Detalhe de "Musa Impassível", estátua em mármore de Victor Brecheret para o túmulo de Francisca Júlia. |
Texto apresentado no XV Congresso de Estudos Literários da UFES
Francisca Júlia da Silva foi uma poetisa da segunda geração do parnasianismo brasileiro, nascida em Xiririca — atual Eldorado — no interior paulista, e incluída por Mário de Andrade entre os cinco “mestres do passado” em seu necrológio à poesia parnasiana publicado em 1921, no Jornal do Comércio. Mesmo tendo deixado uma obra razoavelmente pequena, angariou considerável prestígio literário por seus poemas impressos em jornais tanto de São Paulo quanto do Rio de Janeiro, chamando a atenção de vários intelectuais de destaque da época. A publicação de seus dois livros principais, Mármores e Esfinges (este último uma espécie de versão revista e ampliada, com algumas supressões, do primeiro), apenas confirmou sua posição como um dos nomes mais aclamados da poesia brasileira do final do século XIX e início do XX. Para muitos, Francisca Júlia foi, entre nós, quem mais fielmente seguiu o modelo do parnasianismo francês (RAMOS, 1961, p. 28), enquanto outros poetas, em geral, tendiam a amaneirar e a temperar os rígidos preceitos da escola literária com o passar do tempo. Apesar disso, a poetisa paulista também flertou com o simbolismo na vertente mística de sua obra.
Desde o princípio, uma das características que mais chamou a
atenção da crítica em sua obra foi certo acento másculo de sua poesia, um estilo
que poderíamos definir como “viril”. A publicação do soneto “Paisagem” em A Semana, a 13 de outubro de 1894, levou
Artur Azevedo, Valentim Magalhães, Araripe Júnior e Lúcio Mendonça a duvidarem
que o autor do poema fosse realmente uma mulher. O mais incrédulo de todos,
porém, foi o crítico e poeta João Ribeiro, que, imaginando tratar-se de um
poema de Raimundo Correia, respondeu à “poetisa imaginária” com uma espécie de
pastiche do estilo utilizado na composição do soneto. Desfeito o equívoco, o
crítico escreveria o prólogo de Mármores,
de 1895.
Em tal prólogo, após fazer o mea culpa em relação a sua leitura inicial da obra de Francisca
Júlia — e se defender das acusações, segundo ele injustas, de que “só via nas
mulheres as aptidões inferiores das cozinheiras” (SILVA, 1902, p. I) —, João
Ribeiro afirma: “E todos nós inquiríamos se era verdadeiramente de mulher
aquele coração enérgico e possante, capaz de propelir o sangue de um milhão de
artérias” (Idem, p. III). Isso porque
os versos da poetisa paulista destoavam da “banalidade vulgar e desolante do
comum das poesias escritas outrora por mulheres” (Idem, idibem, p. IV), caracterizada por uma “languidez antipática e
irracional”, da parte de meninas “rubicundas e gordas (...) algumas até
glutonas” que “andavam a chorar pelos cantos da casa e a morrer em cada verso”
(Idem, ibidem, pp. IV-V).
Em outros termos, o que João Ribeiro parece acusar em tal
produção poética feminina é a permanência de certos lugares-comuns do
romantismo, que há muito haviam caducado. Foi justamente essa visão lânguida e
enfermiça da mulher que Carvalho Júnior combatera no soneto “Profissão de fé”,
reunido no livro póstumo Parisina, de
1879. No soneto, o poeta declara seu ódio às “virgens pálidas, cloróticas” do
romantismo, preferindo “a exuberância dos contornos,/ As belezas da forma, seus
adornos,/ A saúde, a matéria, a vida enfim”. Some-se a isso o seguinte
comentário de João Ribeiro: “Francisca Júlia tem pouco mais de vinte anos de
idade. Sente-se a custo, às vezes, nas suas produções, a ternura dos verdes
anos que só a adolescência é capaz de sugerir e realizar, porque a frieza
clássica de seus versos é absoluta”, e percebe-se que o crítico, ele também
poeta parnasiano, parece estar contrapondo a excelência artística da autora de Mármores ao público que, via de regra,
era relacionado ao romantismo: mulheres e jovens, principalmente estudantes.
É nesse contexto que Francisca Júlia, mulher e ainda por
cima na flor da idade, procura galgar os degraus mais altos da carreira
literária. Numa carta de 1894, endereçada a Max Fleiuss, a poetisa evidencia
como lhe calou fundo a crítica de Severiano de Rezende, quando da publicação de
seu primeiro poema na imprensa. Severiano teria lhe dado o seguinte conselho:
“Minha senhora, há ocupações mais úteis: dedique-se aos trabalhos de agulha”
(RAMOS, op. cit., p. 6). Não é por
acaso, portanto, que Francisca Júlia desenvolveu um estilo absolutamente contido,
no qual se procura apagar qualquer traço de feminilidade. No afã de desvincular
sua poesia dos estereótipos relacionados à condição feminina numa sociedade
ainda muito atrelada aos valores patriarcais (fundamentados, segundo Gilberto
Freyre, numa profunda especialização dos sexos — FREYRE, 2004, pp. 207-8), a
autora de Esfinges acabou por elidir
ou sublimar de sua obra a sexualidade em geral, ou ao menos foi isso que pretendeu
fazer. Também não deve ter sido casual o fato de Francisca Júlia, depois de
algum tempo, ter se afastado dos círculos literários para abraçar uma vida
doméstica, assim como sua aproximação de uma poesia mística e devocional, mais
de acordo com as expectativas que se tinha em relação ao papel da mulher na
sociedade brasileira. O universo familiar pode ter se tornado inconciliável com
sua persona pública e literária,
projetada tanto em sua obra poética quanto entre os meios letrados. Mas isso
tudo, é claro, são suposições. O que me interessa agora é mostrar como
Francisca Júlia logrou obter esse estilo “másculo” de escrita que tanto
surpreendeu seus contemporâneos.
Um estilo vigoroso
Pode-se dizer que há no parnasianismo um predomínio de
aspectos descritivos sobre o lirismo, como destaca Mário de Andrade em relação
a Castro Alves, que, segundo o autor de Macunaíma,
foi uma espécie de precursor de nossos poetas parnasianos (ANDRADE, 1972, p.
120). Isto é, mais do que expressar estados psicológicos, importava apresentar
da maneira mais nítida e exata possível as situações e os objetos que compõem o
assunto do poema. Disso resulta a tão propalada objetividade parnasiana,
segundo a qual o conteúdo era captado por uma perspectiva externa ao que está
sendo representado, perspectiva essa que nem sempre chegava a se configurar
como eu lírico. O extremo de tal tendência consistiria na ideia de impassibilidade, que preconizava o mais
completo distanciamento dos planos da enunciação e do enunciado no que se
refere ao teor emocional do que é narrado ou descrito. Tanto o mais excruciante
sofrimento quanto a mais esfuziante das alegrias deveriam ser abordados por um
mesmo tom analítico, equilibrado e racional.
Ocorre que tais preceitos de objetividade e impassibilidade
(sobretudo o último) nunca foram rigorosamente respeitados no parnasianismo
brasileiro, flanqueados que eram pelo pendor lírico de nossos poetas. Como
afirma Manuel Bandeira: “(...) a diferença dos parnasianos em relação aos
românticos está na ausência não do sentimentalismo, que sentimentalismo, entendido
como afetação do sentimento, também existiu no parnasianismo, mas de uma certa
meiguice dengosa e chorosa, bem brasileira aliás” (BANDEIRA, 2009, p. 100).
Contudo, Francisca Júlia foi quem mais longe levou a obediência a esses
preceitos, tornando-se a mais impassível de nossos parnasianos. Cabe questionar
se isso não se deu porque a prescrição de impessoalidade lhe oferecia as
circunstâncias para o apagamento de qualquer marca de fragilidade ou
vulnerabilidade que poderia ser creditada a sua condição feminina.
A parte mais significativa da obra de Francisca Júlia —
aquela propriamente parnasiana e que se limita, por um lado, pelos poemas
iniciais (alguns dos quais refugados na preparação de Esfinges) e, por outro, pela poesia mais espiritualizada —
caracteriza-se por um distanciamento olímpico da perspectiva estruturante do
poema em relação ao assunto. Destacam-se nesse conjunto verdadeiros “quadros” e
a composição de cenas sem a mínima interferência emocional do eu lírico. Isso
não significa que, na poesia de Francisca Júlia, encontramos um tom neutro e
anódino. Na realidade, há nela frequentemente um ímpeto retórico, como podemos
perceber no primeiro quarteto do soneto “Os argonautas”:
Mar fora,
ei-los que vão, cheios de ardor insano;
Os astros e o
luar — amigas sentinelas —
Lançam bênçãos
de cima às largas caravelas
Que rasgara fortemente
a vastidão do oceano.[1]
Há uma tentativa de emprestar dramaticidade à cena, que é descrita
de maneira dinâmica: “ardor insano” e “fortemente”, que evidenciam a energia e
a coragem necessárias à superação das dificuldades, contrapõem-se a “amigas
sentinelas” e “bênçãos”, que expressam a tranquilidade das altas esferas astrais,
causando um efeito de contraste. Os homens se debatem freneticamente contra as
forças da natureza, embora os astros, em sua calma inquebrantável, estejam a
seu favor.
O expediente literário empregado nessa passagem é a hipotipose, que, na definição de Umberto
Eco, constitui um conjunto variado de técnicas descritivas que têm como
objetivo produzir, por meio da linguagem verbal, impressões visuais ao ouvinte
ou leitor (ECO, 2003, pp. 170-1). Difere-a da mera descrição o fato de, com
ela, o autor perseguir determinados efeitos artísticos, agindo sobre a
sensibilidade estética dos receptores ao criar uma imagem vívida e sugestiva das
situações e dos objetos representados. Francisca Júlia, ao lançar mão da
hipotipose, mantém suspenso qualquer juízo subjetivo em relação ao que é
descrito. Não há empatia, apenas a intenção de impactar o leitor com um estilo
vigoroso, apelando para os sentidos e não para as emoções; tampouco há, em seus
poemas, o convite a uma reflexão sobre as condições da existência humana.
E foi o estilo vigoroso da poetisa — caracterizado pela escolha de termos
que expressam força, intensidade e movimento —, aliado a uma contenção
emocional espartana, que surpreendeu seus contemporâneos justamente por se
originar num “coração de mulher”, considerado mais terno e delicado.
Impermeável ao drama humano e alheia à complicação psicológica, a vertente
estritamente parnasiana da poesia de Francisca Júlia suscita inúmeras sensações
no leitor, mas não permite a emoção; impressiona, mas não comove. É o ideal de
poesia expresso no poema “Musa Impassível I”, no qual o eu lírico, ao mesmo tempo
em que diz não querer que “um gesto sequer de dor ou de sincero luto” enfeie a
face de sua musa, pede-lhe “Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,/ Ora
o áspero rumor de um calhau que se quebra,/ Ora o surdo rumor de mármores
partidos”. Vejamos, de agora em diante, como se dá a questão do erotismo ou da
sensualidade em tal poesia.
A sensualidade em Francisca Júlia
A princípio, falar de erotismo em Francisca Júlia pode parecer uma
impropriedade, pois os elementos eróticos de sua poesia, quando os há, aparecem
quase sempre muito sublimados. A exceção está naqueles poemas em que é
representado o nu feminino de acordo com as convenções do parnasianismo, como
nos sonetos “Anfitrite” e “Rainha das águas”, este último dedicado a Alberto de
Oliveira — autor de “Aparição nas águas” e de uma série de três sonetos
dedicados a Afrodite, que parecem ter servido de inspiração ao poema de
Francisca Júlia.
“Anfitrite” talvez seja o poema da poetisa em que a nudez é desvelada de
maneira mais clara: “Surge, esplêndida e vem, envolta em áurea bruma,/
Anfitrite; e, a sorrir, nadando à tona d’água,/ Lá vai... mostrando à luz suas
formas redondas,/ Sua clara nudez salpicada de espuma,/ Deslizando no glauco
amículo das ondas”. Ainda assim, a nudez é sumária, genérica, dispensando detalhes
e especificações, e a figura que deveria ser a central do poema, Anfitrite,
aparece somente ao nono verso. A maior parte do poema, o que inclui os dois
quartetos iniciais, foi gasta na criação da ambientação, na representação do
cenário que serve de fundo à deidade nua, de modo que há um sutil deslocamento
do motivo principal para o segundo plano.
Quando comparado aos poemas de Alberto de Oliveira que abordam tema
semelhante, o soneto de Francisca Júlia revela uma grande diferença, pois, nos
poemas de Oliveira, o corpo feminino, com riqueza relativa de detalhes, é o
interesse central. Essa diferença se torna ainda mais patente em “Rainha das
águas”, em que a figura feminina, no primeiro quarteto, é metonimicamente
evocada apenas por sua boca e cabelos (“Mar fora, a rir, da boca o fúlgido
tesouro/ Mostrando, e sacudindo a farta cabeleira, [...]”), sem ser sequer
nomeada, para reaparecer apenas no último verso, com o sol refletindo na coroa
que adorna a “cabeça real da bela soberana”. Toda a rainha das águas, que dá
título ao poema, resume-se a isso: o “fúlgido tesouro” da boca, a “farta
cabeleireira” e a “cabeça real”. Entre os dois primeiros versos e o último (por
onde se espalham os parcos indícios da soberana), a longa descrição de uma cena
marítima. O corpo foi totalmente elidido, submerso.
Na obra de Francisca Júlia, há uma relutância geral com a sensualidade,
da qual a elisão do corpo feminino é apenas uma manifestação. Para ficar ainda
nos motivos marítimos, consideremos o poema “A ondina”, no qual a figura
feminina, que corre nua na praia, com os cabelos soltos (mais uma vez, uma
nudez genérica, sem detalhamento) é surpreendida por um monstrengo surgido das
sombras, que começa a persegui-la, até que o mar a esconda em seu regaço. A sexualidade
em Francisca Júlia, quando chega a se apresentar, é sempre de forma ameaçadora,
neste caso, como uma possibilidade de estupro.
Em “A dança das centauras”, temos um grupo dessas criaturas mitológicas
envolvido numa espécie de jogo marcial. Elas dançam e lutam com a brancura dos
seios “pompeando à luz” e o “cabelo solto ao léu”, enquanto terçam armas. Não
há qualquer conotação erótica em sua nudez e estamos numa atmosfera guerreira,
até mesmo violenta. A partir do primeiro terceto, tais figuras amazônicas fogem
em debandada pelo aparecimento de Hércules brandindo, com o “heroico braço”,
sua “clava argiva” (imagem de evidente conotação fálica). É como se o célebre
herói, símbolo máximo de força e virilidade entre os gregos antigos, rompesse o
círculo de uma feminilidade autocentrada, que se faz autônoma em relação ao
sexo masculino pela incorporação de características deste (não por acaso,
centauros são seres híbridos). O contato com o sexo oposto, que suspende o jogo
e a luta, isto é, o clima de liberdade e coragem, não pode ser sentido senão
como promessa de aniquilamento. A introdução da presença masculina no poema vem
desfazer a fantasia de um universo feminino autodeterminado. Nada mais
compreensível considerando o contexto histórico-social de Francisca Júlia, no
qual o poder estava distribuído desigualmente entre os sexos e a mulher
mantinha-se sujeita à autoridade patriarcal.
Mas ainda mais do que isso: o surgimento de Hércules, repondo os lugares
de gênero, promove a sexualização de tal universo, sustando o aparente recato
da nudez das centauras. Elas fogem certamente dos braços de Hércules, notório
matador de monstros, mas será que não fogem também de seus olhos, por meio dos
quais são obrigadas a reconhecer a dimensão sexual de seu próprio corpo?
É interessante perceber que tanto “A ondina” quanto “A dança das
centauras” colocam em jogo o tema da fuga. Foge-se, nos dois casos, de uma
presença masculina ameaçadora que traz consigo a sombra de uma sensualidade que
se pretendia manter afastada. Os poemas colocam em jogo, em suma, o medo do
sexo.
A mulher-carrasco
No que se refere às personagens femininas da obra de
Francisca Júlia, as mais peculiares são aquelas encontradas nos dois sonetos da
série “Musa Impassível” e em “Vênus”. No primeiro “Musa Impassível”, há um
clamor para que a musa mantenha a mais glacial indiferença diante do sofrimento
humano:
Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.
Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.
Já no segundo soneto da série, o eu lírico pede à musa para
que o transporte aos “Olímpicos-Lares”, “onde os Deuses pagãos vivem
eternamente” e de onde se pode ver “os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo”.
Mas o que nos interessa é a evocação: “Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,/
Gela o sorriso ao lábio e às lágrimas estanca!”. “Sobrecenho austero”, “olhar
de pedra” e sorriso gelado são as características dessa figura feminina nada
maternal, insensível e absorta com os vultos grandiosos da literatura ocidental
e da mitologia grega. O mais curioso, todavia, é quando tais características
são atribuídas, num outro soneto, também à deusa Vênus, justamente a deusa do amor e da beleza entre os
antigos:
Branca e hercúlea, de pé, num bloco de Carrara,
Que lhe serve de trono, a formosa escultura,
Vênus, túmido o colo, em severa postura,
Com seus olhos de pedra o mundo inteiro encara.
Um sopro, um quê de vida o gênio lhe insuflara;
E impassível, de pé, mostra em toda a brancura,
Desde as linhas da face ao talhe da cintura,
A majestade real de uma beleza rara.
Vendo-a nessa postura e nesse nobre entono
De Minerva marcial que pelo gládio arranca,
Julgo vê-la descer lentamente do trono,
E, na mesma atitude a que a insolência a obriga,
Postar-se à minha frente, impassível e branca,
Na régia perfeição da formosura antiga.
Vênus também é impassível, feito a musa, e, também como
esta, possui “olhos de pedra”. Sua postura é severa, seu porte é majestático e
sua atitude, insolente. Não há nada de amoroso ou de sedutor nessa deusa, à
qual veio se colar a imagem da deusa da guerra Minerva. Se Vênus nasce do
esperma de Urano derramado nas águas do mar, surgindo já adulta em sua radiante
nudez, Minerva nasce da cabeça de Júpiter, também adulta, porém vestida de
armadura (e, além disso, permanece virgem). Há um simbolismo contraditório na
Vênus de Francisca Júlia. Como se não bastasse, ela ainda é classificada, logo
de saída, como “hercúlea”. Se em “A dança das centauras” Hércules aparece como
o princípio masculino que vem ameaçar um universo feminino fechado sobre si mesmo,
em “Vênus” é esse próprio princípio que é incorporado à imagem feminina. Menos
deusa do que estátua, menos amante do que guerreira, ela é andrógina e, talvez
por isso mesmo, autossuficiente.
A Vênus de Francisca Júlia remete a outra Vênus: Wanda, personagem
de A Vênus das peles, de Sacher-Masoch;
tanto ela quanto a Musa Impassível apresentam elementos que as aproximam da
mulher-carrasco na fantasia masoquista. Segundo Delleuze, em Sacher-Masoch: o frio e o cruel, o que
define a mulher-carrasco do masoquismo não é seu prazer em causar sofrimento —
ao contrário do que afirma a concepção tradicional que vê sadismo e masoquismo
como perversões complementares —, mas sua capacidade de fazer sofrer sem ceder
à compaixão; “sem piedade, mas sem ódio”, nas palavras de Dragomira, heroína de
A pescadora de almas, outro romance
de Masoch (apud DELLEUZE, 2009, p.
42). Na verdade, na obra de Masoch, uma mulher nunca se torna algoz cedendo à
inclinação de sua natureza (o que a tornaria essencialmente sádica), mas por
meio de um processo pedagógico no qual a vítima vai gradativamente adequando sua
parceira a seus desejos autopunitivos.
Na porção estritamente parnasiana da obra de Francisca
Júlia, vemos uma tentativa de afastar qualquer resquício de sensualidade como
forma de elidir do texto marcas de feminilidade (sejam elas biológicas ou
culturalmente construídas), tanto no estilo utilizado quanto no tratamento dado
aos temas. Como consequência, há um recrudescimento de uma espécie de
feminilidade intransitiva que se dá por meio da incorporação de traços
convencionalmente atribuídos ao sexo masculino. Há uma recusa dos papéis de mãe
e de amante, resultando na imagem de uma mulher fria, impedida de se afeiçoar,
pois talvez haja a percepção de que são justamente os vínculos formados pelo
afeto que ameaçam a autonomia da mulher; e isso num nível provavelmente
inconsciente. Entretanto, a sensualidade abafada acaba retornando de forma
enviesada, por meio de elementos sutilmente masoquistas.
Em “O mergulhador”, inspirado num tema de Murger, o poeta é
comparado a um mergulhador que desce ao fundo do mar — no palácio das sereias —
atrás da pérola mais rara para adornar os cabelos de uma “clara rainha”, que é
quem lhe exige a façanha. Percebemos um jogo amoroso que consiste na sujeição a
uma figura feminina majestática e caprichosa. Porém o exemplo mais explícito de
verdadeiro gozo masoquista está no poema “Dona Alda”:
Hoje D. Alda madrugou. Às costas
Solta a opulenta cabeleira de ouro,
Nos lábios um sorriso de alegria,
Vai passear ao jardim; as flores, postas
Em longa fila, alegremente, em coro,
Saúdam-na: “Bom dia!”
D. Alda segue... Segue-a uma andorinha;
Com seus raios de luz o sol a banha;
E D. Alda caminha...
Uma porção de folhas a acompanha...
Caminha... Como um fúlgido brilhante,
O seu olhar fulgura.
Mas — que cruel! — ao dar um passo adiante,
Enquanto a barra do roupão sofralda,
Pisa um cravo gentil de láctea alvura!
E este, sob os seus pés, inda murmura:
“Obrigado, D. Alda.”
O cândido cravo agradece a pisadela dos mimosos pés de D.
Alda. Um poema assim aparentemente tão pueril e gracioso acaba ganhando um
insuspeitado tom perverso quando relacionado ao erotismo sufocado do restante
da obra de Francisca Júlia.
Conclusão
Francisca Júlia firmou-se como poetisa prestigiada por meio
de um estilo vigoroso e de uma rígida contenção emocional, o que lhe rendeu o
epíteto de o mais parnasiano de nossos parnasianos, quem sabe a única a levar
realmente a sério o princípio da impassibilidade. Para tanto, talvez tenha
sentido a necessidade de restringir ao máximo o teor sensual de seus poemas, o
que, como vimos, teve como consequência um sentimento do sexo como ameaça de
aniquilamento e certo viés masoquista difuso. De certa maneira, sua trajetória
literária esclarece em muitos pontos o momento histórico que o Brasil
atravessava na passagem do século XIX para o XX.
Uma das principais características do século XIX foi a
migração do capital para as grandes cidades, o que se fez acompanhar do
deslocamento do patriarcado rural para a área urbana. Com o estabelecimento nas
cidades, o estilo de vida das famílias patriarcais foi se modificando, o que incluía
a situação das mulheres. O regime de reclusão no qual elas até então viviam foi
gradativamente dando lugar a uma vida social mais variada, em que a cultura
mantinha um importante papel como capital simbólico, como elemento distintivo
entre classes. Com o decorrente aumento do nível de instrução das mulheres das
famílias mais privilegiadas, abriu-se a elas a possibilidade de participar do
ambiente cultural que existia nas cidades, embora o mesmo não se desse quanto à
participação na política e na economia.
Como se sabe, a modernização dos modos — em grande parte
tributária da importação do estilo de vida da burguesia europeia — não se fez
acompanhar da modernização das estruturas econômicas e sociais do país, que se
mantiveram basicamente as mesmas pelo menos até a década de 30 do século XX, de
maneira que, por muito tempo ainda, sobreviveriam valores de nosso passado
colonial, que davam forma e substância à mentalidade do patriarcado brasileiro.
Nesse sentido, a obra de Francisca Júlia é o testemunho de um impasse: por um
lado, estavam dadas as condições práticas para a participação das mulheres no
âmbito da cultura, incluindo aí a literatura; por outro, persistiam valores que
atribuíam à mulher uma posição inferiorizada, restringindo-lhe virtualmente o
campo de ação. A solução encontrada pela poetisa paulista foi apagar de seu
texto, tanto quanto possível, todas as marcas de feminilidade, escrevendo
poemas que fossem “dignos de mãos masculinas”.
Referências
bibliográficas
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o frio e o cruel. Tradução Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2009,
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Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2003
FISCHER, Luís Augusto. Parnasianismo
brasileiro: entre a ressonância e a dissonância. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2003.
FREYRE, Gilberto.
Sobrados e mucambos:
decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 15 ª ed. São
Paulo: Global, 2004.
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Armand Colin, 1967.
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RAMOS, Péricles Eugênio da Silva (org.). Poesias de
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SANT’ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através
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SILVA, Francisca Júlia da. Mármores. São Paulo: Horacio Belfort Sabino Editor, 1895.
———— . Esfinges.
São Paulo: Bentley Jr. & Comp., 1902.
[1] “Os argonautas”, assim
como o soneto homônimo de Raimundo Correia (tradução de um poema de José María
de Heredia), trata das Grandes Navegações do início da Era Moderna e não da
tripulação da nau Argos, da história mitológica de Jasão. A referência clássica
comparece aqui como uma analogia para conceder dimensão mítica às viagens de
Vasco da Gama, Colombo, Pedro Álvares Cabral & Cia. Portanto, não há
qualquer anacronismo na utilização do termo “caravelas”.