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Em Lira de lixo (2013), de Adriano Scandolara, somos submetidos a um corpo a corpo com a cidade de Curitiba. A realidade urbana é apresentada com todas as arestas e despejada sobre nós por um arranjo formal que reproduz a gama de estímulos sensoriais que saturam e golpeiam a sensibilidade numa metrópole. Vejamos, a esse respeito, “Canção do eremita”:
Quatro dias sem sair de casa
e o que perdi?
Carros, crânios
moídos nas madrugadas,
balões esvoaçantes
e meia dúzia de buquês
jogados no lixo
cão que foge, brinquedo que a rua
destrói
como um relógio, sem
que as horas cessem
suas transformações.
O cortejo
da vida como quem sai pra jantar
com uma pessoa estonteante
e burra.
O
eu lírico, em casa há quatro dias, pergunta o que teria perdido durante esse
tempo. Lá fora, segue o frenético “cortejo da vida”, colocando em desfile
fragmentos do cotidiano urbano, apresentados por meio de uma enumeração de
natureza paratática, isto é, da justaposição de sintagmas. Tal processo
cumulativo de coordenação das imagens poéticas é um dos princípios compositivos
mais evidentes em Lira de lixo e nos
remete à montagem. Essa montagem, no entanto, não parece responder apenas a uma
intenção de ligar os elementos representados, formando uma cadeia de imagens
coerentes. Na verdade, o que temos são imagens que colidem entre si,
configurando um todo disparatado, que parece encontrar seu princípio de
organização na ideia de choque[1].
Vejamos: os “crânios moídos na madrugada” opõem-se aos “balões esvoaçantes”,
que, embora relacionados visualmente por sua forma esférica, evocam repertórios
semânticos conflitivos — de um lado, o universo da brutalidade e das
catástrofes; do outro, o universo inocente das brincadeiras infantis. É o mesmo
espírito por trás do brinquedo destruído pela rua e, num certo sentido, também
pelos buquês jogados no lixo, em que a sublimidade do sentimento amoroso é
rebaixada ao plano do sujo e do degradado. Além da relação antitética que as
imagens estabelecem umas com as outras, há ainda uma violência inerente a elas,
que estende o choque do âmbito de princípio organizador da coordenação
imagética para um efeito deliberadamente perseguido: deseja-se impactar a
sensibilidade do leitor, imprimindo-lhe na imaginação o feio, o sujo e o
brutal. Parafraseio a sentença de Walter Benjamin a respeito da poesia de
Charles Baudelaire (BENJAMIN, 1989, pp. 110-1): Adriano Scandolara inseriu o
efeito de choque no âmago de sua produção lírica, o que significa fundamentá-la
numa vivência para a qual o choque tornou-se norma. Como exemplo, tomemos o
primeiro poema de Lira de lixo, “Da
misericórdia”, em que se passa bruscamente de uma consideração geral sobre as
condições da existência humana e de uma visada panorâmica...
Tudo é estopim,
gota de veneno que estraga vários litros d’água
e a surdez do concreto —
um grito
rasga as cordas
vocais.
Mas o céu é um grande ouvido,
cerúleo muro das lamentações,
... para o pormenor desconcertante
de uma cena doméstica:
já na sala
o cachorro, lenta e
empenhadamente,
coça o cu no tapete.
O
paralelo com Baudelaire é produtivo. Segundo Benjamin, o autor de Les fleurs du mal fez mais do que
introduzir os elementos da vida urbana como tema em sua poesia; ele teria
encontrado, no efeito de choque, a adequação formal para o tipo de vivência que
um indivíduo experimenta cotidianamente numa metrópole, como a Paris do Segundo
Império. Com uma série de mediações, é possível afirmar algo semelhante quanto
à obra de Scandolara em sua relação com a Curitiba do século XXI. Percebe-se
que a vida na grande cidade é a principal matéria da poesia de Lira de lixo. Na seção “Muros”, temos a
incorporação do material bruto que as ruas oferecem na forma de pichações,
aproveitadas pelo poeta como motes, dos quais os oito poemas seriam glosas. No
sexto deles, a inscrição “Elaine Puta” — encontrada repetidas vezes no trajeto
entre os bairros Batel, Bigorrilho, Mercês e Barigui — atravessa todo o poema,
rompendo suas linearidade e imanência ao torná-lo poroso à empiria, ao modo de
uma colagem de signos. É como se o deslocamento do corpo na cidade estivesse
impresso no poema, ou melhor: como se este correspondesse às pegadas deixadas
pelo poeta em seu percurso.
Como
ocorre em Baudelaire, a relação estabelecida pelo poeta com a cidade deixa-se
perceber num nível profundo, sedimentada nos estratos formais da obra.
Benjamin, em seu famoso ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica”, associa o efeito de choque no cinema à situação de um morador dos
grandes centros urbanos: “Diante do filme”, afirma Benjamin, “o espectador
percebe uma imagem, ela não é mais a mesma. [...]. A associação de ideias do
espectador é interrompida imediatamente, com a mudança da imagem. Nisso se
baseia o efeito de choque provocado pelo cinema, que, como qualquer outro
choque, precisa ser interceptado por uma atenção aguda. O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais
intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo. Ele corresponde a
metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o
passante, numa escala individual, quando enfrenta o tráfico, e como as
experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem social
vigente” (BENJAMIN, 1994, p. 192 — grifo do autor). O efeito de choque, além de
expressar a experiência social do indivíduo na modernidade, ainda o dispõe à
possibilidade revolucionária, à medida que acostuma seu aparelho perceptivo a
súbitas e constantes transformações, possuindo, portanto, uma dimensão
pedagógica que é puramente formal (que não se manifesta por conceitos) e atua
sobre os sentidos.
Mas
a posição de Benjamin em relação ao efeito de choque carrega uma ambivalência.
Em “Sobre alguns temas em Baudelaire”, vemos que o choque é menos um elemento
constitutivo da experiência do homem moderno que um indício da crise da
experiência como Benjamin a entende: “Quanto maior é a participação do fator de
choque em cada uma das impressões, tanto mais constante deve ser a presença do
consciente no interesse em proteger contra os estímulos; quanto maior for o
êxito com que ele operar, tanto menos essas impressões serão incorporadas à
experiência, e tanto mais corresponderão ao conceito de vivência” (BENJAMIN,
1989, p. 111). Para Benjamin, a experiência constitui-se quando o sujeito é
capaz de atribuir significado a um determinado acontecimento, integrando-o a
uma totalidade semântica, que é a vida. Tal significado depende de um conjunto
socialmente construído de valores e ideias, que, transmitido pela tradição,
orienta as ações e o pensamento das pessoas. A experiência, portanto, é o acontecimento tornado inteligível,
dotado de um sentido possível de ser transmitido (acima de tudo, trata-se de um
saber social e socializável)[2];
o contrário disso, o acontecimento destituído de sentido, intransitivo, é a vivência. Numa realidade social
submetida a constantes transformações pelo desenvolvimento técnico capitalista,
torna-se cada vez mais difícil estabelecer referências sólidas à ação, de
maneira que o saber tradicional perde rapidamente sua validade, antes mesmo que
novos valores tenham oportunidade de se sedimentar[3].
Como resultado, o indivíduo é obrigado a assimilar abruptamente os
acontecimentos sem quaisquer mediações, quer dizer, sem contar com um esquema
prévio no qual acomodá-los — daí o choque. É nesse sentido que o efeito de
choque não é tanto a expressão estética da experiência de uma realidade em
constante mudança — apontando no horizonte histórico para a revolução —, quanto
a degradação da própria experiência.
Em
Lira de lixo, sente-se de maneira
aguda o esfacelamento da vida como conjunto unificado de experiências. O que
temos no livro de Scandolara é um vertiginoso caleidoscópio de acontecimentos
que não encontram uma síntese que lhes dê um sentido definido; trata-se de um
monturo de vivências no qual a ideia de experiência aparece ironicamente
refletida, conforme se verá. Voltando a “Canção do eremita”, é justamente o que
se percebe: o cortejo da vida caracteriza-se por um contínuo fluxo de
acontecimentos desconexos, marcado por uma percepção meramente quantitativa do
tempo, da qual estão excluídas quaisquer possibilidades de conclusão ou
desenvolvimento (dela estão ausentes a noção de completude e de continuidade).
Tudo muda (“sem que as horas cessem suas transformações”), entretanto continua
o mesmo — a mesmice da rotina é constituída por um turbilhão de eventos que
nada transmitem ao indivíduo. Muitas coisas aconteceram enquanto o eu lírico
ficou em casa, mas nada de verdadeiramente significativo,
de modo que não perde muita coisa ao se manter recluso. A imagem da vida como
uma mulher estonteante, mas burra, expressa um conjunto de acontecimentos que
impressionam e seduzem os sentidos, porém vazio de significado, incapaz de
dizer algo que desperte o interesse do eremita entediado, como se vê também no
poema “Um reclame”:
O olhar da janela
—
estática
cinza-concreto.
De súbito
acidente
explosão incêndio chacina suicídio
Sangue no chuvisco
o aguardo no intervalo
breve no
espetáculo do tédio.
As
vivências numa grande cidade, convertidas em miríade de estímulos — em puro
sensacionalismo, diríamos —, não encerram qualquer lição, não ensejam nenhum
interesse. A sensibilidade embota-se diante do espetáculo sangrento das ruas,
como diante de um desses programas televisivos que exploram a miséria humana em
suas inúmeras facetas. Nem o choque é capaz de arrancar o eu lírico de sua
letargia. Essa mesma falta de sentido que parece caracterizar a vida estende-se
à história; em “A arte de governar”:
O que segura o mundo,
represa o mar de escombros
da queda de edifícios
pilastras governos
revolta e violência popular
deserto de pó e ossos
sob um céu tombado
barbárie e penúria,
(de resto,
burocracia)
é barbante e fita-crepe.
A
ordem social — que é como chamamos o tênue equilíbrio entre dissensos
inconciliáveis — sustenta-se sobre fundamentos frágeis (“barbante e
fita-crepe”). A tensão, o atrito, é a verdadeira argamassa do convívio humano;
resistimos, portanto, num equilíbrio entre forças destrutivas prestes a se
romper a qualquer momento. De aparentemente sólido, apenas o universo autônomo
da burocracia, imerso num formalismo mecânico que o aparta do fluxo caótico da
existência. Em “Onã e a revolução”, lemos que “o mundo em fúria ainda se move,
como um tanque, um trator”, esmagando os indivíduos em seu caminho. Considerada
como a combinatória de ações que nada mais expressam do que a violência e a
estupidez humanas, a história, em sua completa falta de sentido, não tem o que
ensinar. Segundo “Thousand yard stare”,
nem mesmo diante das guerras mais encarniçadas, como as que varreram o mapa
europeu na primeira metade do século XX, conseguimos extrair uma lição, por
mais óbvia que seja: “Dor que passa e nada ensina, além de qualquer morteiro ou
redenção”. Afinal, estamos falando de circunstâncias traumáticas, e o trauma é
o choque suspenso no tempo, repetindo-se indefinidamente, neuroticamente. Não é
mera coincidência que Benjamin descreva da seguinte maneira o retorno dos
combatentes da Primeira Guerra Mundial: “Na época, já se podia notar que os
combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em
experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros que inundaram o mercado
literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de
boca em boca”, isto porque “nunca houve experiências mais desmoralizadas que a
experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica
pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos
governantes”, e arremata: “Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado
por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo,
exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e
explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano” (BENJAMIN,
1984, pp. 114-5).
Tanto
a vida quanto a história são duas dimensões (uma individual e a outra coletiva)
de uma mesma realidade fragmentada, incoerente e absurda. Assim, não há
experiência possível neste mundo, nem aprendizagem, a não ser a cínica
aceitação da natureza trágica da existência. É o que vemos em “Poema de mote
judaico”, em que multidões embasbacadas assistem a Jó “de joelhos, rindo da
própria desgraça”. Aqui, retoma-se a figura central de um dos principais livros
sapienciais da Bíblia — que tinham por objetivo transmitir conhecimentos
embasados na experiência, constituindo aquilo o que se costuma chamar de
sabedoria[4]
— para escarnecer da gratuidade do sofrimento. Como foi dito rapidamente numa
passagem anterior, quando a experiência comparece no universo temático de Lira de lixo, ela é apresentada de forma
irônica, paródica, acusando sua própria inviabilidade no mundo contemporâneo. A
verdadeira sabedoria está, portanto, em aprender a aceitar resignadamente a
irracionalidade do destino (um acaso irredutível, na verdade), que nos atira
como náufragos contra os arrecifes do fracasso. Diz o “Poema pedagógico”:
“Depois de um tempo você aprende a se foder”, e mais:
A sabedoria tem osteoporose
e
por isso dói tanto,
quanta experiência não têm as pedras,
que coisas
sussurram
ao traseiro que senta nelas?
enquanto um rio inferior corrói a garganta de uma gruta
um arame farpado cerca frutos maduros,
e o que resta a dizer
brilho falho de lâmpada que apaga
melhor
diria
num gravador
a voz dum papagaio.
É
dolorosa a trágica consciência de que as coisas não encerram nenhum sentido.
Tais quais as pedras, vivemos uma existência cega, impermeável ao saber e
incomunicável. Tudo o que se pode dizer sobre o real é o eco de um eco, um
conhecimento absolutamente imperfeito e de terceiro grau: a voz de um papagaio
— que nada mais faz do que imitar o que outros dizem —, repetida por um
gravador, que reproduz mecanicamente o que nele é registrado. Vivemos na
caverna do mito platônico, mas a caverna, neste caso, abarca o universo inteiro.
Somos cegos guiados por outros cegos, numa ciranda interminável que mais parece
um labirinto.
Em
“Canção da experiência”, o modelo de sabedoria que nos é apresentado é uma
velha prostituta “de quem a idade tirou os dentes mas aumentou o preço do boquete”,
ou seja: uma desgastada profissional do sexo que compensa a perda de vigor
físico e das graças naturais dominando habilmente o métier. Mas, sobretudo, o que ela aprendeu foi entregar-se ao gozo
do sexo nos braços de seus clientes, por isso ela “ri discretamente dos
orgasmos que as carnes mais frescas fingem”, pois, uma vez enraizado o velho
hábito, “real de fato se fez o que se sente”. É uma lição análoga a de Jó,
embora de certo modo diversa: enquanto o malfadado patriarca bíblico aprende a
rir cinicamente da própria desgraça, a velha prostituta, diante da
inevitabilidade do coito, aprende a desfrutar do prazer que este possa
proporcionar-lhe; em certo sentido, ambas as personagens aprenderam a tirar
proveito de sua degradação, seja ela física, seja moral. Trata-se de uma
aceitação trágica do destino e, por isso mesmo, heroica, mas de um heroísmo
sarcástico e quase diabólico.
Aliás,
em “A educação do eremita”, encontraremos a misantropia como uma perversão do
heroísmo: “Misantropia é o caminho mais fácil mas deve ser seguido até o fim”.
Enquanto, no repertório religioso, eremita é aquele que se afasta do convívio
humano para alcançar iluminação por meio de uma vida ascética (isto é,
afasta-se deste mundo para adquirir maior familiaridade com as coisas do além),
na poesia de Scandolara, ele é um indivíduo cujo tédio e a melancolia o apartam
do fluxo da existência, possibilitando-lhe um olhar distanciado, de fora. O
eremita pode então reconhecer a falta de sentido da vida e, consequentemente, a
miséria da condição humana, mas isto não lhe desperta qualquer empatia ou
solidariedade — apenas desprezo e cinismo, quando não ódio declarado. O eremita
é um asceta do niilismo.
Voltemos
a “Poema pedagógico”, em que a verdade comunica-se de forma tão precária quanto
os sons de um papagaio reproduzidos por um gravador. Para insistir no
repertório conceitual de Benjamin, podemos dizer que essa visão das coisas
insere a poesia de Scandolara no domínio do alegórico. Enquanto no símbolo,
como o concebia a filosofia romântica, teríamos a manifestação da ideia (como
significado transcendente) numa aparição sensível, na alegoria, as imagens
remetem a uma ideia que lhe é exterior e da qual não passam de cópias, de
tentativas imperfeitas de expressá-la por aproximação. Dessa maneira, a
alegoria é a forma preferencial com a qual se reveste o pensamento na
impossibilidade de remontar a uma ordem superior de significação; em suma: a
alegoria surge a partir das próprias condições de existência do ser humano,
como ser inserido no âmbito da história e excluído da transcendência. Existindo
dentro da história, a imagem alegórica é sempre transitória e inacabada,
permeável à oscilação das circunstâncias concretas do existir. O sentido íntimo
das coisas, pois, comparece na alegoria como reflexo, um eco longínquo (como
aponta “Poema pedagógico”), ou como ruína, fragmento, na formulação de Benjamin[5].
O
universo temático de Adriano Scandolara é de natureza francamente alegórica, já
que nos apresenta o mundo como uma imagem esfacelada de si mesmo. Mas alegórica
também é a forma de sua poesia. Peter Bürger, em Teoria da vanguarda, retoma a categoria benjaminiana de alegoria
para descrever a obra de arte vanguardista por oposição à concepção tradicional
da obra de arte orgânica ou clássica. Segundo Bürger, o alegorista, ao subtrair
as coisas de seu contexto semântico (no qual elas possuem um sentido definido)
e encará-las como fragmentos autônomos, ele as esvazia de significado e reduz à
condição de material que se pode manipular livremente, sem a preocupação de
remetê-las a uma significação original: “Onde o clássico, no material,
reconhece e respeita o portador de um significado, o vanguardista vê
tão-somente o signo vazio, ao qual ele se acha habilitado a tão-somente
emprestar significado. Em conformidade com isso, o clássico trata seu material
como totalidade, enquanto o vanguardista arranca o seu à totalidade da vida,
isola-o, fragmenta-o” (BÜRGER, 2008, p. 143). E a distinção continua: “O
clássico produz sua obra com intenção de oferecer uma imagem viva da
totalidade. [...]. O vanguardista, ao contrário, junta fragmentos com a
intenção de atribuição de sentido (onde o sentido pode muito bem ser a
indicação de que não existe mais nenhum sentido). A obra não é mais criada como
um todo orgânico, mas montada a partir de fragmentos [...]” (Idem, ibidem, p. 144). Em Lira de lixo, o que vemos é um princípio
compositivo semelhante, em que, por meio da montagem e do choque, produz-se um
arranjo imagético caleidoscópico.
É
por meio dessa visada alegórica que melhor podemos considerar o diálogo
corrosivo que Scandolara estabelece com a tradição, como na apropriação
sardônica da figura de Jó em “Poema de mote judaico”, ou ainda do monstro
bíblico Leviatã, que, em “Pré-carnaval (2012)”, “dorme [...] com uma tremenda
dor de barriga”. Arrancadas de seu contexto original, que lhes dotava de um
sentido definido, tais referências da cultura letrada são convertidas à
condição de matéria bruta, à qual é possível atribuir o sentido (ou a falta de)
que se queira. Elas, então, são atualizadas e colocadas em contato com o
cotidiano urbano, chafurdando nele e deixando-se contaminar. Em “Eurídice”, por
exemplo, o Hades dos antigos gregos converte-se numa espécie de aterro
sanitário:
Até o tempo se perde
nesses negros córregos, vias
pálidas entre os prados
amontoados de lixo.
Poderíamos
ainda citar Orfeu, no poema homônimo, travestido de protagonista da novela das
oito (interpretado por um canastrão) e cujas mênades são suas pretendentes na
trama. Mênades, aliás, que num poema também homônimo, aparecem como parceiras
sexuais de um Orfeu para lá de mundano. Tal rebaixamento dessas figuras
mitológicas ao plano ordinário da atualidade representa um deslocamento irônico
por meio do qual elas, na condição de alegorias, passam a transmitir um
conteúdo diverso daquele que originalmente era o seu — no caso, tornam-se o
veículo de uma vivência moderna que corrói os valores por elas representados.
Scandolara evoca a tradição para denunciar sua caducidade, pois, se como afirma
Benjamin, “a experiência é a matéria da tradição” (BENJAMIN, 1989, p. 105), num
mundo onde a experiência não é mais possível, ela se apresenta invertida, em
negativo.
Outro
não é o espírito com que o autor retoma o esquema da lírica tradicional na
seção “Muros”. Como se sabe, motes e glosas integram a estrutura de
determinadas formas fixas da poesia, tanto em sua variante erudita quanto na
popular. Entretanto, tal forma compositiva comparece nos poemas de Scandolara
completamente deturpada, esgarçada pelos versos livres e pela parataxe —
implodida por dentro. Se, num primeiro momento, o apelo à tradição sugere o
afastamento do poema em relação à realidade e seu fechamento na imanência do
texto literário, o que se vê é justamente o oposto: a forma é erodida para
possibilitar que a empiria, por meio das pichações incorporadas, passe a fazer
parte da tessitura do poema. O esquema tradicional comparece aqui como ruína,
estrutura permeável à história, à atualidade.
Considerando-se
os poemas do livro em seu conjunto, percebe-se que Lira de lixo apresenta uma dualidade rítmica: de um lado, temos
poemas em que o tempo acelera-se, expressando o cotidiano alucinante de uma
grande cidade; do outro, o tempo estagna-se, afundando o eu lírico num estado
de imobilismo e paralisante acídia — trata-se do tempo percebido como
velocidade e como inércia, respectivamente. No tempo-velocidade (tempo percebido como velocidade), o que temos é o
frenético agitar-se das ruas, com sua multidão incessante de acontecimentos
aleatórios, que sobrecarregam os sentidos e nada ensinam. As imagens geralmente
assumidas por tal percepção do tempo são as de acidente automobilístico e
atropelamento, como em “Transcendendo o cinza”, “Paz de espírito”, “Canção do
eremita”, “Mais uma carniça”, “Um reclame” e “Elegia noturna”; e de queda
livre, que encontramos em “Ode ao edifício Ricardo”, “Da fantasia” e “Caderno
financeiro, 3º trimestre de 2008” .
Essas imagens transmitem a ideia de uma vivência estonteante, vertiginosa, e de
esmagamento do eu diante de uma realidade abrupta e brutal; um eu acachapado
“como se desenho atingido por marreta de desenho” (“Mais uma carniça”). Em tais
imagens, o choque repõe-se como tema, invadindo também o plano do enunciado.
Quanto
ao tempo-inércia, percebemo-lo
sobretudo nos poemas que tratam do espaço doméstico, do interior da casa, que,
de certa maneira, é uma extensão da subjetividade do eu lírico. As imagens aqui
referem-se ao mofo — “Nesta casa em que tudo mofa” (“A má companhia”), “mofo
crescendo em apatia nas paredes” (“Ascensão”) —, ao “ar impregnado” de
inseticida (“A má companhia”), ao ralo do chuveiro entupido (“Hesitação”) e,
saindo do espaço privado, a bueiros também entupidos (“Ascensão”). Tais imagens
comunicam a impressão de estagnação, de uma paralisia interior que se desdobra
em indícios externos. Preso dentro de casa, cercado de elementos familiares, o
eu lírico defronta-se com o vazio da própria existência, que o empurra ao
tédio, à apatia. Se, no tempo-velocidade, a montagem é a expressão formal de um
fluxo contínuo de eventos, no tempo-inércia, o mesmo procedimento dá a ideia do
acúmulo degradante de vivências que deterioram, entorpecem e enfastiam a
sensibilidade do indivíduo. Trata-se de uma impressão dilatada do tempo, que se
recusa a passar; a impressão de uma duração indeterminada dos pequenos eventos
cotidianos. Um tempo monótono, como o “vrim-vrom” de uma lavadora de roupas
(“Versos em homenagem ao Arrebatamento de 21/05/2011”).
Embora
o tempo-inércia pareça oposto ao tempo-velocidade, ambos se baseiam na mesma
matéria existencial. Se os eventos cotidianos não geram experiência, se não
encerram qualquer significado apreensível, tampouco motivam o eu lírico ou lhe
apresentam a possibilidade de aprendizagem e de desenvolvimento pessoal, tendo
como resultado a apatia e o imobilismo. Estamos falando de uma realidade em que
nada se sedimenta na vida interior do eu lírico, ensejando uma vida em que a as
memórias, acumuladas como “pó na mobília”, podem ser dispersas pelo gesto
distraído de uma empregada (“Silêncio de alvenaria”). Qualquer ação torna-se
inútil num mundo em que nada faz sentido, em que as coisas acontecem de maneira
aleatória ou determinadas pela estupidez humana, gerando um forte sentimento de
impotência. Outro não é o sentimento que encontramos em “Hesitação” e em
“Elegia noturna”. Aliás, neste último, temos o cruzamento do tempo-velocidade
com o tempo-inércia, no qual o eu lírico enxerga-se na condição de vítima de um
acidente de carro:
O canto
bêbado, três da manhã, de pneus,
rastro negro no asfalto,
e o despertar de
sobressalto.
Entre compaixão e desprezo
me vejo
num banco de trás
preso
ensanguentado entre ferragens
quando contra
o vento da sorte,
como o olhar paralítico
do cervo
refletindo dois faróis.
Como
o cervo, paralisado diante do automóvel que se aproxima para atropelá-lo, o eu
lírico enfrenta a sensação de total imobilidade. Está preso entre as ferragens,
ensanguentado, e olha a si mesmo com um misto de desprezo e compaixão, assim
como o Jó de “Poema de mote judaico”. A velocidade entra em colapso e gera a
inércia. Já em “Memento mori”, a inércia consome a velocidade na imagem de uma
Kombi em que o “movimento vem só em explosões por dentro/ entregue à ferrugem”
e dos “quatro cilindros de um motor inútil”. Tudo isso para expressar um tempo
que se caracteriza por contínuas transformações que nada acrescentam, que não
resultam em nenhuma novidade, elevando à angústia a salomônica constatação de
que não há nada de novo sob o sol. O tempo acelera-se, mas não transforma: as
coisas continuam as mesmas, isso porque “o tempo tem pressa e arrasta uma perna
aleijada” (“A carne feita”) — poderíamos dizer: ele tem pressa, mas não sai do
lugar, ou anda em círculos, ou ainda melhor: tem pressa, mas gira eternamente
em falso em torno de sua perna imóvel. O tempo é percebido como velocidade e
inércia simultaneamente, pois se a vida apresenta-se ao eu lírico feito uma
mulher estonteante e burra (feito uma série incongruente de vivências
destituídas de sentido), o tempo é puro desperdício. Velocidade e inércia,
portanto, são dois estágios de uma mesma percepção do tempo como entropia, como gradativa desorganização
das coisas e dispersão de energia, porém dois estágios que não se sucedem
cronologicamente, e sim dialeticamente.
A
concepção do tempo-entropia resulta de uma poética na qual a crise da
experiência no mundo moderno é levada, tanto do ponto de vista conceitual
quanto formal, às últimas consequências. Trata-se de uma experimentação radical
com o efeito de choque, fruto da configuração estética de uma vivência social
típica das metrópoles, denunciando — a partir da perspectiva de Walter Benjamin
— o parentesco da lira de lixo do autor brasileiro com as flores do mal
baudelairianas. Se o tempo é entropia, o mundo são os destroços de um desastre,
em que tudo é detrito e ruína — tudo é lixo (alegoria). É esse mundo que,
acompanhado de sua tortuosa lira, Scandolara canta “mascando um chiclete de
três mil anos”, idade aproximada da civilização ocidental se contarmos suas
origens na Grécia Antiga e entre os hebreus que lançaram os fundamentos da
religião judaica (“Profissão de fé”). Contudo, está ausente da poesia de
Scandolara qualquer resquício do tom otimista por meio do qual Benjamin
atribuía ao efeito de choque no cinema uma função pedagógica de preparação dos
sentidos à possibilidade revolucionária. Na realidade, o que temos é um
niilismo resoluto, cético a qualquer esperança ou promessa de redenção (seja
neste mundo, seja n’outro), como vemos em “Id(iot)elogia”:
Pobre
ou mata ou se mata
pra ser rico,
rico mata
pra manter-se rico,
monges marxistas expiam os pecados do mundo
batendo o Manifesto na testa.
Sem revolução
sem juízo final
os mortos mantêm-se mortos
e os vivos os invejam.
Trata-se
de um ceticismo intransigente, para o qual o horizonte histórico é um jogo de
espelhos, refletindo infinitamente a mesma imagem paralisada de um pretérito e
de um presente devastados. Obviamente, a visão de Benjamin é tributária de seu
tempo, no qual a revolução parecia um fantasma bastante palpável por conta de
outubro de 1917. Por outro lado, a perspectiva de Scandolara igualmente
remete-se a seu contexto — que é, afinal, o nosso —, em que se verificam, no
âmbito de uma economia “emergente”, a consolidação de um capitalismo de consumo
que, englobando uma parcela cada vez maior da população, deixa pouco espaço a
projetos alternativos de organização social e econômica. O capitalismo, com
suas contínuas inovações, reinventa-se a cada instante para manter-se
estruturalmente o mesmo nos diversos contextos que engendra; sua capacidade
proteiforme de se amoldar às mais variadas circunstâncias parece infinito.
Abusando
da boa vontade dos leitores que não partilham dos princípios da crítica
dialética, ousaria dizer que talvez esteja aí o cerne da questão: o cotidiano
frenético das grandes cidades (que, como tenho defendido, constitui o conjunto
de vivências que se encontram na base da poesia de Scandolara) nada mais é do
que o aspecto mais visível — porque imediatamente perceptível numa escala
individual — da expansão, ou dilatação, do sistema capitalista em sua etapa
avançada. A consistência do conjunto de poemas de Lira de lixo consiste nisto: na cerrada articulação dos aspectos
formais, temáticos e ideológicos da obra, resultante da elaboração estética de
uma matéria histórico-social definida.
Referências bibliográficas
BENJAMIN,
Walter. Origem do drama trágico
alemão. Tradução João Barreto. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
—————
. Magia e técnica, arte e política —
Obras escolhidas, vol. I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
—————
. Um lírico no auge do capitalismo —
Obras escolhidas, vol. III. Tradução José Carlos Martins e Hemerson Alves Batista.
São Paulo: Brasiliense, 1989.
BÜRGER,
Peter. Teoria da vanguarda. Tradução
José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
EISENSTEIN,
Sergei. “Fora de quadro”. In: A forma do
filme. Tradução Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002.
SCANDOLARA,
Adriano. Lira de lixo. São Paulo:
Patuá, 2013.
[1]
Para uma reflexão, aplicada à arte cinematográfica, da diferença entre a
montagem concebida como ligação e a
ideada como colisão, cf. EISENSTEIN,
2002, p. 42.
[2]
“Na verdade, a experiência é matéria da tradição, tanto na vida privada quanto
na coletiva. Forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados na
memória, do que com dados acumulados, e com frequência inconscientes, que
afluem na memória” (Idem, ibidem, p.
105).
[3]
Para uma visão mais abrangente das implicações do fato de que, para Benjamin,
“as ações da experiência estão em baixa”, cf. “O narrador: considerações sobre
a obra de Nikolai Leskov” (BENJAMIN, 1984, pp. 197-221).
[4]
Segundo Benjamin: “O conselho tecido na substância viva da existência tem um
nome: sabedoria”. Idem, 1984, p. 200.
[5]
Cf. Idem, 2013, pp. 169-201.
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