A dimensão necessária[1], livro do poeta baiano João Filho, publicado em 2014, destaca-se
no panorama atual da poesia brasileira sobretudo por duas características: a
utilização metódica de formas fixas e um apelo ao transcendente que, embora
assuma caráter religioso (cristão, mais especificamente), não se restringe a
essa temática nem resvala no proselitismo. Além da mão de mestre que se percebe
por detrás dos elementos técnico-formais, chama a atenção a qualidade imagética
dos poemas, que é o que pretendo investigar, estabelecendo um contraponto com a
obra de João Cabral de Melo Neto. A princípio, pode parecer descabido comparar
um poeta quase iniciante (A dimensão
necessária é seu segundo livro, precedido por Três sibilas, de 2008) a um poeta do quilate de Cabral, com certeza
um dos maiores nomes de nossa literatura. Porém, não só a poesia de João Filho
se sustenta diante da comparação (pois trata-se sem dúvidas de um poeta de
estro), como ajuda a distinguir aspectos relevantes da obra do autor de A educação pela pedra. Sem mais delongas,
comecemos.
Em
“Salvador, 1996-2013”, segundo poema de A
dimensão necessária, o eu lírico convida a contemplar a capital baiana desde
o alto:
Ali do alto, que é abrupto,
a cidade é curva contínua,
sinuosidade negativa,
abre-se em praias e ravinas.
Disseram gorda em
seu amplexo,
digo salitre,
vento Atlântico:
salga e apodrece em paradoxo.
Aqui se canta um velho cântico: (p. 15)
A
referência que salta aos olhos nesse poema é o João Cabral dos panoramas
urbanos de livros como Paisagens com
figuras (1955) e Quaderna (1959), a despeito do uso da
primeira pessoa do singular (“digo salitre”)
e da alusão musical (“Aqui se canta um velho cântico”), uma vez que a poesia
cabralina caracteriza-se por sua impessoalidade e pela declarada aversão à
música. Em “Pregão turístico do Recife”[2], de Paisagens com figuras (João Cabral), temos:
Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado de um rio.
Com os sobrados podeis
aprender lição madura:
um certo equilíbrio leve,
na escrita, na arquitetura. (MN, 1955, p. 147)
A
proximidade entre os dois poetas não se dá apenas na escolha do tema, pois,
além da ênfase nos aspectos imagéticos (fanopeia) comum a ambos, por vezes é
possível flagrar certa dicção cabralina em João Filho, pelo tom analítico de
algumas passagens. De fato, a poesia de João Cabral parece ser o modelo formal
dos seis primeiros poemas da seção “Luz alheia”, como atestam a opção pela
quadra (uma constante na poesia do pernambucano), o uso das rimas toantes como
eixo rítmico da composição e a escolha do verso octossílabo, o mais
característico da obra cabralina a partir de determinado ponto[3] —
embora o octossílabo de João Filho seja regular, com acento na quarta sílaba
poética, o que contraria a lição do mestre[4]. Dos seis poemas
mencionados, o único que escapa a esse esquema é o primeiro, “Nitidez
submersa”, escrito em versos de sete sílabas (uma variação, no entanto,
prevista na poesia cabralina).
Outra
característica que aproxima o João baiano do pernambucano é a insistência na
imagem da luz e seus derivados, como manhã, claridade etc. Nas duas últimas estrofes de “Salvador, 1996-2013”,
lemos:
Tudo externado? Não o âmago,
por isso engana quem a vê
cidade-entrega, as cores gritam
em cada esquina o seu não ter.
A precisão só vem de cima —
luz em ladeiras, luz marinha,
a luz em flor, a que combina
a dor do nu, o mel da vinha.
Nesta
passagem, o torneio dialético é tipicamente cabralino (“Tudo externado? Não o
âmago”), em que associações imagéticas anteriores são desmentidas ou
relativizadas por novas metáforas e símiles, como percebemos na seguinte
passagem de “Estudos de uma bailadora andaluza”, de João Cabral:
Dir-se-ia, quando aparece
dançando por siguiriyas,
que com a imagem do fogo
inteira se identifica.
(...)
Porém a imagem do fogo
é num ponto desmentida:
que o fogo não é capaz
como ela é, nas siguiriyas,
de arrancar-se de si mesmo
numa primeira faísca,
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra a fibra, (grifo meu — MN, 1959, pp.
219-20)
No
poema de João Filho, delineia-se semelhante contraponto de perspectivas, no
qual a voz lírica desautoriza o senso comum (no poema de Cabral, expresso por
um impessoal “dir-se-ia”; em “Salvador 1996, 2013”: “Disseram gorda [...]/ digo
salitre [...]”). Mas eu falava da reiteração da imagem da luz em A dimensão necessária, como na seguinte estrofe:
A precisão só vem de cima —
luz em ladeiras, luz marinha,
a luz em flor, a que combina
a dor do nu, o mel da vinha.
Qualquer
leitor familiarizado com a obra de João Cabral de Melo Neto reconhece a
verdadeira obsessão do poeta pernambucano por imagens solares. Novamente, em
“Pregão turístico do Recife”:
Do mar podeis extrair,
do mar deste litoral,
um fio de luz precisa,
matemática ou metal. (MN, 1955, p. 147)
Porém,
talvez a imagem mais conhecida da luz na obra de João Cabral esteja em “Tecendo
a manhã”, de A educação pela pedra,
no qual se fala da “luz balão” da alvorada elevando-se como “toldo de um tecido
tão aéreo” (Idem, 1965, p. 345) — no
primeiro poema de “Pequenos tesouros portáteis”, série que tem a luz como tema,
João Filho descreve de maneira parecida o dia que nasce: “Lençol diáfano/ sobre
a cidade” (p. 95). A luz, na poesia cabralina, assume um sentido metafórico,
fundado na relação entre luz e razão estabelecida desde a Antiguidade (em
Platão, por exemplo), mas que, a partir do Iluminismo — no chamado “Século das
Luzes” —, adquire sua feição moderna. É o que vemos em “Fábula de um arquiteto”,
em que a função da arquitetura seria deixar o espaço aberto à circulação de “ar
luz razão certa” (MN, 1965, p. 346). Por sua vez, em “O engenheiro” (do livro
homônimo), encontramos:
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre. (Idem, 1945, pp. 69-70)
Temos
aqui a imagem da luz-razão que dissipa as sombras do desconhecido, dando ao
homem acesso à realidade, para além de qualquer preconceito, ilusão e engano. É
a luz que desvela, que suspende o véu da segunda natureza (da ideologia, em
termos marxistas) que encobre a face verdadeira das coisas. Marshall Berman, em
Tudo que é sólido desmancha no ar,
demonstra como a metáfora do véu —
que originalmente, no discurso religioso, remetia-se à natureza ilusória do
mundo sensível, que ocultaria a essência imutável das coisas — foi apropriada,
na Idade Moderna, para tratar de uma ruptura com a tradição e com as práticas
sociais estabelecidas, deslocando para a realidade concreta e contemporânea o
domínio da verdade: “Agora o falso universo é visto como o passado histórico,
um mundo que perdemos (ou estamos a ponto de perder), enquanto o universo
verdadeiro consiste no mundo físico e social que existe para nós, aqui e agora
(ou que está a ponto de existir)[5]”. A
poesia de João Cabral movimenta-se nesse domínio de referências, manifestando
um caráter abertamente materialista, no qual a razão é a luz que disseca a
realidade, despindo-a de qualquer ilusão metafísica. Em “O sol em Pernambuco”,
lê-se: “dá-se que hoje dói na vista tanta luz:/ ela revela real o real, impõe filtros” (grifo meu — MN, 1965, p.
357). Em “Fábula de Anfion”:
O sol do deserto
não choca os velhos
ovos do mistério. (Idem,
1947, p. 88)
Diverso
é o significado que João Filho atribui à luz em sua poesia. Em “Manhã meditada”,
de nítida matriz formal cabralina, temos a crítica a uma visão materialista
que, diante do milagre diário do amanhecer, nada mais enxerga que um simples
“capricho” da natureza:
(...)
Não a molesta [a manhã] a desmemória
e a arte ingrata que se esmera
em dissecá-la: só matéria.
Cegos de vê-la, consideram
mais um capricho o sacerdócio
de dar contorno, peso e sopro
ao que era limbo em duplo espaço: (p. 19)
A
luz, em A dimensão necessária,
representa o indício de uma ordem superior que rege a realidade sensível[6];
ordem mencionada em “Nitidez submersa”, poema de abertura do livro. Nele, o eu
lírico entrevê na fuligem da sola de seus sapatos “a clara sustentação/ dos
fios frágeis do mundo” (p. 14). A fuligem remete ao “pó do mundo” (quarta
estrofe, p. 13), sendo pó metonímia
recorrente na poesia de João Filho para referir-se à natureza perecível das
coisas materiais e à mortalidade humana, evocando a lição bíblica do Gênesis e
do Eclesiastes: “Do pó vieste, ao pó retornarás”. Através de uma existência
errante, em trânsito — em trânsito = transitória, que é a própria condição do
homem como ser mortal — e figurada pela fuligem no sapato, é possível
vislumbrar as “grafias do diáfano” (p. 14), isto é, os vestígios de um plano
maior, escritos por um Criador. A “nitidez submersa” que o poema menciona são,
portanto, os sinais de um princípio ordenador inteligível em meio ao aparente
caos da existência. Trata-se da luz que fecunda o mundo de sentido, como lemos
no quarto poema de “Pequenos paraísos portáteis”:
(...)
mas qualquer ponto
do mundo visto
ou pressentido
é a luminosa
emanação
da pura ordem. (p. 106)
A
luz física, aquela que certos olhos enxergam como “só matéria”, é a
manifestação sensível de outra luz, energia puramente espiritual. Estou me
referindo à “Luz Invisível” (“Light
Invisible”), que aparece na última seção de Choruses from “The Rock”, de T.S. Eliot[7], poeta do qual João Filho
aproxima-se pelo teor metafísico e religioso de sua poesia. Essa Luz, como se
pode deduzir, é aquela que encontramos no texto de outro João, o evangelista,
nas palavras de Jesus: “Eu sou a luz do mundo; quem me segue, de modo nenhum
andará nas trevas, pelo contrário terá a luz da vida” (Jo 9:5). Assim, em A dimensão necessária, a luz como
metáfora retoma seu sentido religioso primeiro, afastando-se da concepção
moderna expressa na poesia de João Cabral — a da poesia como dissecação da
realidade empírica, como desvelamento —
para expressar uma concepção da luz como fonte de alumbramento espiritual, de revelação (com toda a conotação
teológica que tal termo carrega no cristianismo).
No
entanto, mais do que simplesmente diferenciar a visão de mundo dos autores,
limitando-se aos aspectos ideológicos de suas obras, essas duas concepções
acerca da luz expressam diferentes maneiras de considerar a relação entre a poesia
e o real. Em primeiro lugar, deve-se levar em conta que, tanto para Cabral
quanto para João Filho, a poesia — ou a subjetividade do poeta — é lâmpada, e não espelho, para empregarmos as metáforas críticas que M. H. Abrams
identifica na tradição de estudos literários até o Romantismo[8]. Segundo
Abrams, predomina entre os românticos a ideia de que a obra literária não é
apenas um reflexo do mundo tal qual nós o percebemos (poesia como espelho), mas
que a imaginação poética é capaz de iluminar aspectos não evidentes da
realidade, ultrapassando o âmbito das aparências e atingindo seu núcleo
verdadeiro (poesia como lâmpada). No entanto, os dois poetas aqui confrontados
divergem no que se refere ao modo de conceber essa realidade, o que tem
implicações na construção das imagens nos poemas.
Como
já disse, tanto a poesia do João pernambucano quanto a do João baiano possuem
uma forte ênfase visual. Além disso, em ambos há uma procura de associações que
surpreendam o leitor, um gosto pela trouvaille,
afastando-os assim do domínio das figuras de linguagem chanceladas pela
tradição. Em João Cabral, no entanto, os procedimentos associativos — como
símiles, metonímias e metáforas — beiram muitas vezes o insólito, pois o poeta
pernambucano constrói relações de contiguidade a partir de qualidades puramente
circunstanciais em seus objetos. Um exemplo disso é o poema “Estudo para uma
bailadora andaluza”, em que uma dançarina de flamenco é comparada ao fogo; a uma
espécie de “centaura”, na qual se unem dança (montaria) e dançarina (amazona);
ao ato de telegrafar; a uma árvore; a um livro de capa e contracapa idênticas,
que se desdobra em duas estátuas; a uma espiga de milho. Fiquemos com a última
comparação:
Na sua dança se assiste
como ao processo da espiga:
verde, envolvida de palha;
madura, quase despida.
Parece que sua dança
ao ser dançada, à medida
que avança, a vai despojando
da folhagem que a vestia.
Não só da vegetação
de que ela dança vestida
(saias folhudas e crespas
do que no Brasil é chita)
mas também dessa outra flora
a que seus braços dão vida,
densa floresta de gestos
a que dão vida a agonia. (MN, 1959, p. 224)
No
autor de Morte e vida Severina, as
associações imagéticas são da ordem do artifício que se assume como tal,
ressaltando seu caráter arbitrário e construtivista. Relacionando seres
irredutíveis entre si a qualquer vínculo de identidade, João Cabral, por uma espécie
de dialética das imagens que resulta em choque, espera desvendar aspectos
insuspeitados de seus objetos. Tal procedimento, que remonta ao Barroco e aos
poetas metafísicos ingleses, encontra em Baudelaire seu principal
sistematizador e difusor na poesia moderna; basta lembrar os versos de “Le couvercle” em que o céu é descrito
como a tampa de uma enorme marmita que confina a humanidade (“Le Ciel! Courvecle
noir de la grande marmite/ Oú bout l’imperceptibile et vaste Humanité”)[9]. Interessado no modo como, na poesia baudelairiana, são
abolidos os limites entre o estilo elevado e o baixo — resultando num tratamento
sério e sublime de temas que, até então, mereciam apenas abordagem burlesca —,
Erich Auerbach afirma: “Nele [em Baudelaire], pela primeira vez encontramos
completamente desenvolvidas estas combinações surpreendentes e aparentemente
incoerentes (...). O poder visionário de tais combinações exerceu uma
influência crucial na poesia posterior; parecem ser a mais autêntica expressão
tanto da anarquia interior da época quanto de uma nova ordem encoberta que
ainda começava a surgir”[10].
Walter
Benjamin, em seus estudos sobre Baudelaire, deixou apontamentos inconclusos sobre
o que seria uma “visão alegórica” na obra do autor de Les fleurs du mal[11]. Partindo
do conceito de alegoria na literatura barroca, sobretudo na tragédia alemã do
período, Benjamin nos mostra que, enquanto no símbolo (como o entendia a filosofia romântica), teríamos a
manifestação de um princípio transcendente (a Ideia) numa aparição sensível, na
alegoria — que se relaciona a uma
noção da história como Queda, como exílio da pátria metafísica —, as imagens remetem
a um significado superior que as ultrapassa e o qual elas comunicam apenas de
maneira aproximada, arbitrária e imperfeita[12]. O que difere a alegoria barroca da alegoria moderna
(aquela encontrada em Baudelaire, por exemplo) é o fato de que, enquanto para o
homem barroco a possibilidade de uma imagem inteligível do mundo ainda fazia
parte de seu horizonte de expectativa — mesmo que projetada na transcendência —,
na modernidade, tal possibilidade se dissipa. Não se trata do descrédito das
religiões como sistemas de ideias, ocasionado pela consolidação da ciência
moderna, mas da crise da experiência em pleno desenvolvimento do capitalismo
industrial, da qual o descrédito das religiões é uma manifestação.
Segundo
Benjamin, experiência é o significado
que atribuímos a um acontecimento, sendo que tal significado depende de um
conjunto de referências que orientam a ação e o pensamento das pessoas. A esse
conjunto — socialmente constituído e passado de geração em geração — damos o
nome de tradição, que pode ser
definida como o acúmulo de experiências no seio de uma comunidade ou cultura[13]. A
experiência, portanto, é um saber social, ou seja: um saber socialmente construído
e socializável, interpessoal por natureza. Já o acontecimento destituído de
qualquer significação, incomunicável, constitui-se subjetivamente como vivência[14]. Assim, é possível dizer
que é a experiência que empresta sentido humano às coisas e ao mundo. Ocorre que,
na Idade Moderna, principalmente a partir do século XIX, a realidade social
passa a sofrer súbitas e constantes transformações, de modo que o saber
tradicional, que possibilita a experiência, perde gradativamente sua validade.
Como consequência, o mundo perde também inteligibilidade e as pessoas se isolam
subjetivamente. Numa escala individual, não se consegue mais integrar os
acontecimentos numa totalidade semântica que, para Benjamin, é a vida. Dito com outras palavras, vida é o
conjunto de experiências — ligadas a um indivíduo — que se articulam instituindo
uma relação inteligível entre si[15].
Podemos
dizer, enfim, que a alegoria é o modo como a vivência se expressa na literatura
moderna; é a forma literária que assume um mundo destituído de significado
humano. Uma vez que as coisas não possuem um sentido intrínseco e não se
integram numa ordem definida, é possível comparar elementos absolutamente
díspares, forjando relações insólitas. É esse o olhar alegórico de Baudelaire,
que lhe renderia de Brunitière o epíteto de “génie de l’impropriété”[16]. Não é por acaso que Peter
Bürger busca no conceito de alegoria de Benjamin o princípio estético que rege
a atitude do artista de vanguarda: “Onde o clássico, no material,
reconhece e respeita o portador de um significado, o vanguardista vê
tão-somente o signo vazio, ao qual ele se acha habilitado a tão-somente
emprestar significado. Em conformidade com isso, o clássico trata seu material
como totalidade, enquanto o vanguardista arranca o seu à totalidade da vida,
isola-o, fragmenta-o”[17].
E a distinção prossegue: “O clássico produz sua obra com intenção de oferecer
uma imagem viva da totalidade. (...). O vanguardista, ao contrário, junta
fragmentos com a intenção de atribuição de sentido (onde o sentido pode muito
bem ser a indicação de que não existe mais nenhum sentido). A obra não é mais
criada como um todo orgânico, mas montada a partir de fragmentos (...)”[18].
Esse olhar alegórico preside também
a criação do repertório imagético em João Cabral de Melo Neto, com suas
sobreposições incongruentes de imagens, às quais a meticulosa coordenação dos
aspectos formais e o tom analítico, que aponta semelhanças acidentais como se necessárias
fossem, ocultam a natureza fragmentada do arranjo, dando-lhe uma rigorosa aparência de integridade. Mas, ainda assim, é
impossível não perceber seu caráter de constructo, de coisa armada. No processo
de desvelamento da realidade na poesia cabralina, que deseja apreender o real
despido de qualquer significado que o transcenda, em seu bruto estado imanente,
há um esforço de criar uma forma comunicável aos acontecimentos percebidos como
vivência, de encontrar uma interlocução possível dentro do estilhaçamento da
experiência no mundo contemporâneo, pois disso depende qualquer tipo de coesão
social. Daí sua conjugação de construtivismo estético e engajamento político.
Isso a partir de uma compreensão da imagem poética que, em seu excesso de
racionalismo crítico, remonta à arbitrariedade da alegoria barroca, agora posta
a descoberto. Em João Filho, ao contrário, o que parece haver é um desejo de
restituir a experiência ao mundo, apelando, numa ordem social a esta
irredutível, a uma ordem axiologicamente superior, que é o metafísico.
Não são poucas as imagens em A dimensão necessária que surpreendem
pelo inesperado de suas associações. Um dos exemplos mais bem acabados está no
poema “Pequeno oratório”, do qual destaco as duas primeiras estrofes:
Meu coração, pobre capela,
tão devedor do gesto alheio.
A débil luz de sua vela
deixa confuso este romeiro.
Não quer rezar, contudo reza,
no seu altar de tosca pedra
— a comunhão é o que pesa —
Deus não é busca nem espera. (p. 56)
Talvez
retomando a visão de Agostinho de Hipona do coração humano como local onde as
repercussões do Verbo divino comunicam-se aos indivíduos[19], a imagem da vela aqui,
ainda que sua chama seja débil, vai ao encontro da representação da
subjetividade do poeta como centro irradiador de luz para o mundo; a metáfora
da lâmpada, da qual M. H. Abrams falava. Apresenta-se uma analogia entre o
coração do eu lírico e uma “pobre capela”, que se estende pelas demais cinco
estrofes do poema. A comparação baseia-se na ideia de que, tanto na mais
singela capela — como simboliza a lâmpada do Santíssimo — quanto no coração do
mais reles mortal, Deus seria uma presença perene (afinal, “Deus não é busca
nem espera”). Esse paralelismo inicial desdobra-se em metáforas secundárias,
como na imagem do coração “casulo d’alma” e “jardim sem calendário” (idem). Tais imagens afastam-se das de
João Cabral pois procuram surpreender afinidades profundas,
subterrâneas, entre as coisas. Dessa maneira, João Filho aproxima-se de
Baudelaire por outro flanco: o das correspondências.
De acordo com o soneto “Correspondances”, de Baudelaire —
escrito sob a influência da tradição de estudos da obra do místico Emanuel
Swedenborg —, através da Natureza é possível
pressentir
uma dimensão em que as coisas coexistem em absoluta unidade, de tal modo que as
sensações que delas se originam tornam-se intercambiáveis (“Les parfurms, les couleurs et les sons se
répondent”)[20]. Já em João Filho, as grafias do diáfano
encontram-se inscritas na fuligem do mundo, apontando outro nível de
compreensão dos fenômenos sensíveis. Trata-se, portanto, de utilizar as imagens
como portadoras de um sentido que as perpassa e que, devido aos limites da
linguagem, só pode ser parcialmente comunicado por meio de outras imagens
igualmente impregnadas de sentido. Se aqui não escapamos ao domínio do
alegórico, esta é uma alegoria que se pretende mais próxima de sua concepção
original na teologia, onde Benjamin a foi colher inicialmente, e incorporada a
uma postura estética mais “clássica”, conforme Bürger a define em oposição à
vanguardista. Em suma, todas as coisas se equivalem como imagens poéticas na
medida em que apontam um mesmo significado fundamental e se entrelaçam numa dimensão
necessária da existência — poesia Comunhão.
Na dicotomia representada pela
obra dos dois “joões”, o Neto e o Filho, é possível distinguir as posições que,
segundo Octavio Paz, caracterizam a poesia moderna desde o Romantismo: a
analogia e a ironia. A analogia é a operação poética por meio da qual as
diferenças entre os seres são redimidas numa identidade ilusória, expressando
um anseio de integração de todos os âmbitos da existência, como, por exemplo, a
vida e a arte; é a crença numa harmonia universal que rege o concerto das coisas
existentes[21].
A ironia, por sua vez, baseia-se na consciência a respeito da irredutibilidade
de cada ser e da descontinuidade da existência, que a tudo sentencia ao
desaparecimento, à extinção. Trata-se de uma concepção niilista,
filosoficamente falando: ou o universo, em sua diversidade, não possui um
sentido que o unifique, ou então esse sentido não é apreensível[22].
Ainda segundo Paz, essas duas posturas coexistem problematicamente na obra de
Baudelaire[23],
como observamos na ambivalência entre spleen
e ideal[24].
Arrisco dizer que a alegoria, como a vimos em Benjamin, talvez seja a faceta
degradada e irônica da correspondência, forçando a analogia até seus limites,
até que se rompa a ilusão de identidade. Relacionando o pensamento do teórico
alemão ao do mexicano, parece lícito afirmar que tanto a analogia quanto a
ironia são uma resposta ao declínio da experiência, só que, enquanto a última é
a expressão da consciência e da aceitação desse declínio, a primeira representa
uma nostalgia da experiência e um desejo de restaurá-la. Segundo Octavio Paz:
“A poética da analogia só podia nascer numa sociedade fundada — e roída — pela
crítica. Ao mundo moderno do tempo linear e suas infinitas subdivisões, ao
tempo da mudança e da história, a analogia contrapõe não a impossível unidade,
mas a mediação de uma metáfora. A analogia é o recurso da poesia para fazer
frente à alteridade”[25].
A obra de João Filho é uma
representante de poética analógica, ao passo que em João Cabral encontramos a
alegoria benjaminiana, que é a analogia roída por dentro pela ironia. Nisso
está fundada mais uma relevante diferença entre os dois: é notória a ojeriza
que o poeta pernambucano manifestava em relação à música, tanto que, em seu
poema “A palo seco”, celebra-se uma modalidade do flamenco cantada a capella justamente por se tratar de um
“cante que não canta” (MN, 1959, p.
250). Por sua vez, a poesia de João Filho está cheia de “imagens musicais”,
desde “Uma mulher toda música” (título de um soneto lírico-amoroso de “Luz
alheia” — p. 26), ao “velho cântico” (p. 15) que ecoa sobre Salvador e que
representa a atmosfera religiosa emanada de suas igrejas coloniais. Em “Capela
do Hospital Santo Antônio”, o amor (caritas)
irradia da referida capela como um “acorde se estendendo”, levando o eu lírico
a se questionar: “quem O desfere?” (p. 17). Entretanto, um dos exemplos mais
significativos dessa tendência encontra-se nos primeiros versos da sexta parte
de “A fonte vertical”:
A Voz — música sem pauta — atravessa
poro e espírito, vem das planícies mais altas,
diz tudo sem uma palavra: aí começa a
significar-me inteiro da única falta.
É quando o fluxo fala e o coração ressoa
ao menor ruflo dessa Luz ou Voz. (p. 41)
A
Voz, que é música, confunde-se com a Luz, cujo significado já vimos. Voz que,
mesmo sem proferir uma única palavra, empresta significado à existência do eu
lírico. Disso depreendemos que, se existe uma ordem regida harmoniosamente por
um Criador, ela pode muito bem ser representada como música. Aliás, insistindo
nas formulações de Octavio Paz, se a analogia é entendida como uma busca por
ressonâncias universais, a realidade traduz-se como ritmo: “A analogia concebe
o mundo como ritmo: tudo se corresponde porque tudo ritma e rima” (p. 71). Se o
ritmo universal e a inteligibilidade do mundo levaram Paz a descrever a
realidade sob as leis da analogia como um poema, no caso de João Filho, no qual
deparamos com uma voz que não profere palavra — canto pleno, em oposição ao cante
sem canto cabralino —, creio não ser uma impropriedade dizer que, em A dimensão necessária, a noção de uma
regularidade da existência assume a imagem da música: não exatamente a música
das esferas, mas o Verbo divino (criador do universo) que ecoa no coração dos
homens num idioma que não é grego, nem latim — é puro canto.
A
afinidade da poética de João Filho com a música tem raízes profundas em sua
forma de enxergar o mundo e conceber a poesia, pois a ideia da metáfora como
ressonância integra uma visão da ordem universal associada à musicalidade. Por
outro lado, em João Cabral, cuja poesia procura defrontar a imanência e a
descontinuidade do real empírico, a música, com sua regularidade encantatória, não
pode ser encarada senão com desconfiança. Talvez por isso a opção de Cabral pelo
metro irregular, sem cesuras, ao mesmo tempo que persiste nele a necessidade de
dotar os versos de uma regularidade artificial, matemática, para que o poema
não irrompa na algaravia, no puro alarido, no balbucio.
De
um lado, a imagem é choque, é tensão entre o despropósito da metáfora — que enche
o texto com suas arestas — e consciência geométrica (João Cabral); do outro, a
imagem é ressonância, é busca de uma unidade perdida e nostalgia da Comunhão, a
partir de uma lógica compositiva que valoriza a carpintaria das formas
tradicionais (João Filho). Dois autores em certa medida semelhantes, mas
radicalmente distintos; este ensaio, em seu método comparativo, foi também a
tentativa de realizar uma metáfora.
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BÜRGER,
Peter. Teoria da vanguarda. Tradução
José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
ELIOT,
T. S. Obra completa, volume I: poesia.
Edição bilíngue. Tradução Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004.
JOÃO-FILHO.
A dimensão necessária. Ilhéus:
Mondrongo, 2014.
MELO-NETO,
João Cabral de. Obra completa. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
PAZ,
Octavio. Os filhos do barro.
Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
[1] JOÃO-FILHO. A dimensão necessária. Ilhéus:
Mondrongo, 2014. Todas as citações do livro referem-se a esta edição, portanto
virão seguidas apenas do número da página.
[2] MELO-NETO, João Cabral de.
Obra completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2003. Citações todas extraídas desta edição, de modo que serão
indicadas apenas pelas iniciais MN, seguidas do ano do livro em questão e o
número da página.
[3] Sobre a opção pelo verso
de oito sílabas, João Cabral afirma numa entrevista concedida a Nicolás Tapia
em 1993: “O verso de sete sílabas é a medida natural, é um verso muito fácil.
Eu passei a metrificar a partir de certa época no metro de oito sílabas, para
que não fosse fácil. Não é espontâneo e por isso me interessa. O verso de sete
sílabas sem acentuação interna regular; o verso de oito precisa duma cesura. Eu
pretendi fazê-lo sem cesura. (...). O que me interessa é fazer um verso de oito
sílabas, mas sem cesura regular, que não tenha uma acentuação interna regular.”
A entrevista pode ser lida e baixada aqui: http://www.omarrare.uerj.br/numero15/nicolastapia.html.
[4] O amigo Wladimir Saldanha
me alertou para o fato de que o octossílabo de Alberto da Cunha Melo pode ter
sido a referência mais imediata de João Filho. No entanto, também é possível
discernir, na dicção poética de Cunha Melo, um acento cabralino, por isso
acredito que a aproximação ainda faz sentido.
[5] BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a
aventura da modernidade. Tradução Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L.
Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 131.
[6] Wladimir Saldanha, no
posfácio do livro, assim afirma a respeito da série de poemas intitulada
“Pequenos tesouros portáteis”: “Toda essa luz, como parece evidente, é a
metáfora maior de uma transcendência”. SALDANHA, Wladimir. “Entre coisa e céu,
amoravelmente”. In: JOÃO-FILHO, 2014, p. 124.
O Light Invisible, we praise thee!
Too bright for
mortal vision.
O Greater Light, we praise thee for the less;
The eastern light our spires touch at morning,
The light that slants upon our western doors at
evening,
The twilight over stagnant pools at batflight.
Moon light and star light, owl and moth light,
Glow-worm glow light on a grassblade.
O Light Invisible, we worship thee!
ELIOT, T. S. Obra
completa, volume I: poesia. Edição bilíngue. Tradução Ivan Junqueira. São
Paulo: Arx, 2004, p. 327.
[8] ABRAMS, M. H. O espelho e a lâmpada: teoria romântica e
tradição crítica. Tradução Alzira Vieira Allegro. São Paulo: Editora Unesp,
2010.
[9] BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Edição bilíngue.
Tradução Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 444.
[10] AUERBACH, Erich. “As flores do mal e o sublime”. In: Ensaios de literatura ocidental.
Tradução Samuel Titan Jr. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2012, p. 330.
[11] BENJAMIN, Walter. “Parque
central”. In: Charles Baudelaire, um
lírico no auge do capitalismo — Obras escolhidas, vol. III. Tradução José
Carlos Martins e Hemerson Alves Batista. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 180.
[12] Idem. Origem do drama
trágico alemão. Tradução João Barreto. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2013, pp. 169-201.
[13] Idem. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo — Obras
escolhidas, vol. III. Tradução José Carlos Martins e Hemerson Alves
Batista. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 105.
[14] Idem, ibidem, p. 111.
[15] Cf. Idem. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In:
Magia e técnica, arte e política — Obras
escolhidas, vol. I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994, pp. 207-8.
[16] Cf. AUERBACH, op.
cit., p. 330.
[17] BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Tradução José Pedro
Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 143.
[18] Idem, ibidem: p. 144.
[19] “Portanto, é necessário,
quando falamos conforme a verdade, ou seja, ao dizermos o que sabemos, que o
verbo nasça da mesma ciência retida na memória, e seja totalmente idêntico à
ciência de onde procede. O pensamento informado pelo que sabemos é o verbo
pronunciado no coração. Verbo que não é palavra grega, nem latina, ou qualquer
idioma”. AGOSTINHO. A trindade.
Tradução Augustinho Belmonte. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1994, p. 505.
[20] BAUDELAIRE, op.
cit., p. 126.
[21] PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht. São
Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 69-74.
[22] Idem, ibidem, pp. 81-3.
[23] “Baudelaire fez da
analogia o centro de sua poética. Um centro em perpétua oscilação, sempre
sacudido pela ironia, pela consciência da morte e pela noção de pecado.
Sacudido pelo cristianismo”. Idem,
ibidem, pp. 77-8.
[24] Para Benjamin, a grande
eficácia da poesia baudelairiana baseia-se principalmente na oposição da
alegoria à correspondência. Após descrever como as informações olfativas em
Baudelaire realizam a ideia de correspondência, o pensador alemão afirma: “As flores do mal não seriam, porém, o
que são, fossem regidas apenas por esse êxito. O que as torna inconfundíveis é,
antes, o fato de terem extraído poemas à ineficácia do mesmo lenitivo, à
insuficiência do mesmo ardor, ao fracasso da mesma obra — poemas que nada ficam
devendo àqueles em que as correspondances
celebram suas festas”. BENJAMIN, 1989, p. 135.
[25] PAZ, op. cit., p. 80.