Estou escrevendo um texto que pretende ser uma reflexão
sobre o ensino de Literatura. Durante as pesquisas para escrevê-lo, recorri,
previsivelmente, aos Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante PCN’s), que
estabelecem as diretrizes que orientam a educação no Brasil. Encontrei lá
algumas coisas que não conseguirei deixar de discutir, por isso resolvi
escrever o texto presente, para não saturar demasiadamente o outro. O que me
chamou a atenção está nos seguintes parágrafos:
Os estudos literários seguem o mesmo caminho. A
história da literatura costuma ser o foco da compreensão do texto; uma história
que nem sempre corresponde ao texto que lhe serve de exemplo. O conceito de
texto literário é discutível. Machado de Assis é literatura, Paulo Coelho não.
Por quê? As explicações não fazem sentido para o aluno.
Outra situação de sala de aula pode ser mencionada.
Solicitamos que os alunos separassem de um bloco de textos, que iam desde
poemas de Pessoa e Drummond até contas de telefone e cartas de banco, textos
literários e não-literários, de acordo como são definidos. Um dos grupos não
fez qualquer separação. Questionados, os alunos responderam: “Todos são
não-literários, pois servem apenas para fazer exercícios na escola.” E
Drummond? Responderam: “Drummond é literato, porque vocês afirmam que é, eu não
concordo. Acho ele um chato. Por que Zé Ramalho não é literatura? Ambos são
poetas, não é verdade?”.
Tenho uma hipótese de por que as explicações não fazem
sentido para os alunos. Eles não conseguem entender por que Machado é
literatura e Paulo Coelho, não, simplesmente porque ambos são literatura. Tanto
a obra do bruxo de Cosme Velho quanto a do mago das letras contemporâneas são
de natureza literária. Há uma confusão aqui entre literatura (objeto) e Literatura
(disciplina). A primeira representa o conjunto dos textos literários, a
segunda, a organização dos conhecimentos acerca da literatura numa unidade
curricular, com uma função didática. Diante da falta de entendimento do aluno
pela ausência de um Paulo Coelho no currículo escolar, o professor deveria
explicar que a literatura não se resume àquilo o que se estuda nas aulas de
Literatura. Em seguida, deveria ensiná-los que, devido à impossibilidade de se
abordar todas as obras no período limitado da formação escolar, é
necessário fazer uma seleção que responde a certos critérios e, se for caso,
expor quais são. É importante apontar que esses critérios, ainda que arbitrários,
não são aleatórios. Talvez aí a explicação comece a fazer algum sentido.
É curioso que os autores dos PCN’s confundam a
“discutibilidade” do conceito de literatura, que é uma questão teórica, com a
arbitrariedade na composição do corpus
das obras que compõem o currículo escolar, o que é uma questão didática.
Sabe-se que não há um conceito fechado sobre o que é a tal da literariedade (o conjunto de características
que definem um texto como literário), mas existe, sim, uma noção historicamente
construída sobre o que pode ser considerado literatura. Por exemplo: ninguém
discute que a Divina comédia, de
Dante Alighieri, é uma obra literária, porém é possível discutir se a carta de
Pero Vaz de Caminha relatando a descoberta do Brasil possui ou não uma dimensão
literária. Pode-se discutir, também, se o Manifesto
comunista possui algum componente literário, dificilmente, no entanto,
ocorrerá a alguém dizer que se trata de um texto literário em sentido estrito.
Isso é muito diferente de adotar um relativismo conceitual absoluto, que parece
ser o que os autores sugerem. Já a discussão sobre a composição dos currículos
de Literatura, embora subordinada à discussão teórica acerca do que é a
literariedade, responde a critérios que não se limitam ao âmbito literário; ela
se dá tendo em vista a função social da literatura e as expectativas que temos
em relação ao ensino da Literatura. Mudando tais expectativas, mudam os
critérios que determinam a seleção das obras.
Outro problema no que dizem os autores está na possibilidade
de eleição do subjetivismo, do gosto pessoal, como critério de seleção das
obras estudadas. O fato de os alunos acharem Drummond “um chato” não anula
outro fato, este mais importante, de que o poeta itabirano é um dos escritores
mais relevantes da literatura brasileira e que sua ausência no currículo
escolar acarretaria uma grande falha na formação cultural dos estudantes. Creio
que Matemática seja uma das matérias mais impopulares. Contudo, não passa pela
cabeça de ninguém excluí-la do currículo do Ensino Básico. Não seria ridículo,
para dar outro exemplo, excluir citologia do currículo de Biologia apenas
porque os alunos, porventura, achem tal conteúdo “chato”? Os alunos estão em
processo de formação; isso quer dizer que ainda não detêm o conhecimento
que lhes permita discernir o que será ou não necessário para seu futuro ou reconhecer quais são as expectativas que a sociedade nutre em relação a um
indivíduo escolarizado. A responsabilidade de filtrar o que, entre as informações
existentes, é pertinente aos alunos — de acordo com seu nível de escolaridade —
é das instituições educacionais.
Mas então quais são os critérios que determinam os escritores estudados no Ensino Básico? O irônico é que é justamente isso
o que eu esperava encontrar num documento que tem por objetivo orientar a
composição do currículo nacional...
É possível discernir vários critérios, o mais óbvio deles é
o fato de as obras estudadas se limitarem geralmente às escritas em língua portuguesa, como forma de propiciar uma identificação
com a cultura e a história nacionais, e gerar um conhecimento sobre estas, além de auxiliar
no domínio da língua materna, apresentando aos alunos algo do que de melhor já
foi produzido em português. Outro critério passa pela constituição de uma
tradição literária: as obras, ao serem produzidas, costumam estabelecer um
diálogo com aquelas que lhe antecederam, de modo a tomá-las como referência e
inspiração. Cria-se assim um sistema inteligível de relações que, mais ou
menos fechado, permite apreender de maneira eficiente a evolução (ou
desenvolvimento) de uma determinada série literária através da história. Nas aulas
de Literatura, as obras costumam ser consideradas a partir de suas relações com
o conjunto dos textos literários aos quais elas se remetem de maneira mais
imediata. Um terceiro critério que pode ser apontado diz respeito menos à
literatura em si do que à dinâmica do campo acadêmico dos estudos
literários: obras mais estudadas por especialistas adquirem maior visibilidade
no meio intelectual e deixam atrás de si uma fortuna crítica que estabelece
parâmetros confiáveis de leitura e, com o passar do tempo, passam a integrar
o currículo do Ensino Básico.
Como já foi dito, tais critérios são arbitrários e podem ser
discutidos, modificados e até mesmo substituídos, mas eles existem. A seleção
das obras estudadas não resulta apenas do capricho dos professores e dos
estudiosos. Entretanto, há um critério que considero o mais
importante e que deveria subjazer a todos os outros.
Segundo Ezra Pound em ABC
da Literatura, “Literatura é linguagem carregada de significado”, sendo que
“grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o
máximo grau possível” (POUND, s.d., p. 32). Partindo da ideia de que, na obra
literária, o signo linguístico assume uma dimensão “plurissignificante” (isto
é, apresenta a capacidade de se desdobrar em diversos significados), podemos
dizer que maior é a qualidade de um texto quanto mais possibilidades de leitura
ele permita, ou quanto mais níveis de compreensão ele apresente. É isso o que
explica que certas obras sejam estudadas sistematicamente por séculos sem que
se esgote o que elas têm a dizer, suscitando o interesse do público de
diferentes épocas. Quando selecionamos os autores que serão estudados pelos
alunos, devemos dar preferência àqueles cuja obra traga maior gama de
virtualidades interpretativas. Assim distinguimos um Machado de Assis de um
Paulo Coelho, ou um Drummond de um Zé Ramalho. E como o educador pode saber
quais são os textos mais produtivos, semanticamente falando? Espera-se que um
professor da área de linguagem tenha proficiência na interpretação de textos e
certa familiaridade com a tradição de estudos das obras literárias, o que lhe
permitiria perceber quais obras representarão um ganho efetivo de aprendizagem
para o aluno.
Por mais que a ênfase na “alta literatura” possa
ser confundida com esnobismo intelectual, não se pode ignorar que uma das
funções da escola é apresentar ao aluno referências com as quais ele ainda não
possui familiaridade, permitindo-lhe ampliar sua visão de mundo. É demagógica
uma valorização da cultura popular que exclua o contato com produtos culturais
mais complexos e sofisticados. Os alunos não precisam da escola para conhecer
as canções de Zé Ramalho (que vira e mexe fazem parte da trilha sonora
de telenovelas de grande audiência), mas, infelizmente, o mesmo não pode ser
dito da poesia drummondiana. Sem falar que, para se ler Drummond,
exigem-se competências de leitura mais avançadas do que as necessárias à
compreensão de um texto ficcional cuja única finalidade é o entretenimento,
competências que cabem aos educadores ajudar a desenvolver. Privar os alunos do contato com o que de mais sofisticado
nossa literatura já produziu é também uma forma de exclusão, de natureza
intelectual e cultural. É negar ao estudante a possibilidade de se aprimorar
linguística, cognitiva e mesmo emocionalmente, pois a literatura pode
desempenhar um papel importante na formação afetiva dos indivíduos.
Está claro que a proposta pedagógica por trás dos PCN’s
passa pela integração das atuais disciplinas numa unidade curricular maior,
chamada de “área” (no caso, Literatura, Gramática e Produção de Texto, assim
como línguas estrangeiras e — pasmem! — Educação Física, comporiam a área de
Linguagem). Contudo, a abordagem equivocada e superficial dada pelos autores à
literatura mostra a falta que faz um conhecimento pouco mais delimitado sobre
o assunto... Não há qualquer indicação no sentido de se considerar o que
o texto literário possui de específico e que o distingue, por exemplo, de uma
conta de luz ou de uma bula de remédio. Ao que parece, os autores subscrevem
tal confusão. Tratada de forma indistinta em relação às demais manifestações
linguísticas (restrita à função de transmitir uma mensagem), a literatura perde
a maior parte de seu potencial formativo.
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