Como professor de Literatura, estou prestes a
me tornar tecnologia obsoleta. Isso mesmo: prevejo que, a médio prazo
(em pouco mais de uma década, talvez menos), não haverá mais, nas escolas de
todo o país, a figura do professor especializado no ensino de Literatura. O motivo
é a ascensão do ENEM como o principal exame de seleção de candidatos ao
Ensino Superior, o que tende a impactar a organização das escolas de Ensino
Médio, voltadas, via de regra, à preparação dos alunos para o ingresso nas instituições universitárias. Isso porque, como demonstrou Luís Augusto Fischer, as questões de Literatura do ENEM tendem a cobrar mais a
interpretação do texto literário (“literatura-leitura”) do que sua compreensão
como elemento de uma rede de referências inter-relacionadas à qual damos o nome de tradição literária (“literatura-cultura”, nas palavras
de Fischer). Segundo o professor da UFRGS, a literatura como campo autônomo do
âmbito da cultura — com suas especificidades linguísticas, estéticas e
históricas —, estaria sendo negligenciada por uma abordagem instrumental que pouco distingue entre um texto literário e um jornalístico. O que importa é que o aluno consiga apreender adequadamente o significado
do que foi lido, não se exigindo dele que considere a literatura como um sistema com determinantes e história próprias.
Tal tendência verificada no ENEM, obviamente, não surgiu do nada. Ela reflete os princípios estabelecidos nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN’s), que, desde 1996, oferecem as diretrizes à organização dos
currículos escolares em território nacional. Neles, os estudos
literários aparecem incluídos na área de Linguagem, Códigos e suas Tecnologias,
mesclados com gramática, intelecção, produção de texto e outros quejandos. A
proposta é justamente a fusão de conteúdos, como fica claro no seguinte
fragmento:
A disciplina na LDB
nº 5.692/71 vinha dicotomizada em Língua e Literatura (com ênfase em literatura
brasileira). A divisão repercutiu na organização curricular: a separação entre
gramática, estudos literários e redação. Os livros didáticos, em geral, e mesmo
vestibulares, reproduziram modelo de divisão. Muitas escolas mantêm professores especialistas para cada tema e até
aulas específicas como se leitura/literatura, estudos gramaticais e produção de
texto não tivessem relação entre si. (grifo meu)
Seguindo os princípios norteadores dos PCN’s, o MEC criou um
projeto de reforma do Ensino Médio, segundo o qual a divisão do conteúdo
curricular em disciplinas daria lugar à organização em quatro grandes áreas:
Ciências Humanas, Ciências da Natureza, Linguagem e Matemática, que é como o
ENEM é dividido. A reforma deve pautar
obrigatoriamente o currículo das escolas públicas, ao passo que, para as
escolas particulares, será facultativa. Permanecendo o quadro que tínhamos
antes, o mais provável é que as escolas particulares mantivessem seus
currículos como estão; contudo, com a transformação do ENEM na porta de entrada
para a grande maioria das universidades federais, a tendência é que tais escolas adiram ao novo modelo, a não ser que o prestígio de algumas grandes instituições estaduais
seja o suficiente para que estas, sozinhas, determinem a forma do currículo do
Ensino Médio privado, o que eu, pessoalmente, acho difícil. A tendência é
que, embora com muita resistência, essas instituições acabem dobrando-se às
novas circunstâncias, ou então que, ao lado de um Ensino Médio reformado,
multipliquem-se os cursinhos especializados nos vestibulares das universidades
que insistirem no modelo atual.
Imagino que o resultado dessa mudança será a diluição do
conteúdo hoje ensinado em Literatura no conteúdo propriamente linguístico. Assim,
utilizar-se-ia o texto literário como suporte para atividades como as de
interpretação, análise gramatical e redação, acompanhadas de algumas
informações de natureza histórica e biográfica sobre a obra e o escritor. Por sua vez, o conhecimento técnico-teórico acerca do objeto literário poderia muito bem ser
incorporado às atividades de produção de texto. Consequentemente, haveria uma
preferência pela utilização de fragmentos e textos curtos, como crônicas,
poemas, letras de música etc., e um aluno poderia terminar o Ensino Médio e
ingressar no Superior sem nunca ter lido um livro inteiro (algo que o
ENEM, que não possui uma lista de leituras obrigatórias, já possibilita). Parece
lamentável, não? Talvez não seja.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que o currículo do Ensino
Médio possui um volume acachapante de informações. O conteúdo é
muito extenso e em grande parte irrelevante para os alunos que não pretendem especializar-se em determinadas áreas, incluindo aqui a Literatura. E
o pior: diante da necessidade de se incorporar ao currículo um novo conteúdo, a
tendência é criar novas disciplinas, levando não só a uma saturação de
informações, como também a um aumento da carga horária e dos custos da
educação, tanto no setor privado quanto no público. Uma opção mais viável, a meu ver, seria que esse novo conteúdo fosse tratado de maneira transversal e abordado em diferentes
disciplinas de acordo com suas afinidades e interseções com os conteúdos já estabelecidos.
A verdade é que o ensino de Literatura nas escolas de Ensino
Médio atende hoje a um objetivo muito específico e simplista: preparar o aluno
para o ingresso nas instituições universitárias do país, por isso a
mudança nos meios de seleção provavelmente causará sobre ele um impacto devastador. Mesmo nos melhores colégios e nos materiais didáticos mais prestigiados,
prevalece o contato com paráfrases e fragmentos, sem que o aluno desenvolva
familiaridade com o texto literário propriamente dito. Quando é exigida a
leitura de uma obra mais extensa, geralmente o que se procura fazer é
chamar a atenção para aqueles aspectos que têm maior chance de serem cobrados
numa prova de vestibular, ou seja: os alunos leem para responder questionários
(quando leem). E não estou falando apenas de uma questão de ênfase naqueles conteúdos mais caros ao vestibular, mas da própria estrutura da disciplina, que determina desde o que é ensinado até a elaboração do material didático e a abordagem do professor em
sala de aula. Aliás, a situação transcende o âmbito do processo ensino/aprendizagem,
pois envolve uma série de expectativas sociais da parte dos administradores de escola, das famílias e dos próprios alunos. O professor que deseja escapar do
esquema utilitário voltado ao vestibular tem quase tudo contra si. É claro,
estou falando do contexto das escolas particulares, que é o que conheço mais de perto.
Pela maneira como o ensino de Literatura configura-se hoje, ouso
dizer que não fará muita falta quando (ou se) for abolido. Mas isso não significa dizer que a literatura seja irrelevante ou que ela não tenha com o
que contribuir na formação intelectual e mesmo afetiva de nossos jovens. Se
quisermos realmente insistir na manutenção da disciplina na grade curricular do
Ensino Médio, temos de nos questionar por que ensinar Literatura. Ou melhor: qual a
importância da literatura na formação dos indivíduos? Apenas respondendo a
essas perguntas poderemos orientar nossas práticas pedagógicas em direção a uma
abordagem mais enriquecedora do texto literário, o que é, certamente, assunto para um próximo post.
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