de seu autocontrole, pois
poderia ter colocado a perder sua honra e a da mulher caso cedesse aos
desejos que o consumiam. A renúncia ao gozo é motivo de orgulho, uma vez que
preserva os valores que regulam socialmente a vida sexual, mas não se consegue
ocultar a ambiguidade da situação: a contemplação da mulher num momento de
intimidade já é uma transgressão dos valores que o eu lírico julga estar
defendendo.
“No banho” é
um exemplo bastante ilustrativo do embate entre um imperativo visual, que
procura converter a sexualidade em espetáculo, e as normas sociais que
prescrevem a mais severa discrição quanto às coisas do sexo. No soneto de
Raimundo Correia, ambas as forças são tematizadas e tenta-se encontrar um ponto
de equilíbrio entre elas, de modo que uma não seja completamente sacrificada em
favor da outra. Dando continuidade a estas reflexões, passemos ao poema “No
jardim” (Sinfonias):
Estavas no jardim.
Raiara um dia
Fresco, primaveril,
resplandecente;
Nos tanques cheios de
água, intermitente,
Quérulo, o vento as
flores espargia...
Bela, sem que me
visses, eu te via
Colhendo rosas; teu
roupão na frente
Suspenso um pouco,
negligentemente,
Rósea porção da perna
descobria...
Que desalinho cândido!
que braço!
Como enchia-se níveo o
teu regaço
Das flores que
caíam-te da mão!
E mal me viste, em
fogo, te fitando,
Rubra em pejo, a fugir
foste deixando
Uma esteira de rosas
pelo chão...
Embora a
situação e o ambiente representados sejam tipicamente românticos, dignos de um
Casimiro de Abreu, e não haja qualquer referência clássica, o poema é
essencialmente parnasiano, como se pode perceber pela ênfase na descrição em
detrimento do lirismo. O eu lírico, ainda que personificado, praticamente nada
nos fala de suas emoções e sentimentos, restringindo-se a nos apresentar da
maneira mais detalhada e nítida possível a cena na qual participa na condição
de mero espectador, pelo menos até a última estrofe, em que a moça percebe sua
presença. Pode-se dizer que estamos diante de uma cena romântica apresentada de
acordo com princípios formais parnasianos, dando testemunho não só do
hibridismo de Sinfonias, como também
da permanência de elementos românticos na poesia parnasiana de Raimundo
Correia.
Por trás da
aparente inocência do quadro, podemos sentir o erotismo no foco dado à perna parcialmente
descoberta da mulher e ao “níveo regaço” que se vislumbra através de suas
vestes desalinhadas. Basta isso para que o olhar do eu lírico acenda-se “em
fogo”, assustando seu objeto de desejo. Ao contrário do que acontece na poesia
romântica, não é preciso que o poeta insista sobre a pureza de sua amada,
empregando repetidamente qualificativos relacionados à castidade. Em “No
jardim”, tudo o que precisamos saber sobre o caráter da figura feminina está
concentrado em “rubra em pejo” e em sua fuga ao descobrir-se espionada. É a
própria descrição da mulher e a narração dos fatos que nos dão as informações
necessárias, sem que o autor mencione explicitamente as virtudes da mulher
observada. O voyeurismo um tanto idílico deste soneto nos remete à passagem de
uma paráfrase que Raimundo Correia — também em Sinfonias — escreveu a partir de um poema de Victor Hugo que conta
a história do beijo de um jovem casal numa cerejeira:
Quando entre as ramas
via algum fruto maduro,
Como um botão de fogo,
entre os sarçais, vermelho,
Subia mais, mostrando,
em um desleixo puro,
A perna inteira até a
curva do joelho...
A escolha do
poema de Victor Hugo certamente não é fortuita, pois indica uma tendência dos
poemas de Correia e que consiste na apresentação dos olhos como os principais
órgãos de satisfação erótica. Tanto nesta paráfrase quanto em “No jardim”, a
inocência e a graça infantil da mulher amada são o que impedem o olhar do eu
lírico de entregar-se a seus impulsos. Apesar da incorporação cada vez mais
evidente dos princípios parnasianos, mesmo assim fazem-se sentir aspectos
relacionados ao complexo romântico do medo do amor, testemunhando a
continuidade da experiência social que lhe serve de fundamento.
Como podemos
perceber, nesses poemas o olhar do voyeur recua diante de seu objeto de desejo,
seja por sua própria firmeza moral, seja pelo recato da figura feminina. Quando
o poema destaca-se do sistema de convenções clássicas, entram em circulação os
valores morais da sociedade de origem patriarcal, que encontravam no
lirismo-amoroso romântico um meio conveniente de manifestação. Porém, a própria
situação de escopismo neles configurada, que coloca o eu lírico na condição do
voyeur, introduz no poema uma nota perversa (sexualmente falando),
perturbando tanto a resolução moral de “No banho” quanto a atmosfera idílica de
“No jardim”.
Considerações finais
Ao longo do
século XIX, a sociedade brasileira passava por profundas transformações. Uma
das mais significativas foi o deslocamento das elites rurais para as cidades,
processo descrito e analisado por Gilberto Freyre em Sobrados e mucambos[15]. Nas
cidades, as famílias proprietárias entravam em contato com uma realidade social
mais diversificada e complexa, incorporando novas formas de sociabilidade,
inspiradas no estilo de vida burguês das nações europeias industrializadas. Não
demoraria até que os rebentos dessas famílias, educados de acordo com os
sistemas de pensamento mais modernos da época, acabassem por contestar os
fundamentos sobre os quais se estabelecia a sociedade brasileira de então,
combatendo o regime monárquico, a escravidão e os valores patriarcais de nossa
formação cultural (incluindo, aqui, o papel atribuído à mulher). O grande marco
desse impulso reformista da juventude brasileira ficou conhecido
como “Geração de 70” (1870), capitaneada por figuras como Tobias Barreto e
Sílvio Romero.
Contudo, esse
desejo de reforma da sociedade esbarrava num obstáculo: como modernizar a
cultura e o pensamento brasileiros quando nossas estruturas econômicas mantinham-se
basicamente as mesmas desde o período colonial, com a economia voltada ao
fornecimento em larga escala de produtos primários para o mercado
internacional? Situação, esta, que se preservaria, com alterações epidérmicas (como a
substituição da mão de obra escrava pela de trabalhadores em condição de
semi-servidão) até pelo menos a década de 1930. A história do século XIX no
Brasil, como se vê, constituiu-se ao sabor de rupturas e acomodações, entre
descontinuidades e continuidades.
É sobre esse
pano de fundo social de efervescência e sedimentação da cultura brasileira nos
1880 que melhor apreendemos o voyeurismo vacilante de Raimundo Correia. Por um
lado, percebe-se o intuito de levar o erotismo além dos limites estabelecidos
pela moralidade patriarcal, que tão bem se enquadrava na produção
lírico-amorosa de nossos poetas românticos — intuito que se configura
como um desejo de desvelar a nudez feminina. Por outro, a resolução de ver e
representar o corpo da mulher “sem pejo, sem receios” esbarra nos valores
patriarcais, como a sobrevalorização da castidade feminina, tão logo o poeta
abandona o repertório prestigioso das convenções classicistas. Um voyeur
vacilante para uma sociedade que ora parece avançar, ora girar em falso.
Restou,
ainda, para uma oportunidade futura, a investigação daquilo o que Manuel
Bandeira, tratando do erotismo na poesia de Raimundo Correia, identificou como
sendo uma “decantação da nudez”[16],
o que, infelizmente, escaparia aos limites do atual ensaio.
Referências bibliográficas
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ed. São Paulo: Livraria Martins; Brasília: INL, 1972, pp. 197-230.
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brasileiros: poesia da fase parnasiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
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maternidade e mentalidade no Brasil Colônia. 2ª ed. São Paulo: Editora
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SANT’ANNA,
Affonso Romano de. O canibalismo
amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4ª ed.
Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
[1] MONTALEGRE, Duarte de. Ensaio sobre o parnasianismo brasileiro.
Coimbra: Coimbra Ed., 1945, p. 14.
[2] SANT’ANNA, Affonso Romano de. O
canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia.
4ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, pp. 66-73.
[3] Idem, ibidem: p. 74.
[4] ASSIS, Machado de. “A nova
geração”. In: Crítica literária. São
Paulo: Ed. Brasileira, 1959, pp. 181-2.
[5] Segundo Manuel Bandeira, a
designação “parnasianismo” não está vinculada à Batalha do Parnaso. O termo,
tomado de seu correspondente na literatura francesa, teria sido utilizado pela
primeira vez no Brasil em 1886, numa nota crítica de Alfredo de Souza a um
livro de Francisco Lins. BANDEIRA, Manuel. Antologia
dos poetas brasileiros: poesia da fase parnasiana. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996, pp. 7-8.
[6] Ao final de primeiros sonhos, diz Raimundo Correia: “Reconheço,
que há neste meu primeiro trabalho literário composições ridiculamente
contrárias ao espírito da época”. CORREIA, Raimundo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961, p.
120.
[7] ANDRADE, Mário de. “Amor e medo”. In: Aspectos da literatura brasileira. 4ª ed. São Paulo: Livraria
Martins; Brasília: INL, 1972, pp. 197-230.
[8] SANT’ANNA, 1993, p. 74.
[9] CLARK, T. J. “A escolha de
Olympia”. In: A pintura da vida moderna:
Paris na arte de Manet e de seus seguidores. Tradução José Geraldo Couto.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 129-209.
[10] Idem, ibidem: p. 185.
[11] Idem, ibidem: p. 182.
[12] Idem, ibidem: p. 165.
[13] PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina,
maternidade e mentalidade no Brasil Colônia. 2ª ed. São Paulo: Editora
UNESP, 2009, pp. 40-1.
[14] Idem, ibidem: p. 41.
[15] FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. 15 ª ed. São Paulo:
Global, 2004.
[16] BANDEIRA, Manuel.
“Raimundo Correia e seu sortilégio verbal”. In: CORREIA, Raimundo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro:
José Aguilar, 1961, p. 18-9.