segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Canção: uma questão de poesia?


Uma das questões mais recorrentes no debate cultural brasileiro  diz respeito à distinção entre canção e poema, o que pode ser resumido da seguinte maneira: letra de música também é uma forma de poesia? Essa discussão se faz tão presente, imagino eu, devido à elevada qualidade dos letristas de nosso cancioneiro popular, pelo menos desde Noel Rosa. Acresce-se a isso a perda de evidência da literatura brasileira na segunda metade do século XX, até então uma das expressões de maior prestígio em nosso meio artístico e cultural. É possível que a música popular tenha preenchido um espaço deixado vago pela perda de relevo social da literatura, de modo que hoje em dia é muito mais fácil encontrar, mesmo entre os setores mais instruídos da população, pessoas mais familiarizadas com a música de Chico Buarque do que com a poesia de Carlos Drummond de Andrade.

Logo de saída, adianto que não abordarei o problema nos termos de uma oposição entre cultura popular e erudita. Uma abordagem nesse sentido partiria de juízos gerais previamente formulados, passando por cima das particularidades dos fenômenos considerados e incorrendo no perigo de resvalar no elitismo e no pedantismo.

Uma das posições no debate é a que encara a aproximação da poesia com a letra de música como uma intromissão indevida da última nos domínios da primeira. Os partidários dessa posição, os detratores de nossos “poetas da música popular”, costumam atribuir o prestígio — segundo eles, exagerado — das canções no Brasil a uma formação cultural deficiente e à preguiça intelectual do público. Chega-se a afirmar que a atenção devotada às letras (nas salas de aula, por exemplo) impede o contato com a poesia propriamente dita, malogrando a formação de leitores devidamente capacitados à fruição poética. A canção popular, de acordo com essa perspectiva, sufocaria a literatura brasileira diante de um público indolente ou idiotizado. Confira, como exemplo, a entrevista do poeta BrunoTolentino à Revista Veja, de 1996.

Como se sabe, a poesia, em suas origens, é indissociável da música, sendo a canção uma das primeiras manifestações do gênio poético humano, se não a primeira. Entre os povos mais antigos, assim como nas comunidades modernas ainda não inseridas no universo da cultura letrada, a palavra poética aparece constantemente relacionada ao canto, seja no contexto dos ritos, das festas ou do cotidiano, seja ela de natureza sagrada ou profana. Segundo Segismundo Spina, amparado por uma consistente tradição de estudos antropológicos: “A poesia primitiva, entretanto, não é exclusivamente a poesia dos povos pré-letrados, mas a poesia que está ligada ao canto, indiferenciada, anônima e coletiva. É a poesia no seu estágio ancilar, isto é, subordinada à música e à coreografia, mais especialmente àquela” (SPINA, 2002, p. 15). Não é de se admirar, portanto, que muitos elementos estruturais da poesia tenham suas raízes nas necessidades específicas do canto, do mesmo modo como muitas formas tradicionais derivam diretamente do repertório de formas do cancioneiro popular.

Para Octavio Paz, por sua vez, o ritmo não é apenas a essência da poesia, mas a própria razão de ser da linguagem; apenas com o tempo, com a necessidade de adequar a fala a um discurso cada vez mais intelectualizado, a linguagem verbal se afastaria desse seu “núcleo primitivo”, até fixar-se na prosa, no texto escrito de caráter discursivo. O ritmo, contudo, continuaria pulsando na poesia, pois “o ritmo se dá espontaneamente em toda forma verbal, mas só no poema se manifesta plenamente. Sem ritmo não há poema; só com ritmo não há prosa” (PAZ, 1982, p. 82). A métrica, por exemplo, sustentar-se-ia não por uma necessidade de ordenar o discurso, de disciplinar a sensibilidade do poeta, como certa compreensão pós-romântica faz crer, mas pela própria natureza rítmica da poesia: “os acentos e as pausas constituem a parte mais antiga e mais puramente rítmica do metro; ainda estão próximos da pancada do tambor, da cerimônia ritual e dos calcanhares dançantes que batem no chão. Graças ao acento, o metro se põe de pé e é unidade dançante” (Idem, ibidem, p. 88). Seria justamente pela conversão da métrica em unidade meramente convencional, desligada das necessidades intrínsecas da fala, que os modernos teriam passado a adotar, em larga escala, o verso livre.

Poesia é, essencialmente, ritmo, e o ritmo como que prefigura a música. A princípio, é uma inversão querer tratar a canção como um produto abastardado da poesia. O canto, claro está, antecede o poema; este não é uma derivação direta da palavra falada, mas da palavra cantada, quando não dançada. Porém, meu objetivo não é apontar a ascendência da canção sobre o poema e, sim, mostrar que não há como separar radicalmente os dois termos, como se ambos fossem a manifestação sensível de realidades essenciais absolutamente distintas. Mesmo que fosse possível afirmar a existência de uma Poesia anterior ao conjunto das obras poéticas particulares, e que as determinaria, ainda assim seríamos obrigados a considerar que canção e poema partilham de uma mesma origem, que já foram uma mesma coisa, portanto sua separação se deve a um processo de construção histórica, no qual a poesia foi se autonomizando em relação ao canto. Em outras palavras: se essa separação é historicamente construída, não está dada de antemão. Ela não existe nem sob um ponto de vista idealista.

Contudo, rastrear as origens da poesia até o canto não soluciona o problema. Não só a poesia moderna,  como também as expectativas que mantemos em relação ao texto poético, mudaram radicalmente através do tempo. Com o advento da imprensa e a disseminação da cultura letrada, o poema tornou-se gradativamente algo a ser lido em silêncio, por meio de uma recepção individual. E tal mudança, na medida em que favorecia uma leitura mais concentrada, possibilitou uma complexidade crescente da escrita poética, que poderia explorar melhor as sutilezas, ambiguidades e contradições de sua matéria. A fruição do texto literário começa a mobilizar processos cognitivos mais amplos e profundos, formando um conjunto de expectativas de recepção sob os quais até mesmo as obras da Antiguidade passaram a ser relidas. Em resumo, aquilo o que nós, leitores contemporâneos, estamos acostumados a chamar de poema está muito distante daqueles estágios primitivos da poesia, no qual prevalecia a indistinção entre canto e texto. Tentemos responder a essa questão de outra maneira.

Segundo Octávio Paz, o que caracteriza a poesia é uma exploração da dimensão rítmica da linguagem verbal. Na poesia, mais do que em qualquer outra manifestação verbal humana, há uma preocupação tanto com o sentido das palavras quanto com o modo como elas soam juntas. Acatando tal definição, uma das respostas possíveis para a diferença entre poema e canção é que esta não possuiria uma autonomia de leitura; dito de forma coloquial, “a letra não funciona sem a música” — a primeira precisa da segunda para que todas suas potencialidades se realizem. Essa costuma ser a resposta mais frequentemente dada, mas há alguns problemas com ela. Não funciona em que sentido, cara pálida?

Se falamos do aspecto propriamente sonoro, poderíamos considerar que os versos das letras de música só revelam suas propriedades rítmicas quando apreendidos a partir da frase melódica da qual fazem parte. Sem a música, os versos soam monótonos, como trechos de prosa pouco inspirada. Mas se isso é verdade quanto a muitas canções, evidentemente não o é em relação a todas. Há letras que, mesmo que se desconheça completamente a música, ainda se mostram sonoramente interessantes. De igual maneira, há muitos poemas, principalmente entre os poetas de escasso talento, que nada mais são do que prosa insossa escrita em carreirinhas (e, em alguns casos, rimada e metrificada), sem que ocorra a alguém negar-lhes a denominação de poema. No máximo, diz-se que a poesia não habita em tais poemas, mas não se pode negar que eles respondem a um conjunto de expectativas de recepção que formam nossa ideia do que seja a poesia. Um poema sofrível ainda é um poema, mesmo quando muito, muito sofrível.

Por outro lado, poder-se-ia argumentar — ressoando Ezra Pound, para quem a literatura, sobretudo a poesia, “é linguagem carregada de significado”— que só o aspecto rítmico não é suficiente para que haja um poema, que este traria um adensamento semântico que não encontra paralelo na canção. No entanto, não só é possível encontrar grande riqueza de significado em algumas canções, como é possível encontrar vários poemas que nada têm a dizer, não importa quanto os torçamos e espremamos. Mesmo que se diga que nunca canção alguma apresentou uma fração da densidade semântica de um trecho qualquer de A divina comédia, colhido aleatoriamente, será que o mesmo não poderia ser dito sobre a imensa maioria dos poemas que vieram depois da obra de Dante? E dos que vieram antes também? Enfim, um poema bobo ainda é um poema, ainda que muito, muito bobo.

Sob nenhum desses dois critérios (autonomia rítmica e densidade semântica), a letra de música pode ser  definitivamente diferenciada do poema, pois nenhum deles é capaz de determinar o que um poema é de fato (embora até possam determinar sua qualidade). Para embaralhar ainda mais os limites entre ambos, houve, ao longo do século XX, a incorporação de uma série de procedimentos técnicos oriundos da poesia moderna por parte dos compositores da MPB, criando assim uma tradição de letras complexamente construídas, que muitas vezes não entregam seu significado numa audição descuidada. Em minha trajetória como estudioso da literatura, tive a oportunidade de trabalhar, durante algum tempo, com as canções tropicalistas do final da década de 1960. Nelas, encontrei um elevado grau de produtividade semântica e de ousadia formal, de maneira que muitas delas mostraram estar ao nível de uma leitura exigente, cercada de todo o instrumental teórico e analítico da crítica literária.

Ao final das contas, a barreira que separa canção de poema é arbitrária, como arbitrárias são, em certo sentido, todas as classificações e convenções de gênero. Ocorre que, não é por serem arbitrárias, que tais convenções não tenham uma razão de ser, um significado histórico. A pergunta a se fazer é: a recusa de conceder às letras de música um estatuto poético é uma convenção que ainda faz sentido à luz do estágio atual do desenvolvimento artístico dessas duas formas de expressão verbal? Talvez fizesse num tempo em que havia uma defasagem técnica muito grande entre poesia e canção, na época em que texto de música nada mais era do que um pretexto para o canto. Contudo, com o desenrolar do século XX, as letras foram se tornando um elemento essencial da canção, como é possível verificar em nossa moderna música popular. Já vínhamos de uma tradição de bons letristas, mas foi Vinícius de Moraes, migrando do livro para o LP, quem acenou, na irrupção da bossa nova, com a possibilidade de dar à letra de música um tratamento formal mais acurado, ao pé do que se fazia então na poesia. Acima de tudo, o poetinha avalizou, com seu prestígio, a dignidade da canção como subgênero da lírica, abrindo as portas para toda ordem de experimentações com a linguagem.

A relação da música com a poesia não é de concorrência. Como já disse, foi a literatura, de uma forma geral, e a poesia, de maneira mais drástica, que perdeu sua relevância frente à sociedade, por razões relacionadas à dinâmica de nosso sistema cultural. A canção apenas ocupou um espaço deixado vazio, tornando a perda de relevância da poesia mais perceptível. Não é preciso que o intelectual brasileiro se envergonhe ou se ressinta da alta qualidade atingida por nossos letristas; isso é um privilégio. Se quisermos colocar a discussão em termos mais produtivos, devemos questionar as causas e as consequências do declínio da cultura literária no Brasil. Culpar a ascensão da música popular é uma solução simplista demais.

9 comentários:

  1. Olá Emmanuel,

    Que bom que tenha voltado a escrever em um blog, agora em carreira solo.

    Acho que você analisa de um ponto de vista muito técnico e não sei o quanto esse é o cerne da questão (decerto há muito o que se dizer sobre), pois os procedimentos técnicos de uma podem ser incorporados pela outra e vice-versa. Você aponta a Tropicália, mas também os românticos absorveram procedimentos e formas da canção popular - aliás, a cultura popular tem papel importante na literatura. Mas há algo que coloca esta além daquela e eu vou tentar explicar algumas impressões que tenho, mas não são nada certo.

    Ao meu ver, a chave distinção poesia x letra de música estaria em basicamente três coisas: a) na Tradição, b) no Significado e c) na Beleza. A Beleza é algo muito mais distante, porque parece subjetiva (mas é antes "inefável", digamos assim), e a simples beleza de um poema pode ser algo para carregarmos anos ou décadas até compreender o que ela significava verdadeiramente. Eu ao menos não conheço uma pessoa que tenha passado toda uma vida buscando o sentido de uma cançãozinha sequer - é natural da música passar para a próxima faixa, e decerto há algo relevante nisso. Isso em si já vale a distinção das duas, mas é pouco.

    Um primeiro ponto parece negligenciado ao longo do seu artigo é a comunicação que um autor mantém com a tradição que o antecede. Coisa esta que não existe na MPB: você já ouviu o Chico Buarque dialogar pau a pau com Dante ou Shakespeare? Acho difícil, porque o Chico Buarque está falando de algo muito, muito distinto do que falam os poetas.

    Quanto ao segundo aspecto, acho que a MPB pode até parecer COMPLEXA mas nunca se revelará tão profunda. Pensando bem, talvez a complexidade esteja, na verdade, numa beleza que facilmente explicamos - nesse caso, a complexidade seria aparente, estaria em nós e não no próprio poema ou letra de música, mostrando-se portanto falsa. Às vezes conseguirmos explicar algo demonstra o quanto aquela coisa é pobre. Eu muitas vezes me sinto assim quando consigo decifrar uma música que escuto.

    Não tenho certeza, mas acho que o Spina em seu "Madrugada das formas poéticas" aponta ainda uma outra origem para a poesia, que é o seu sentido religioso - e poderíamos aceitar aqui religioso no sentido de algo com um sentido maior, que supera a própria capacidade humana de entender a realidade, seja a Vida, a Cultura, a Humanidade, o Bem, o Mal - enfim, coisas grandiosas e questões cruciais de nossa existência. Tenho a impressão de que esse é um aspecto importante na poesia e que não há na canção popular, que ao invés do transcendente, do Mistério da existência, costuma apontar sempre para o material, para o corpóreo. Hoje me irrita um pouco que a música popular esteja sempre falando de política, sexo e paixões. Ou do próprio ego. MPB às vezes parece revista de celebridade! Não há um assunto que valeria a vida, ao contrário de qualquer um daqueles anteriores que englobei no sentido 'religioso'.

    Portanto, não estaria a raiz do problema mais nesses aspectos do que em aspectos procedimentuais? A forma da poesiapode mudar, pode ser outra, mas a questão é a mesma; apenas a Resposta literária ou poética vai ganhando corpo, à medida que mais e mais bons autores incorporam-se à tradição.

    Isso também explicaria que, tendo a educação brasileira decaído, justo nos anos 60, um grupo de meio intelectuais ocupou o seu espaço e por isso hoje teríamos a impressão de que poesia e canção sejam a mesma coisa.

    Não faz sentido?

    Abraço e continue escrevendo!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Diego,

      Obrigado pelo comentário. Há muitas questões aqui, então vamos por partes.

      Começando pelo o que é tangencial: um dos pontos de Segismundo Spina é desmistificar esse lugar-comum de que a poesia descende toda ela do rito ou do mito (enfim, da religião). Segundo ele, em qualquer comunidade primitiva ou pré-moderna pode ser verificada, em paralelo a uma poesia religiosa, uma poesia de caráter profano, relacionada ao cotidiano das pessoas ou às ocasiões festivas, da qual se depreende um impulso meramente lúdico ou uma necessidade de se falar das circunstâncias imediatas que cercam a vida das pessoas:

      "A tese de Jules Combarieu (origem mágica da música e consequentemente da poesia) justificar-se-ia, portanto, se a improvisação, a poesia ligeira e profana, fosse um fenômeno tardio, mas a poesia improvisada coexiste com com a poesia ritual mágica desde os grupos culturais primários. Ao lado de uma poesia tradicional, de interesse coletivo, intimamente ligada aos rituais mágico-religiosos da comunidade, pratica-se uma poesia circunstancial, que versa os temas mais variados, sobretudo profanos, de amor, de guerra, de recordações de fatos da vida diária, de sátira aos viajantes estrangeiros. A poesia no seu estágio primitivo não é, portanto, exclusivamente ritual - como pretende o grande musicólogo" (SPINA, 2002, p. 32)

      Continua...

      Excluir
    2. Continuando...

      Falando da tradição. Não nego o valor da tradição, mas não consigo vê-la como um valor em si. A tradição só faz sentido na medida em que ela é uma construção coletiva que parte da experiência individual das pessoas. Isto é, a tradição é experiência sedimentada, estratificada, acumulada. Mas sua matéria-prima, frise-se, é a experiência de vida das pessoas. Nisto estou acompanhando Walter Benjamin.

      Pois bem. A experiência humana é, por natureza, multifacetada e possui vários aspectos: psicológicos, sociais, biológicos, culturais, espirituais (para quem acredita) etc. Podemos eleger um desses aspectos como o de nossa preferência a até mesmo propor uma escala de valoração para eles, mas não podemos cassar a dignidade de nenhum deles. Além do mais, uma escala de valores sempre será discutível. Você pode muito bem dizer "a porção mais nobre da experiência humana está em sua dimensão espiritual", e então eu discordaria gentilmente de você. Veja bem: estou tentando captar o problema de um certo ponto de vista objetivo, a partir de alguns parâmetros que a crítica e a teoria podem fornecer. Neste ponto, as convicções pessoais, principalmente quando partem de experiências de difícil comunicação, não são um parâmetro válido, a não ser, é claro, numa escala individual.

      O material da poesia, assim como da literatura de uma forma geral, é a experiência humana. É o mesmo material da tradição, portanto. Não é porque um artista não se remete à tradição que ele não consiga tratar de questões relevantes. O diálogo com a tradição é importante e sempre enriquecedor, mas não é o essencial, pois o essencial é a experiência humana. Só um esclarecimento, para garantir que estamos falando da mesma coisa: a experiência surge quando um indivíduo atribui significado àquilo o que vive; a apreensão dos acontecimentos destituídos de qualquer significação é aquilo o que Benjamin chama de vivência.

      Nesse sentido, uma letra de música pode ser extremamente enriquecedora, na medida em que revela, ou traz à luz, elementos da experiência humana para os quais, até então, não tínhamos atinado. Eu mesmo passei a ver o mundo de uma forma diferente depois de ouvir determinadas canções. Quer dizer, a canção, pode sim, contribuir de maneira efetiva para a formação pessoal e intelectual das pessoas.

      Continua...

      Excluir
    3. Continuando...

      Veja o meu caso. Trabalho com o parnasianismo brasileiro. Nos últimos dois anos devo ter lido algumas centenas de poemas, mas foram poucos deles, muito poucos mesmo, que fizeram alguma diferença em minha vida ou em minha visão de mundo. Agora, vai dizer que os parnasianos não faziam poesia? Por outro lado, no mesmo período, ouvi uns três ou quatro álbuns que, de alguma forma, mexeram comigo e acrescentaram alguma coisa a minha vida interior.

      Chico Buarque não consegue dialogar pau a pau com Dante e Shakespeare? Mas quantos outros poetas conseguem? Estou dando ênfase ao "pau a pau". Isso não significa que Chico não consiga tocar em algumas das mesmas questões fundamentais tratadas na poesia desses dois autores, com algum proveito para seus ouvintes. Sem falar que a comparação é injusta se estamos pensando no Dante de "A divina comédia" e no Shakespeare dramaturgo, pois, nesse caso, estamos tratando de obras de grande extensão, que permitem uma abordagem ampla e aprofundada de várias coisas. Agora digo: vamos à lírica de Shakespeare e de Dante, aos sonetos de ambos, por exemplo, aí sim temos um termo de comparação mais ajustado. Você acha mesmo que qualquer soneto shakespereano ou dantesco são superiores - no sentido de serem mais complexos e mais profundos - a qualquer letra que Chico Buarque tenha escrito na vida? Não posso falar dos sonetos de Dante, mas, nos últimos meses, tenho quebrado a cabeça aqui com uns sonetos de Shakespeare. Em seu conjunto, são ouro puro! Mas é possível destacar um ou outro mais próximo do razoável. E olhe que se trata de uma coletânea. Por que o mais banal dos sonetos shakespereanos tem que ser considerado superior à melhor das letras de Chico Buarque? Será que você não está partindo de um juízo pré-estabelecido e passando por cima dos casos concretos?

      Continua...

      P.S.: Estou escrevendo tudo picotadinho assim porque o editor de comentários não aceita mais de quatro mil e tantos caracteres.

      Excluir
    4. Continuando...

      Parece-me, Diego, que você está sugerindo repor a antiga hierarquia de estilos: de um lado, o sublime, as grandes questões da existência, o universal; do outro, o realismo, o cotidiano, o particular. E dizendo que só há verdadeira poesia no sublime. Para mim, isso é anacrônico, pois, como já foi fartamente demonstrado por Auerbach, a literatura moderna operou justamente uma dissolução dos limites entre esses dois âmbitos. Se você lê a literatura moderna e contemporânea por esse prisma, corre mesmo o risco de perder de vista o essencial. Quem disse que uma canção não pode tocar em questões relevantes, mesmo quando parece estar tratando de coisas comezinhas?

      Não sei se estou me fazendo entender: se você considera que poesia é tudo aquilo o que está ao nível das grandes obras de Shakespeare e de Dante, e que trata exclusivamente dos problemas universais da condição humana, então a poesia mundial toda se resumiria para você a uma ínfima parcela dela mesma. Sua definição do que seja poesia, nesse caso específico, não dá conta da diversidade nem dos cânones fixados na tradição literária ocidental, quanto mais da totalidade das manifestações poéticas.

      Foi mais ou menos disso que tratei quando falava, de maneira bem sintética, da "densidade semântica" na poesia. Volte ao texto e perceba que não dou exclusividade aos aspectos técnicos, embora os ache importantes; estou a todo momento falando de "produtividade semântica", "riqueza de significados", "processos cognitivos mais amplos e profundos". Só não acho que essa tal concentração semântica deva ser condicionada ao tratamento de um espectro limitado de temas e problemas.

      Continua...

      Excluir
    5. Continuando...

      Sobre a beleza. Enfim, como já disse, minha tentativa foi abordar a questão com algum grau de objetividade. Se quisermos discutir se a beleza é algo universal, como quer Kant, ou se ela é um conjunto de expectativas historicamente construído ou biologicamente determinado etc., é uma questão das mais cabeludas. Tomemos por ora que, se você me diz que tal poema é belo, eu não teria como discernir o quanto de seu juízo está objetivamente fundamentado ou o quanto de subjetivo e pessoal há nele.

      Citando Paul Valéry, quando alguém diz que um objeto é belo, está lhe concedendo o valor de enigma. Não há o que a crítica ou a teoria possam fazer aqui. Por isso procurei atrelar o valor literário da poesia à complexidade de seus expedientes técnico-formais e de sua produtividade semântica, isto é, a possibilidade de a obra permitir um desdobramento interpretativo a partir do qual ela possa ser relacionada a um universo mais amplo de problemas de natureza geral. Em suma, trata-se da capacidade de um poema dialogar não só com a tradição, mas com a cultura e a história. Se uma letra de música me permite desdobrar seu conteúdo em várias direções, isso é produtividade semântica. E posso lhe garantir que já encontrei isso em algumas canções. Inclusive, um de meus próximos posts (o terceiro da fila, se tudo correr como o esperado) será a análise de uma canção do Caetano Veloso.

      Como tanto a complexidade técnico-formal quanto a produtividade semântica podem ser apontadas ou demonstradas por um procedimento analítico, pareceram-me critérios satisfatoriamente objetivos, por isso me apeguei a eles. Percebe que meu texto teria uma natureza completamente diversa se eu, para comprovar minha hipótese, usasse um argumento do tipo: sim, uma letra de canção pode ser tão bela quanto um poema (como eu de fato acredito?)? Daí viria você e me diria que não, então chegaríamos a um impasse. Agora, se você quiser demonstrar que estou errado, teria que defender a ideia de que não há produtividade semântica nas canções, ou de que a produtividade semântica é inerente a toda e qualquer poesia, ao passo que na canção ela é meramente acidental. Ou ainda que a questão da poeticidade da poesia não passa por esse critério da densidade semântica. E por aí vai. A relativa objetividade das categorias, nesse caso, é a garantia do diálogo.

      FIM

      Excluir
    6. No lugar de:

      "Por isso procurei atrelar o valor literário da poesia à complexidade de seus expedientes técnico-formais e DE sua produtividade semântica (...)"

      Leia-se:

      "Por isso procurei atrelar o valor literário da poesia à complexidade de seus expedientes técnico-formais e A sua produtividade semântica (...)"

      Excluir
    7. Emmanuel,

      Eu não leio poesia há dois anos; de lá pra cá, as minhas leituras digamos assim "eruditas" são esparsas, com foco principalmente em filosofia e religião. Falo isso para deixar claro que de forma nenhuma me sinto autorizado a falar de poesia, mas de música popular tudo o que eu falei eu atesto. Portanto, não assino que esteja ou não defendendo a volta dos gêneros clássicos de literatura, mas é possível que isso seja uma implicação de meu comentário.

      Parece que há, entre uma visão e outra do que estamos expondo, uma única diferença, como se todas as outras fossem meramente desdobramento dessa primeira. A saber: a existência de Deus. Como recém-convertido, não posso dizer muita coisa se não que faz toda diferença na nossa percepcção de mundo, na fé e nos problemas. A liberdade sempre foi algo por que me interessei e no contexto judaico-cristão a problemática é totalmente diferente, muito mais do que a noção de moral ou ética. Para pensar em liberdade, preciso pensar em alma, para pensar em minha alma preciso entender o que é Deus, pela experiência própria e não pelos conceitos.

      Pensemos no aspecto da Tradição, que não surge à toa nem é um simples ponto num oceano. Não falo dela como se fosse algo maquinal de se submeter a ela e nisso houvesse uma importância imposta. Que simplesmente seja "estético" ser tradicional. Pensemos em Tradição como acúmulo de conhecimento, como cultura. Para se inserir na Tradição não é preciso simplesmente fazer referências aos autores e gêneros passados, é preciso dialogar de uma forma mais profunda, tanto na forma quanto no conteúdo. Quando um autor se insere em determinada tradição, deduz-se que ele esteja dialogando com problemas e questões muito mais amplas e que, para entendê-las, é preciso ter conhecimento dela como um todo. Do contrário, não se insere em tradição nenhuma. Para nós, contemporâneos, criados numa sociedade se não atéia mas sem dúvida esvaziada do sentido religioso e filosófico mais profundo, provavelmente todas essas questões passem batidas porque não entendemos patavinha do que eles falaram! E aqui digo por mim.

      Você diz que há sonetos medíocres do Shakespeare, e não duvido que a sua opinião seja tanto sincera como a de alguém que se empenha em entender o Real, com a simples diferença que Shakespeare acreditava em Deus, ou ao menos estava inserido em toda a uma problemática da vida humana que deriva do Catolicismo e do Ocidente. Essa pequena diferença talvez o afaste do autor de Hamlet, porque muito provavelmente ele está falando de coisas que não há como alguém que não tem fé religiosa e, mais, não conhece tal Cultura, tem como saber a não ser vivendo.

      Faço uma reflexão. Suponhamos que a literatura Ocidental tenha se originado no sentido mito-religioso da poesia original, e que tudo tenha se desenvolvido em um última análise desse ponto de vista. Assim sendo, seria razoável encontrar uma ruptura na produção literária de alto nível justo quando a sociedade brasileira tenha perdido os seus vínculos religiosos! Ora, ainda que peguemos um Drummond, que era ateu, ele estava falando sobre toda a problemática humana cristã, ainda que de uma maneira negativa. Prova disso é A Máquina do Mundo.

      Portanto, gostaria de propor um problema que, parece-me, não encontrará solução atualmente: considerando que a Poesia Ocidental toda tenha se desenvolvido em quase toda a sua totalidade sobre os símbolos cristãos, porque até mesmo um Platão intuiu algo muito próximo do catolicismo, como poderia alguém que não conhece essa filosofia a fundo entender o que de fato está dizendo um Dante ou um Shakespeare, ou ainda um poeta parnasiano, mesmo em seus momentos mais medíocres? Não seria conseqüência desse afastamento não entender os primeiros e encontrar na música popular mais ou menos intelectual a manifestação complexa e profunda da experiência humana?

      Excluir
    8. Diego,

      Sinceramente, não sei nem como responder a esse comentário... Você está promovendo uma redução absurdamente grosseira do que seja a poesia. Só consegue apreender a essência da poesia quem é cristão ou religioso? É isso mesmo? Ok. Então a discussão termina aqui. Um abraço!

      Excluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...