sábado, 9 de agosto de 2014

A obsolescência do professor de Literatura



Como professor de Literatura, estou prestes a me tornar tecnologia obsoleta. Isso mesmo: prevejo que, a médio prazo (em pouco mais de uma década, talvez menos), não haverá mais, nas escolas de todo o país, a figura do professor especializado no ensino de Literatura. O motivo é a ascensão do ENEM como o principal exame de seleção de candidatos ao Ensino Superior, o que tende a impactar a organização das escolas de Ensino Médio, voltadas, via de regra, à preparação dos alunos para o ingresso nas instituições universitárias. Isso porque, como demonstrou Luís Augusto Fischer, as questões de Literatura do ENEM tendem a cobrar mais a interpretação do texto literário (“literatura-leitura”) do que sua compreensão como elemento de uma rede de referências inter-relacionadas à qual damos o nome de tradição literária (“literatura-cultura”, nas palavras de Fischer). Segundo o professor da UFRGS, a literatura como campo autônomo do âmbito da cultura — com suas especificidades linguísticas, estéticas e históricas —, estaria sendo negligenciada por uma abordagem instrumental que pouco distingue entre um texto literário e um jornalístico. O que importa é que o aluno consiga apreender adequadamente o significado do que foi lido, não se exigindo dele que considere a literatura como um sistema com determinantes e história próprias.

Tal tendência verificada no ENEM, obviamente, não surgiu do nada. Ela reflete os princípios estabelecidos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), que, desde 1996, oferecem as diretrizes à organização dos currículos escolares em território nacional. Neles, os estudos literários aparecem incluídos na área de Linguagem, Códigos e suas Tecnologias, mesclados com gramática, intelecção, produção de texto e outros quejandos. A proposta é justamente a fusão de conteúdos, como fica claro no seguinte fragmento:

A disciplina na LDB nº 5.692/71 vinha dicotomizada em Língua e Literatura (com ênfase em literatura brasileira). A divisão repercutiu na organização curricular: a separação entre gramática, estudos literários e redação. Os livros didáticos, em geral, e mesmo vestibulares, reproduziram modelo de divisão. Muitas escolas mantêm professores especialistas para cada tema e até aulas específicas como se leitura/literatura, estudos gramaticais e produção de texto não tivessem relação entre si. (grifo meu)

Seguindo os princípios norteadores dos PCN’s, o MEC criou um projeto de reforma do Ensino Médio, segundo o qual a divisão do conteúdo curricular em disciplinas daria lugar à organização em quatro grandes áreas: Ciências Humanas, Ciências da Natureza, Linguagem e Matemática, que é como o ENEM é dividido. A reforma deve pautar obrigatoriamente o currículo das escolas públicas, ao passo que, para as escolas particulares, será facultativa. Permanecendo o quadro que tínhamos antes, o mais provável é que as escolas particulares mantivessem seus currículos como estão; contudo, com a transformação do ENEM na porta de entrada para a grande maioria das universidades federais, a tendência é que tais escolas adiram ao novo modelo, a não ser que o prestígio de algumas grandes instituições estaduais seja o suficiente para que estas, sozinhas, determinem a forma do currículo do Ensino Médio privado, o que eu, pessoalmente, acho difícil. A tendência é que, embora com muita resistência, essas instituições acabem dobrando-se às novas circunstâncias, ou então que, ao lado de um Ensino Médio reformado, multipliquem-se os cursinhos especializados nos vestibulares das universidades que insistirem no modelo atual.

Imagino que o resultado dessa mudança será a diluição do conteúdo hoje ensinado em Literatura no conteúdo propriamente linguístico. Assim, utilizar-se-ia o texto literário como suporte para atividades como as de interpretação, análise gramatical e redação, acompanhadas de algumas informações de natureza histórica e biográfica sobre a obra e o escritor. Por sua vez, o conhecimento técnico-teórico acerca do objeto literário poderia muito bem ser incorporado às atividades de produção de texto. Consequentemente, haveria uma preferência pela utilização de fragmentos e textos curtos, como crônicas, poemas, letras de música etc., e um aluno poderia terminar o Ensino Médio e ingressar no Superior sem nunca ter lido um livro inteiro (algo que o ENEM, que não possui uma lista de leituras obrigatórias, já possibilita). Parece lamentável, não? Talvez não seja.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que o currículo do Ensino Médio possui um volume acachapante de informações. O conteúdo é muito extenso e em grande parte irrelevante para os alunos que não pretendem especializar-se em determinadas áreas, incluindo aqui a Literatura. E o pior: diante da necessidade de se incorporar ao currículo um novo conteúdo, a tendência é criar novas disciplinas, levando não só a uma saturação de informações, como também a um aumento da carga horária e dos custos da educação, tanto no setor privado quanto no público. Uma opção mais viável, a meu ver, seria que esse novo conteúdo fosse tratado de maneira transversal e abordado em diferentes disciplinas de acordo com suas afinidades e interseções com os conteúdos já estabelecidos.

A verdade é que o ensino de Literatura nas escolas de Ensino Médio atende hoje a um objetivo muito específico e simplista: preparar o aluno para o ingresso nas instituições universitárias do país, por isso a mudança nos meios de seleção provavelmente causará sobre ele um impacto devastador. Mesmo nos melhores colégios e nos materiais didáticos mais prestigiados, prevalece o contato com paráfrases e fragmentos, sem que o aluno desenvolva familiaridade com o texto literário propriamente dito. Quando é exigida a leitura de uma obra mais extensa, geralmente o que se procura fazer é chamar a atenção para aqueles aspectos que têm maior chance de serem cobrados numa prova de vestibular, ou seja: os alunos leem para responder questionários (quando leem). E não estou falando apenas de uma questão de ênfase naqueles conteúdos mais caros ao vestibular, mas da própria estrutura da disciplina, que determina desde o que é ensinado até a elaboração do material didático e a abordagem do professor em sala de aula. Aliás, a situação transcende o âmbito do processo ensino/aprendizagem, pois envolve uma série de expectativas sociais da parte dos administradores de escola, das famílias e dos próprios alunos. O professor que deseja escapar do esquema utilitário voltado ao vestibular tem quase tudo contra si. É claro, estou falando do contexto das escolas particulares, que é o que conheço mais de perto.

Pela maneira como o ensino de Literatura configura-se hoje, ouso dizer que não fará muita falta quando (ou se) for abolido. Mas isso não significa dizer que a literatura seja irrelevante ou que ela não tenha com o que contribuir na formação intelectual e mesmo afetiva de nossos jovens. Se quisermos realmente insistir na manutenção da disciplina na grade curricular do Ensino Médio, temos de nos questionar por que ensinar Literatura. Ou melhor: qual a importância da literatura na formação dos indivíduos? Apenas respondendo a essas perguntas poderemos orientar nossas práticas pedagógicas em direção a uma abordagem mais enriquecedora do texto literário, o que é, certamente, assunto para um próximo post.

sábado, 2 de agosto de 2014

Desconversando sobre literatura: o ensino de Literatura de acordo com os PCN's


Estou escrevendo um texto que pretende ser uma reflexão sobre o ensino de Literatura. Durante as pesquisas para escrevê-lo, recorri, previsivelmente, aos Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante PCN’s), que estabelecem as diretrizes que orientam a educação no Brasil. Encontrei lá algumas coisas que não conseguirei deixar de discutir, por isso resolvi escrever o texto presente, para não saturar demasiadamente o outro. O que me chamou a atenção está nos seguintes parágrafos:

Os estudos literários seguem o mesmo caminho. A história da literatura costuma ser o foco da compreensão do texto; uma história que nem sempre corresponde ao texto que lhe serve de exemplo. O conceito de texto literário é discutível. Machado de Assis é literatura, Paulo Coelho não. Por quê? As explicações não fazem sentido para o aluno.
Outra situação de sala de aula pode ser mencionada. Solicitamos que os alunos separassem de um bloco de textos, que iam desde poemas de Pessoa e Drummond até contas de telefone e cartas de banco, textos literários e não-literários, de acordo como são definidos. Um dos grupos não fez qualquer separação. Questionados, os alunos responderam: “Todos são não-literários, pois servem apenas para fazer exercícios na escola.” E Drummond? Responderam: “Drummond é literato, porque vocês afirmam que é, eu não concordo. Acho ele um chato. Por que Zé Ramalho não é literatura? Ambos são poetas, não é verdade?”.

Tenho uma hipótese de por que as explicações não fazem sentido para os alunos. Eles não conseguem entender por que Machado é literatura e Paulo Coelho, não, simplesmente porque ambos são literatura. Tanto a obra do bruxo de Cosme Velho quanto a do mago das letras contemporâneas são de natureza literária. Há uma confusão aqui entre literatura (objeto) e Literatura (disciplina). A primeira representa o conjunto dos textos literários, a segunda, a organização dos conhecimentos acerca da literatura numa unidade curricular, com uma função didática. Diante da falta de entendimento do aluno pela ausência de um Paulo Coelho no currículo escolar, o professor deveria explicar que a literatura não se resume àquilo o que se estuda nas aulas de Literatura. Em seguida, deveria ensiná-los que, devido à impossibilidade de se abordar todas as obras no período limitado da formação escolar, é necessário fazer uma seleção que responde a certos critérios e, se for caso, expor quais são. É importante apontar que esses critérios, ainda que arbitrários, não são aleatórios. Talvez aí a explicação comece a fazer algum sentido.

É curioso que os autores dos PCN’s confundam a “discutibilidade” do conceito de literatura, que é uma questão teórica, com a arbitrariedade na composição do corpus das obras que compõem o currículo escolar, o que é uma questão didática. Sabe-se que não há um conceito fechado sobre o que é a tal da literariedade (o conjunto de características que definem um texto como literário), mas existe, sim, uma noção historicamente construída sobre o que pode ser considerado literatura. Por exemplo: ninguém discute que a Divina comédia, de Dante Alighieri, é uma obra literária, porém é possível discutir se a carta de Pero Vaz de Caminha relatando a descoberta do Brasil possui ou não uma dimensão literária. Pode-se discutir, também, se o Manifesto comunista possui algum componente literário, dificilmente, no entanto, ocorrerá a alguém dizer que se trata de um texto literário em sentido estrito. Isso é muito diferente de adotar um relativismo conceitual absoluto, que parece ser o que os autores sugerem. Já a discussão sobre a composição dos currículos de Literatura, embora subordinada à discussão teórica acerca do que é a literariedade, responde a critérios que não se limitam ao âmbito literário; ela se dá tendo em vista a função social da literatura e as expectativas que temos em relação ao ensino da Literatura. Mudando tais expectativas, mudam os critérios que determinam a seleção das obras.

Outro problema no que dizem os autores está na possibilidade de eleição do subjetivismo, do gosto pessoal, como critério de seleção das obras estudadas. O fato de os alunos acharem Drummond “um chato” não anula outro fato, este mais importante, de que o poeta itabirano é um dos escritores mais relevantes da literatura brasileira e que sua ausência no currículo escolar acarretaria uma grande falha na formação cultural dos estudantes. Creio que Matemática seja uma das matérias mais impopulares. Contudo, não passa pela cabeça de ninguém excluí-la do currículo do Ensino Básico. Não seria ridículo, para dar outro exemplo, excluir citologia do currículo de Biologia apenas porque os alunos, porventura, achem tal conteúdo “chato”? Os alunos estão em processo de formação; isso quer dizer que ainda não detêm o conhecimento que lhes permita discernir o que será ou não necessário para seu futuro ou reconhecer quais são as expectativas que a sociedade nutre em relação a um indivíduo escolarizado. A responsabilidade de filtrar o que, entre as informações existentes, é pertinente aos alunos — de acordo com seu nível de escolaridade — é das instituições educacionais.

Mas então quais são os critérios que determinam os escritores estudados no Ensino Básico? O irônico é que é justamente isso o que eu esperava encontrar num documento que tem por objetivo orientar a composição do currículo nacional...

É possível discernir vários critérios, o mais óbvio deles é o fato de as obras estudadas se limitarem geralmente às escritas em língua portuguesa, como forma de propiciar uma identificação com a cultura e a história nacionais, e gerar um conhecimento sobre estas, além de auxiliar no domínio da língua materna, apresentando aos alunos algo do que de melhor já foi produzido em português. Outro critério passa pela constituição de uma tradição literária: as obras, ao serem produzidas, costumam estabelecer um diálogo com aquelas que lhe antecederam, de modo a tomá-las como referência e inspiração. Cria-se assim um sistema inteligível de relações que, mais ou menos fechado, permite apreender de maneira eficiente a evolução (ou desenvolvimento) de uma determinada série literária através da história. Nas aulas de Literatura, as obras costumam ser consideradas a partir de suas relações com o conjunto dos textos literários aos quais elas se remetem de maneira mais imediata. Um terceiro critério que pode ser apontado diz respeito menos à literatura em si do que à dinâmica do campo acadêmico dos estudos literários: obras mais estudadas por especialistas adquirem maior visibilidade no meio intelectual e deixam atrás de si uma fortuna crítica que estabelece parâmetros confiáveis de leitura e, com o passar do tempo, passam a integrar o currículo do Ensino Básico.

Como já foi dito, tais critérios são arbitrários e podem ser discutidos, modificados e até mesmo substituídos, mas eles existem. A seleção das obras estudadas não resulta apenas do capricho dos professores e dos estudiosos. Entretanto, há um critério que considero o mais importante e que deveria subjazer a todos os outros.

Segundo Ezra Pound em ABC da Literatura, “Literatura é linguagem carregada de significado”, sendo que “grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível” (POUND, s.d., p. 32). Partindo da ideia de que, na obra literária, o signo linguístico assume uma dimensão “plurissignificante” (isto é, apresenta a capacidade de se desdobrar em diversos significados), podemos dizer que maior é a qualidade de um texto quanto mais possibilidades de leitura ele permita, ou quanto mais níveis de compreensão ele apresente. É isso o que explica que certas obras sejam estudadas sistematicamente por séculos sem que se esgote o que elas têm a dizer, suscitando o interesse do público de diferentes épocas. Quando selecionamos os autores que serão estudados pelos alunos, devemos dar preferência àqueles cuja obra traga maior gama de virtualidades interpretativas. Assim distinguimos um Machado de Assis de um Paulo Coelho, ou um Drummond de um Zé Ramalho. E como o educador pode saber quais são os textos mais produtivos, semanticamente falando? Espera-se que um professor da área de linguagem tenha proficiência na interpretação de textos e certa familiaridade com a tradição de estudos das obras literárias, o que lhe permitiria perceber quais obras representarão um ganho efetivo de aprendizagem para o aluno.

Por mais que a ênfase na “alta literatura” possa ser confundida com esnobismo intelectual, não se pode ignorar que uma das funções da escola é apresentar ao aluno referências com as quais ele ainda não possui familiaridade, permitindo-lhe ampliar sua visão de mundo. É demagógica uma valorização da cultura popular que exclua o contato com produtos culturais mais complexos e sofisticados. Os alunos não precisam da escola para conhecer as canções de Zé Ramalho (que vira e mexe fazem parte da trilha sonora de telenovelas de grande audiência), mas, infelizmente, o mesmo não pode ser dito da poesia drummondiana. Sem falar que, para se ler Drummond, exigem-se competências de leitura mais avançadas do que as necessárias à compreensão de um texto ficcional cuja única finalidade é o entretenimento, competências que cabem aos educadores ajudar a desenvolver. Privar os alunos do contato com o que de mais sofisticado nossa literatura já produziu é também uma forma de exclusão, de natureza intelectual e cultural. É negar ao estudante a possibilidade de se aprimorar linguística, cognitiva e mesmo emocionalmente, pois a literatura pode desempenhar um papel importante na formação afetiva dos indivíduos.

Está claro que a proposta pedagógica por trás dos PCN’s passa pela integração das atuais disciplinas numa unidade curricular maior, chamada de “área” (no caso, Literatura, Gramática e Produção de Texto, assim como línguas estrangeiras e — pasmem! — Educação Física, comporiam a área de Linguagem). Contudo, a abordagem equivocada e superficial dada pelos autores à literatura mostra a falta que faz um conhecimento pouco mais delimitado sobre o assunto... Não há qualquer indicação no sentido de se considerar o que o texto literário possui de específico e que o distingue, por exemplo, de uma conta de luz ou de uma bula de remédio. Ao que parece, os autores subscrevem tal confusão. Tratada de forma indistinta em relação às demais manifestações linguísticas (restrita à função de transmitir uma mensagem), a literatura perde a maior parte de seu potencial formativo.
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