quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A poesia de João Filho à luz de João Cabral



A dimensão necessária[1], livro do poeta baiano João Filho, publicado em 2014, destaca-se no panorama atual da poesia brasileira sobretudo por duas características: a utilização metódica de formas fixas e um apelo ao transcendente que, embora assuma caráter religioso (cristão, mais especificamente), não se restringe a essa temática nem resvala no proselitismo. Além da mão de mestre que se percebe por detrás dos elementos técnico-formais, chama a atenção a qualidade imagética dos poemas, que é o que pretendo investigar, estabelecendo um contraponto com a obra de João Cabral de Melo Neto. A princípio, pode parecer descabido comparar um poeta quase iniciante (A dimensão necessária é seu segundo livro, precedido por Três sibilas, de 2008) a um poeta do quilate de Cabral, com certeza um dos maiores nomes de nossa literatura. Porém, não só a poesia de João Filho se sustenta diante da comparação (pois trata-se sem dúvidas de um poeta de estro), como ajuda a distinguir aspectos relevantes da obra do autor de A educação pela pedra. Sem mais delongas, comecemos.

Em “Salvador, 1996-2013”, segundo poema de A dimensão necessária, o eu lírico convida a contemplar a capital baiana desde o alto:

Ali do alto, que é abrupto,
a cidade é curva contínua,
sinuosidade negativa,
abre-se em praias e ravinas.

Disseram gorda em seu amplexo,
digo salitre, vento Atlântico:
salga e apodrece em paradoxo.
Aqui se canta um velho cântico: (p. 15)

A referência que salta aos olhos nesse poema é o João Cabral dos panoramas urbanos de livros como Paisagens com figuras (1955) e Quaderna (1959), a despeito do uso da primeira pessoa do singular (“digo salitre”) e da alusão musical (“Aqui se canta um velho cântico”), uma vez que a poesia cabralina caracteriza-se por sua impessoalidade e pela declarada aversão à música.  Em “Pregão turístico do Recife”[2], de Paisagens com figuras (João Cabral), temos:

Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado de um rio.

Com os sobrados podeis
aprender lição madura:
um certo equilíbrio leve,
na escrita, na arquitetura. (MN, 1955, p. 147)

A proximidade entre os dois poetas não se dá apenas na escolha do tema, pois, além da ênfase nos aspectos imagéticos (fanopeia) comum a ambos, por vezes é possível flagrar certa dicção cabralina em João Filho, pelo tom analítico de algumas passagens. De fato, a poesia de João Cabral parece ser o modelo formal dos seis primeiros poemas da seção “Luz alheia”, como atestam a opção pela quadra (uma constante na poesia do pernambucano), o uso das rimas toantes como eixo rítmico da composição e a escolha do verso octossílabo, o mais característico da obra cabralina a partir de determinado ponto[3] — embora o octossílabo de João Filho seja regular, com acento na quarta sílaba poética, o que contraria a lição do mestre[4]. Dos seis poemas mencionados, o único que escapa a esse esquema é o primeiro, “Nitidez submersa”, escrito em versos de sete sílabas (uma variação, no entanto, prevista na poesia cabralina).

Outra característica que aproxima o João baiano do pernambucano é a insistência na imagem da luz e seus derivados, como manhã, claridade etc. Nas duas últimas estrofes de “Salvador, 1996-2013”, lemos:

Tudo externado? Não o âmago,
por isso engana quem a vê
cidade-entrega, as cores gritam
em cada esquina o seu não ter.

A precisão só vem de cima —
luz em ladeiras, luz marinha,
a luz em flor, a que combina
a dor do nu, o mel da vinha.

Nesta passagem, o torneio dialético é tipicamente cabralino (“Tudo externado? Não o âmago”), em que associações imagéticas anteriores são desmentidas ou relativizadas por novas metáforas e símiles, como percebemos na seguinte passagem de “Estudos de uma bailadora andaluza”, de João Cabral:

Dir-se-ia, quando aparece
dançando por siguiriyas,
que com a imagem do fogo
inteira se identifica.

(...)

Porém a imagem do fogo
é num ponto desmentida:
que o fogo não é capaz
como ela é, nas siguiriyas,

de arrancar-se de si mesmo
numa primeira faísca,
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra a fibra, (grifo meu — MN, 1959, pp. 219-20)

No poema de João Filho, delineia-se semelhante contraponto de perspectivas, no qual a voz lírica desautoriza o senso comum (no poema de Cabral, expresso por um impessoal “dir-se-ia”; em “Salvador 1996, 2013”: “Disseram gorda [...]/ digo salitre [...]”). Mas eu falava da reiteração da imagem da luz em A dimensão necessária, como na seguinte estrofe:

A precisão só vem de cima —
luz em ladeiras, luz marinha,
a luz em flor, a que combina
a dor do nu, o mel da vinha.

Qualquer leitor familiarizado com a obra de João Cabral de Melo Neto reconhece a verdadeira obsessão do poeta pernambucano por imagens solares. Novamente, em “Pregão turístico do Recife”:

Do mar podeis extrair,
do mar deste litoral,
um fio de luz precisa,
matemática ou metal. (MN, 1955, p. 147)

Porém, talvez a imagem mais conhecida da luz na obra de João Cabral esteja em “Tecendo a manhã”, de A educação pela pedra, no qual se fala da “luz balão” da alvorada elevando-se como “toldo de um tecido tão aéreo” (Idem, 1965, p. 345) — no primeiro poema de “Pequenos tesouros portáteis”, série que tem a luz como tema, João Filho descreve de maneira parecida o dia que nasce: “Lençol diáfano/ sobre a cidade” (p. 95). A luz, na poesia cabralina, assume um sentido metafórico, fundado na relação entre luz e razão estabelecida desde a Antiguidade (em Platão, por exemplo), mas que, a partir do Iluminismo — no chamado “Século das Luzes” —, adquire sua feição moderna. É o que vemos em “Fábula de um arquiteto”, em que a função da arquitetura seria deixar o espaço aberto à circulação de “ar luz razão certa” (MN, 1965, p. 346). Por sua vez, em “O engenheiro” (do livro homônimo), encontramos:

A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre. (Idem, 1945, pp. 69-70)

Temos aqui a imagem da luz-razão que dissipa as sombras do desconhecido, dando ao homem acesso à realidade, para além de qualquer preconceito, ilusão e engano. É a luz que desvela, que suspende o véu da segunda natureza (da ideologia, em termos marxistas) que encobre a face verdadeira das coisas. Marshall Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar, demonstra como a metáfora do véu — que originalmente, no discurso religioso, remetia-se à natureza ilusória do mundo sensível, que ocultaria a essência imutável das coisas — foi apropriada, na Idade Moderna, para tratar de uma ruptura com a tradição e com as práticas sociais estabelecidas, deslocando para a realidade concreta e contemporânea o domínio da verdade: “Agora o falso universo é visto como o passado histórico, um mundo que perdemos (ou estamos a ponto de perder), enquanto o universo verdadeiro consiste no mundo físico e social que existe para nós, aqui e agora (ou que está a ponto de existir)[5]”. A poesia de João Cabral movimenta-se nesse domínio de referências, manifestando um caráter abertamente materialista, no qual a razão é a luz que disseca a realidade, despindo-a de qualquer ilusão metafísica. Em “O sol em Pernambuco”, lê-se: “dá-se que hoje dói na vista tanta luz:/ ela revela real o real, impõe filtros” (grifo meu — MN, 1965, p. 357). Em “Fábula de Anfion”:

O sol do deserto
não choca os velhos
ovos do mistério. (Idem, 1947, p. 88)

Diverso é o significado que João Filho atribui à luz em sua poesia. Em “Manhã meditada”, de nítida matriz formal cabralina, temos a crítica a uma visão materialista que, diante do milagre diário do amanhecer, nada mais enxerga que um simples “capricho” da natureza:

(...)
Não a molesta [a manhã] a desmemória
e a arte ingrata que se esmera
em dissecá-la: só matéria.

Cegos de vê-la, consideram
mais um capricho o sacerdócio
de dar contorno, peso e sopro
ao que era limbo em duplo espaço: (p. 19)

A luz, em A dimensão necessária, representa o indício de uma ordem superior que rege a realidade sensível[6]; ordem mencionada em “Nitidez submersa”, poema de abertura do livro. Nele, o eu lírico entrevê na fuligem da sola de seus sapatos “a clara sustentação/ dos fios frágeis do mundo” (p. 14). A fuligem remete ao “pó do mundo” (quarta estrofe, p. 13), sendo metonímia recorrente na poesia de João Filho para referir-se à natureza perecível das coisas materiais e à mortalidade humana, evocando a lição bíblica do Gênesis e do Eclesiastes: “Do pó vieste, ao pó retornarás”. Através de uma existência errante, em trânsito — em trânsito = transitória, que é a própria condição do homem como ser mortal — e figurada pela fuligem no sapato, é possível vislumbrar as “grafias do diáfano” (p. 14), isto é, os vestígios de um plano maior, escritos por um Criador. A “nitidez submersa” que o poema menciona são, portanto, os sinais de um princípio ordenador inteligível em meio ao aparente caos da existência. Trata-se da luz que fecunda o mundo de sentido, como lemos no quarto poema de “Pequenos paraísos portáteis”:

(...)
mas qualquer ponto
do mundo visto

ou pressentido
é a luminosa
emanação
da pura ordem. (p. 106)
 
A luz física, aquela que certos olhos enxergam como “só matéria”, é a manifestação sensível de outra luz, energia puramente espiritual. Estou me referindo à “Luz Invisível” (“Light Invisible”), que aparece na última seção de Choruses from “The Rock”, de T.S. Eliot[7], poeta do qual João Filho aproxima-se pelo teor metafísico e religioso de sua poesia. Essa Luz, como se pode deduzir, é aquela que encontramos no texto de outro João, o evangelista, nas palavras de Jesus: “Eu sou a luz do mundo; quem me segue, de modo nenhum andará nas trevas, pelo contrário terá a luz da vida” (Jo 9:5). Assim, em A dimensão necessária, a luz como metáfora retoma seu sentido religioso primeiro, afastando-se da concepção moderna expressa na poesia de João Cabral — a da poesia como dissecação da realidade empírica, como desvelamento — para expressar uma concepção da luz como fonte de alumbramento espiritual, de revelação (com toda a conotação teológica que tal termo carrega no cristianismo).

No entanto, mais do que simplesmente diferenciar a visão de mundo dos autores, limitando-se aos aspectos ideológicos de suas obras, essas duas concepções acerca da luz expressam diferentes maneiras de considerar a relação entre a poesia e o real. Em primeiro lugar, deve-se levar em conta que, tanto para Cabral quanto para João Filho, a poesia — ou a subjetividade do poeta — é lâmpada, e não espelho, para empregarmos as metáforas críticas que M. H. Abrams identifica na tradição de estudos literários até o Romantismo[8]. Segundo Abrams, predomina entre os românticos a ideia de que a obra literária não é apenas um reflexo do mundo tal qual nós o percebemos (poesia como espelho), mas que a imaginação poética é capaz de iluminar aspectos não evidentes da realidade, ultrapassando o âmbito das aparências e atingindo seu núcleo verdadeiro (poesia como lâmpada). No entanto, os dois poetas aqui confrontados divergem no que se refere ao modo de conceber essa realidade, o que tem implicações na construção das imagens nos poemas.

Como já disse, tanto a poesia do João pernambucano quanto a do João baiano possuem uma forte ênfase visual. Além disso, em ambos há uma procura de associações que surpreendam o leitor, um gosto pela trouvaille, afastando-os assim do domínio das figuras de linguagem chanceladas pela tradição. Em João Cabral, no entanto, os procedimentos associativos — como símiles, metonímias e metáforas — beiram muitas vezes o insólito, pois o poeta pernambucano constrói relações de contiguidade a partir de qualidades puramente circunstanciais em seus objetos. Um exemplo disso é o poema “Estudo para uma bailadora andaluza”, em que uma dançarina de flamenco é comparada ao fogo; a uma espécie de “centaura”, na qual se unem dança (montaria) e dançarina (amazona); ao ato de telegrafar; a uma árvore; a um livro de capa e contracapa idênticas, que se desdobra em duas estátuas; a uma espiga de milho. Fiquemos com a última comparação:

Na sua dança se assiste
como ao processo da espiga:
verde, envolvida de palha;
madura, quase despida.

Parece que sua dança
ao ser dançada, à medida
que avança, a vai despojando
da folhagem que a vestia.

Não só da vegetação
de que ela dança vestida
(saias folhudas e crespas
do que no Brasil é chita)

mas também dessa outra flora
a que seus braços dão vida,
densa floresta de gestos
a que dão vida a agonia. (MN, 1959, p. 224)

No autor de Morte e vida Severina, as associações imagéticas são da ordem do artifício que se assume como tal, ressaltando seu caráter arbitrário e construtivista. Relacionando seres irredutíveis entre si a qualquer vínculo de identidade, João Cabral, por uma espécie de dialética das imagens que resulta em choque, espera desvendar aspectos insuspeitados de seus objetos. Tal procedimento, que remonta ao Barroco e aos poetas metafísicos ingleses, encontra em Baudelaire seu principal sistematizador e difusor na poesia moderna; basta lembrar os versos de “Le couvercle” em que o céu é descrito como a tampa de uma enorme marmita que confina a humanidade (“Le Ciel! Courvecle noir de la grande marmite/ Oú bout l’imperceptibile et vaste Humanité”)[9]. Interessado no modo como, na poesia baudelairiana, são abolidos os limites entre o estilo elevado e o baixo — resultando num tratamento sério e sublime de temas que, até então, mereciam apenas abordagem burlesca —, Erich Auerbach afirma: “Nele [em Baudelaire], pela primeira vez encontramos completamente desenvolvidas estas combinações surpreendentes e aparentemente incoerentes (...). O poder visionário de tais combinações exerceu uma influência crucial na poesia posterior; parecem ser a mais autêntica expressão tanto da anarquia interior da época quanto de uma nova ordem encoberta que ainda começava a surgir”[10].

Walter Benjamin, em seus estudos sobre Baudelaire, deixou apontamentos inconclusos sobre o que seria uma “visão alegórica” na obra do autor de Les fleurs du mal[11]. Partindo do conceito de alegoria na literatura barroca, sobretudo na tragédia alemã do período, Benjamin nos mostra que, enquanto no símbolo (como o entendia a filosofia romântica), teríamos a manifestação de um princípio transcendente (a Ideia) numa aparição sensível, na alegoria — que se relaciona a uma noção da história como Queda, como exílio da pátria metafísica —, as imagens remetem a um significado superior que as ultrapassa e o qual elas comunicam apenas de maneira aproximada, arbitrária e imperfeita[12]. O que difere a alegoria barroca da alegoria moderna (aquela encontrada em Baudelaire, por exemplo) é o fato de que, enquanto para o homem barroco a possibilidade de uma imagem inteligível do mundo ainda fazia parte de seu horizonte de expectativa — mesmo que projetada na transcendência —, na modernidade, tal possibilidade se dissipa. Não se trata do descrédito das religiões como sistemas de ideias, ocasionado pela consolidação da ciência moderna, mas da crise da experiência em pleno desenvolvimento do capitalismo industrial, da qual o descrédito das religiões é uma manifestação.

Segundo Benjamin, experiência é o significado que atribuímos a um acontecimento, sendo que tal significado depende de um conjunto de referências que orientam a ação e o pensamento das pessoas. A esse conjunto — socialmente constituído e passado de geração em geração — damos o nome de tradição, que pode ser definida como o acúmulo de experiências no seio de uma comunidade ou cultura[13]. A experiência, portanto, é um saber social, ou seja: um saber socialmente construído e socializável, interpessoal por natureza. Já o acontecimento destituído de qualquer significação, incomunicável, constitui-se subjetivamente como vivência[14]. Assim, é possível dizer que é a experiência que empresta sentido humano às coisas e ao mundo. Ocorre que, na Idade Moderna, principalmente a partir do século XIX, a realidade social passa a sofrer súbitas e constantes transformações, de modo que o saber tradicional, que possibilita a experiência, perde gradativamente sua validade. Como consequência, o mundo perde também inteligibilidade e as pessoas se isolam subjetivamente. Numa escala individual, não se consegue mais integrar os acontecimentos numa totalidade semântica que, para Benjamin, é a vida. Dito com outras palavras, vida é o conjunto de experiências — ligadas a um indivíduo — que se articulam instituindo uma relação inteligível entre si[15].

Podemos dizer, enfim, que a alegoria é o modo como a vivência se expressa na literatura moderna; é a forma literária que assume um mundo destituído de significado humano. Uma vez que as coisas não possuem um sentido intrínseco e não se integram numa ordem definida, é possível comparar elementos absolutamente díspares, forjando relações insólitas. É esse o olhar alegórico de Baudelaire, que lhe renderia de Brunitière o epíteto de “génie de l’impropriété[16]. Não é por acaso que Peter Bürger busca no conceito de alegoria de Benjamin o princípio estético que rege a atitude do artista de vanguarda: “Onde o clássico, no material, reconhece e respeita o portador de um significado, o vanguardista vê tão-somente o signo vazio, ao qual ele se acha habilitado a tão-somente emprestar significado. Em conformidade com isso, o clássico trata seu material como totalidade, enquanto o vanguardista arranca o seu à totalidade da vida, isola-o, fragmenta-o”[17]. E a distinção prossegue: “O clássico produz sua obra com intenção de oferecer uma imagem viva da totalidade. (...). O vanguardista, ao contrário, junta fragmentos com a intenção de atribuição de sentido (onde o sentido pode muito bem ser a indicação de que não existe mais nenhum sentido). A obra não é mais criada como um todo orgânico, mas montada a partir de fragmentos (...)”[18].

Esse olhar alegórico preside também a criação do repertório imagético em João Cabral de Melo Neto, com suas sobreposições incongruentes de imagens, às quais a meticulosa coordenação dos aspectos formais e o tom analítico, que aponta semelhanças acidentais como se necessárias fossem, ocultam a natureza fragmentada do arranjo, dando-lhe uma rigorosa aparência de integridade. Mas, ainda assim, é impossível não perceber seu caráter de constructo, de coisa armada. No processo de desvelamento da realidade na poesia cabralina, que deseja apreender o real despido de qualquer significado que o transcenda, em seu bruto estado imanente, há um esforço de criar uma forma comunicável aos acontecimentos percebidos como vivência, de encontrar uma interlocução possível dentro do estilhaçamento da experiência no mundo contemporâneo, pois disso depende qualquer tipo de coesão social. Daí sua conjugação de construtivismo estético e engajamento político. Isso a partir de uma compreensão da imagem poética que, em seu excesso de racionalismo crítico, remonta à arbitrariedade da alegoria barroca, agora posta a descoberto. Em João Filho, ao contrário, o que parece haver é um desejo de restituir a experiência ao mundo, apelando, numa ordem social a esta irredutível, a uma ordem axiologicamente superior, que é o metafísico.

Não são poucas as imagens em A dimensão necessária que surpreendem pelo inesperado de suas associações. Um dos exemplos mais bem acabados está no poema “Pequeno oratório”, do qual destaco as duas primeiras estrofes:

Meu coração, pobre capela,
tão devedor do gesto alheio.
A débil luz de sua vela
deixa confuso este romeiro.

Não quer rezar, contudo reza,
no seu altar de tosca pedra
— a comunhão é o que pesa —
Deus não é busca nem espera. (p. 56)

Talvez retomando a visão de Agostinho de Hipona do coração humano como local onde as repercussões do Verbo divino comunicam-se aos indivíduos[19], a imagem da vela aqui, ainda que sua chama seja débil, vai ao encontro da representação da subjetividade do poeta como centro irradiador de luz para o mundo; a metáfora da lâmpada, da qual M. H. Abrams falava. Apresenta-se uma analogia entre o coração do eu lírico e uma “pobre capela”, que se estende pelas demais cinco estrofes do poema. A comparação baseia-se na ideia de que, tanto na mais singela capela — como simboliza a lâmpada do Santíssimo — quanto no coração do mais reles mortal, Deus seria uma presença perene (afinal, “Deus não é busca nem espera”). Esse paralelismo inicial desdobra-se em metáforas secundárias, como na imagem do coração “casulo d’alma” e “jardim sem calendário” (idem). Tais imagens afastam-se das de João Cabral pois procuram surpreender afinidades profundas, subterrâneas, entre as coisas. Dessa maneira, João Filho aproxima-se de Baudelaire por outro flanco: o das correspondências.

De acordo com o soneto “Correspondances”, de Baudelaire — escrito sob a influência da tradição de estudos da obra do místico Emanuel Swedenborg —, através da Natureza é possível pressentir uma dimensão em que as coisas coexistem em absoluta unidade, de tal modo que as sensações que delas se originam tornam-se intercambiáveis (“Les parfurms, les couleurs et les sons se répondent”)[20]. Já em João Filho, as grafias do diáfano encontram-se inscritas na fuligem do mundo, apontando outro nível de compreensão dos fenômenos sensíveis. Trata-se, portanto, de utilizar as imagens como portadoras de um sentido que as perpassa e que, devido aos limites da linguagem, só pode ser parcialmente comunicado por meio de outras imagens igualmente impregnadas de sentido. Se aqui não escapamos ao domínio do alegórico, esta é uma alegoria que se pretende mais próxima de sua concepção original na teologia, onde Benjamin a foi colher inicialmente, e incorporada a uma postura estética mais “clássica”, conforme Bürger a define em oposição à vanguardista. Em suma, todas as coisas se equivalem como imagens poéticas na medida em que apontam um mesmo significado fundamental e se entrelaçam numa dimensão necessária da existência — poesia Comunhão.

Na dicotomia representada pela obra dos dois “joões”, o Neto e o Filho, é possível distinguir as posições que, segundo Octavio Paz, caracterizam a poesia moderna desde o Romantismo: a analogia e a ironia. A analogia é a operação poética por meio da qual as diferenças entre os seres são redimidas numa identidade ilusória, expressando um anseio de integração de todos os âmbitos da existência, como, por exemplo, a vida e a arte; é a crença numa harmonia universal que rege o concerto das coisas existentes[21]. A ironia, por sua vez, baseia-se na consciência a respeito da irredutibilidade de cada ser e da descontinuidade da existência, que a tudo sentencia ao desaparecimento, à extinção. Trata-se de uma concepção niilista, filosoficamente falando: ou o universo, em sua diversidade, não possui um sentido que o unifique, ou então esse sentido não é apreensível[22]. Ainda segundo Paz, essas duas posturas coexistem problematicamente na obra de Baudelaire[23], como observamos na ambivalência entre spleen e ideal[24]. Arrisco dizer que a alegoria, como a vimos em Benjamin, talvez seja a faceta degradada e irônica da correspondência, forçando a analogia até seus limites, até que se rompa a ilusão de identidade. Relacionando o pensamento do teórico alemão ao do mexicano, parece lícito afirmar que tanto a analogia quanto a ironia são uma resposta ao declínio da experiência, só que, enquanto a última é a expressão da consciência e da aceitação desse declínio, a primeira representa uma nostalgia da experiência e um desejo de restaurá-la. Segundo Octavio Paz: “A poética da analogia só podia nascer numa sociedade fundada — e roída — pela crítica. Ao mundo moderno do tempo linear e suas infinitas subdivisões, ao tempo da mudança e da história, a analogia contrapõe não a impossível unidade, mas a mediação de uma metáfora. A analogia é o recurso da poesia para fazer frente à alteridade”[25].

A obra de João Filho é uma representante de poética analógica, ao passo que em João Cabral encontramos a alegoria benjaminiana, que é a analogia roída por dentro pela ironia. Nisso está fundada mais uma relevante diferença entre os dois: é notória a ojeriza que o poeta pernambucano manifestava em relação à música, tanto que, em seu poema “A palo seco”, celebra-se uma modalidade do flamenco cantada a capella justamente por se tratar de um “cante que não canta” (MN, 1959, p. 250). Por sua vez, a poesia de João Filho está cheia de “imagens musicais”, desde “Uma mulher toda música” (título de um soneto lírico-amoroso de “Luz alheia” — p. 26), ao “velho cântico” (p. 15) que ecoa sobre Salvador e que representa a atmosfera religiosa emanada de suas igrejas coloniais. Em “Capela do Hospital Santo Antônio”, o amor (caritas) irradia da referida capela como um “acorde se estendendo”, levando o eu lírico a se questionar: “quem O desfere?” (p. 17). Entretanto, um dos exemplos mais significativos dessa tendência encontra-se nos primeiros versos da sexta parte de “A fonte vertical”:

A Voz — música sem pauta — atravessa
poro e espírito, vem das planícies mais altas,

diz tudo sem uma palavra: aí começa a
significar-me inteiro da única falta.

É quando o fluxo fala e o coração ressoa
ao menor ruflo dessa Luz ou Voz. (p. 41)

A Voz, que é música, confunde-se com a Luz, cujo significado já vimos. Voz que, mesmo sem proferir uma única palavra, empresta significado à existência do eu lírico. Disso depreendemos que, se existe uma ordem regida harmoniosamente por um Criador, ela pode muito bem ser representada como música. Aliás, insistindo nas formulações de Octavio Paz, se a analogia é entendida como uma busca por ressonâncias universais, a realidade traduz-se como ritmo: “A analogia concebe o mundo como ritmo: tudo se corresponde porque tudo ritma e rima” (p. 71). Se o ritmo universal e a inteligibilidade do mundo levaram Paz a descrever a realidade sob as leis da analogia como um poema, no caso de João Filho, no qual deparamos com uma voz que não profere palavra — canto pleno, em oposição ao cante sem canto cabralino —, creio não ser uma impropriedade dizer que, em A dimensão necessária, a noção de uma regularidade da existência assume a imagem da música: não exatamente a música das esferas, mas o Verbo divino (criador do universo) que ecoa no coração dos homens num idioma que não é grego, nem latim — é puro canto.

A afinidade da poética de João Filho com a música tem raízes profundas em sua forma de enxergar o mundo e conceber a poesia, pois a ideia da metáfora como ressonância integra uma visão da ordem universal associada à musicalidade. Por outro lado, em João Cabral, cuja poesia procura defrontar a imanência e a descontinuidade do real empírico, a música, com sua regularidade encantatória, não pode ser encarada senão com desconfiança. Talvez por isso a opção de Cabral pelo metro irregular, sem cesuras, ao mesmo tempo que persiste nele a necessidade de dotar os versos de uma regularidade artificial, matemática, para que o poema não irrompa na algaravia, no puro alarido, no balbucio.

De um lado, a imagem é choque, é tensão entre o despropósito da metáfora — que enche o texto com suas arestas — e consciência geométrica (João Cabral); do outro, a imagem é ressonância, é busca de uma unidade perdida e nostalgia da Comunhão, a partir de uma lógica compositiva que valoriza a carpintaria das formas tradicionais (João Filho). Dois autores em certa medida semelhantes, mas radicalmente distintos; este ensaio, em seu método comparativo, foi também a tentativa de realizar uma metáfora.

Referências bibliográficas

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BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Edição bilíngue. Tradução Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política — Obras escolhidas, vol. I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

________ . Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo — Obras escolhidas, vol. III. Tradução José Carlos Martins e Hemerson Alves Batista. São Paulo: Brasiliense, 1989.

________ . Origem do drama trágico alemão. Tradução João Barreto. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Tradução José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

ELIOT, T. S. Obra completa, volume I: poesia. Edição bilíngue. Tradução Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004.

JOÃO-FILHO. A dimensão necessária. Ilhéus: Mondrongo, 2014.

MELO-NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2013.









[1] JOÃO-FILHO. A dimensão necessária. Ilhéus: Mondrongo, 2014. Todas as citações do livro referem-se a esta edição, portanto virão seguidas apenas do número da página.
[2] MELO-NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. Citações todas extraídas desta edição, de modo que serão indicadas apenas pelas iniciais MN, seguidas do ano do livro em questão e o número da página.
[3] Sobre a opção pelo verso de oito sílabas, João Cabral afirma numa entrevista concedida a Nicolás Tapia em 1993: “O verso de sete sílabas é a medida natural, é um verso muito fácil. Eu passei a metrificar a partir de certa época no metro de oito sílabas, para que não fosse fácil. Não é espontâneo e por isso me interessa. O verso de sete sílabas sem acentuação interna regular; o verso de oito precisa duma cesura. Eu pretendi fazê-lo sem cesura. (...). O que me interessa é fazer um verso de oito sílabas, mas sem cesura regular, que não tenha uma acentuação interna regular.” A entrevista pode ser lida e baixada aqui: http://www.omarrare.uerj.br/numero15/nicolastapia.html.
[4] O amigo Wladimir Saldanha me alertou para o fato de que o octossílabo de Alberto da Cunha Melo pode ter sido a referência mais imediata de João Filho. No entanto, também é possível discernir, na dicção poética de Cunha Melo, um acento cabralino, por isso acredito que a aproximação ainda faz sentido.
[5] BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 131.
[6] Wladimir Saldanha, no posfácio do livro, assim afirma a respeito da série de poemas intitulada “Pequenos tesouros portáteis”: “Toda essa luz, como parece evidente, é a metáfora maior de uma transcendência”. SALDANHA, Wladimir. “Entre coisa e céu, amoravelmente”. In: JOÃO-FILHO, 2014, p. 124.
O Light Invisible, we praise thee!
Too bright for mortal vision.
O Greater Light, we praise thee for the less;
The eastern light our spires touch at morning,
The light that slants upon our western doors at evening,
The twilight over stagnant pools at batflight.
Moon light and star light, owl and moth light,
Glow-worm glow light on a grassblade.
O Light Invisible, we worship thee!

ELIOT, T. S. Obra completa, volume I: poesia. Edição bilíngue. Tradução Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004, p. 327.
[8] ABRAMS, M. H. O espelho e a lâmpada: teoria romântica e tradição crítica. Tradução Alzira Vieira Allegro. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
[9] BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Edição bilíngue. Tradução Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 444.
[10] AUERBACH, Erich. “As flores do mal e o sublime”. In: Ensaios de literatura ocidental. Tradução Samuel Titan Jr. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2012, p. 330.
[11] BENJAMIN, Walter. “Parque central”. In: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo — Obras escolhidas, vol. III. Tradução José Carlos Martins e Hemerson Alves Batista. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 180.
[12] Idem. Origem do drama trágico alemão. Tradução João Barreto. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, pp. 169-201.
[13] Idem. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo — Obras escolhidas, vol. III. Tradução José Carlos Martins e Hemerson Alves Batista. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 105.
[14] Idem, ibidem, p. 111.
[15] Cf. Idem. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política — Obras escolhidas, vol. I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 207-8.
[16] Cf. AUERBACH, op. cit., p. 330.
[17] BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Tradução José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 143.
[18] Idem, ibidem: p. 144.
[19] “Portanto, é necessário, quando falamos conforme a verdade, ou seja, ao dizermos o que sabemos, que o verbo nasça da mesma ciência retida na memória, e seja totalmente idêntico à ciência de onde procede. O pensamento informado pelo que sabemos é o verbo pronunciado no coração. Verbo que não é palavra grega, nem latina, ou qualquer idioma”. AGOSTINHO. A trindade. Tradução Augustinho Belmonte. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1994, p. 505.
[20] BAUDELAIRE, op. cit., p. 126.
[21] PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 69-74.
[22] Idem, ibidem, pp. 81-3.
[23] “Baudelaire fez da analogia o centro de sua poética. Um centro em perpétua oscilação, sempre sacudido pela ironia, pela consciência da morte e pela noção de pecado. Sacudido pelo cristianismo”. Idem, ibidem, pp. 77-8.
[24] Para Benjamin, a grande eficácia da poesia baudelairiana baseia-se principalmente na oposição da alegoria à correspondência. Após descrever como as informações olfativas em Baudelaire realizam a ideia de correspondência, o pensador alemão afirma: “As flores do mal não seriam, porém, o que são, fossem regidas apenas por esse êxito. O que as torna inconfundíveis é, antes, o fato de terem extraído poemas à ineficácia do mesmo lenitivo, à insuficiência do mesmo ardor, ao fracasso da mesma obra — poemas que nada ficam devendo àqueles em que as correspondances celebram suas festas”. BENJAMIN, 1989, p. 135.
[25] PAZ, op. cit., p. 80.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

O eremita niilista: uma leitura de "Lira de lixo", de Adriano Scandolara

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Uma versão ampliada deste ensaio foi publicada na revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea e pode ser baixado gratuitamente aqui.

Em Lira de lixo (2013), de Adriano Scandolara, somos submetidos a um corpo a corpo com a cidade de Curitiba. A realidade urbana é apresentada com todas as arestas e despejada sobre nós por um arranjo formal que reproduz a gama de estímulos sensoriais que saturam e golpeiam a sensibilidade numa metrópole. Vejamos, a esse respeito, “Canção do eremita”:

Quatro dias sem sair de casa
e o que perdi?
Carros, crânios
moídos nas madrugadas,
balões esvoaçantes
e meia dúzia de buquês
jogados no lixo

cão que foge, brinquedo que a rua
destrói
como um relógio, sem
que as horas cessem
suas transformações.
O cortejo
da vida como quem sai pra jantar
com uma pessoa estonteante
e burra.

O eu lírico, em casa há quatro dias, pergunta o que teria perdido durante esse tempo. Lá fora, segue o frenético “cortejo da vida”, colocando em desfile fragmentos do cotidiano urbano, apresentados por meio de uma enumeração de natureza paratática, isto é, da justaposição de sintagmas. Tal processo cumulativo de coordenação das imagens poéticas é um dos princípios compositivos mais evidentes em Lira de lixo e nos remete à montagem. Essa montagem, no entanto, não parece responder apenas a uma intenção de ligar os elementos representados, formando uma cadeia de imagens coerentes. Na verdade, o que temos são imagens que colidem entre si, configurando um todo disparatado, que parece encontrar seu princípio de organização na ideia de choque[1]. Vejamos: os “crânios moídos na madrugada” opõem-se aos “balões esvoaçantes”, que, embora relacionados visualmente por sua forma esférica, evocam repertórios semânticos conflitivos — de um lado, o universo da brutalidade e das catástrofes; do outro, o universo inocente das brincadeiras infantis. É o mesmo espírito por trás do brinquedo destruído pela rua e, num certo sentido, também pelos buquês jogados no lixo, em que a sublimidade do sentimento amoroso é rebaixada ao plano do sujo e do degradado. Além da relação antitética que as imagens estabelecem umas com as outras, há ainda uma violência inerente a elas, que estende o choque do âmbito de princípio organizador da coordenação imagética para um efeito deliberadamente perseguido: deseja-se impactar a sensibilidade do leitor, imprimindo-lhe na imaginação o feio, o sujo e o brutal. Parafraseio a sentença de Walter Benjamin a respeito da poesia de Charles Baudelaire (BENJAMIN, 1989, pp. 110-1): Adriano Scandolara inseriu o efeito de choque no âmago de sua produção lírica, o que significa fundamentá-la numa vivência para a qual o choque tornou-se norma. Como exemplo, tomemos o primeiro poema de Lira de lixo, “Da misericórdia”, em que se passa bruscamente de uma consideração geral sobre as condições da existência humana e de uma visada panorâmica...

Tudo é estopim,
gota de veneno que estraga vários litros d’água
e a surdez do concreto —
um grito
rasga as cordas
vocais.

Mas o céu é um grande ouvido,
cerúleo muro das lamentações,

            ... para o pormenor desconcertante de uma cena doméstica:

já na sala
o cachorro, lenta e
empenhadamente,
coça o cu no tapete.

O paralelo com Baudelaire é produtivo. Segundo Benjamin, o autor de Les fleurs du mal fez mais do que introduzir os elementos da vida urbana como tema em sua poesia; ele teria encontrado, no efeito de choque, a adequação formal para o tipo de vivência que um indivíduo experimenta cotidianamente numa metrópole, como a Paris do Segundo Império. Com uma série de mediações, é possível afirmar algo semelhante quanto à obra de Scandolara em sua relação com a Curitiba do século XXI. Percebe-se que a vida na grande cidade é a principal matéria da poesia de Lira de lixo. Na seção “Muros”, temos a incorporação do material bruto que as ruas oferecem na forma de pichações, aproveitadas pelo poeta como motes, dos quais os oito poemas seriam glosas. No sexto deles, a inscrição “Elaine Puta” — encontrada repetidas vezes no trajeto entre os bairros Batel, Bigorrilho, Mercês e Barigui — atravessa todo o poema, rompendo suas linearidade e imanência ao torná-lo poroso à empiria, ao modo de uma colagem de signos. É como se o deslocamento do corpo na cidade estivesse impresso no poema, ou melhor: como se este correspondesse às pegadas deixadas pelo poeta em seu percurso.

Como ocorre em Baudelaire, a relação estabelecida pelo poeta com a cidade deixa-se perceber num nível profundo, sedimentada nos estratos formais da obra. Benjamin, em seu famoso ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, associa o efeito de choque no cinema à situação de um morador dos grandes centros urbanos: “Diante do filme”, afirma Benjamin, “o espectador percebe uma imagem, ela não é mais a mesma. [...]. A associação de ideias do espectador é interrompida imediatamente, com a mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma atenção aguda. O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo. Ele corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o passante, numa escala individual, quando enfrenta o tráfico, e como as experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem social vigente” (BENJAMIN, 1994, p. 192 — grifo do autor). O efeito de choque, além de expressar a experiência social do indivíduo na modernidade, ainda o dispõe à possibilidade revolucionária, à medida que acostuma seu aparelho perceptivo a súbitas e constantes transformações, possuindo, portanto, uma dimensão pedagógica que é puramente formal (que não se manifesta por conceitos) e atua sobre os sentidos.

Mas a posição de Benjamin em relação ao efeito de choque carrega uma ambivalência. Em “Sobre alguns temas em Baudelaire”, vemos que o choque é menos um elemento constitutivo da experiência do homem moderno que um indício da crise da experiência como Benjamin a entende: “Quanto maior é a participação do fator de choque em cada uma das impressões, tanto mais constante deve ser a presença do consciente no interesse em proteger contra os estímulos; quanto maior for o êxito com que ele operar, tanto menos essas impressões serão incorporadas à experiência, e tanto mais corresponderão ao conceito de vivência” (BENJAMIN, 1989, p. 111). Para Benjamin, a experiência constitui-se quando o sujeito é capaz de atribuir significado a um determinado acontecimento, integrando-o a uma totalidade semântica, que é a vida. Tal significado depende de um conjunto socialmente construído de valores e ideias, que, transmitido pela tradição, orienta as ações e o pensamento das pessoas. A experiência, portanto, é o acontecimento tornado inteligível, dotado de um sentido possível de ser transmitido (acima de tudo, trata-se de um saber social e socializável)[2]; o contrário disso, o acontecimento destituído de sentido, intransitivo, é a vivência. Numa realidade social submetida a constantes transformações pelo desenvolvimento técnico capitalista, torna-se cada vez mais difícil estabelecer referências sólidas à ação, de maneira que o saber tradicional perde rapidamente sua validade, antes mesmo que novos valores tenham oportunidade de se sedimentar[3]. Como resultado, o indivíduo é obrigado a assimilar abruptamente os acontecimentos sem quaisquer mediações, quer dizer, sem contar com um esquema prévio no qual acomodá-los — daí o choque. É nesse sentido que o efeito de choque não é tanto a expressão estética da experiência de uma realidade em constante mudança — apontando no horizonte histórico para a revolução —, quanto a degradação da própria experiência.

Em Lira de lixo, sente-se de maneira aguda o esfacelamento da vida como conjunto unificado de experiências. O que temos no livro de Scandolara é um vertiginoso caleidoscópio de acontecimentos que não encontram uma síntese que lhes dê um sentido definido; trata-se de um monturo de vivências no qual a ideia de experiência aparece ironicamente refletida, conforme se verá. Voltando a “Canção do eremita”, é justamente o que se percebe: o cortejo da vida caracteriza-se por um contínuo fluxo de acontecimentos desconexos, marcado por uma percepção meramente quantitativa do tempo, da qual estão excluídas quaisquer possibilidades de conclusão ou desenvolvimento (dela estão ausentes a noção de completude e de continuidade). Tudo muda (“sem que as horas cessem suas transformações”), entretanto continua o mesmo — a mesmice da rotina é constituída por um turbilhão de eventos que nada transmitem ao indivíduo. Muitas coisas aconteceram enquanto o eu lírico ficou em casa, mas nada de verdadeiramente significativo, de modo que não perde muita coisa ao se manter recluso. A imagem da vida como uma mulher estonteante, mas burra, expressa um conjunto de acontecimentos que impressionam e seduzem os sentidos, porém vazio de significado, incapaz de dizer algo que desperte o interesse do eremita entediado, como se vê também no poema “Um reclame”:

O olhar da janela
                     — estática
cinza-concreto.

De súbito
         acidente
explosão incêndio chacina suicídio

Sangue no chuvisco
o aguardo no intervalo
breve no
espetáculo do tédio.

As vivências numa grande cidade, convertidas em miríade de estímulos — em puro sensacionalismo, diríamos —, não encerram qualquer lição, não ensejam nenhum interesse. A sensibilidade embota-se diante do espetáculo sangrento das ruas, como diante de um desses programas televisivos que exploram a miséria humana em suas inúmeras facetas. Nem o choque é capaz de arrancar o eu lírico de sua letargia. Essa mesma falta de sentido que parece caracterizar a vida estende-se à história; em “A arte de governar”:

O que segura o mundo,
represa o mar de escombros
da queda de edifícios
pilastras governos
revolta e violência popular
deserto de pó e ossos
sob um céu tombado
barbárie e penúria,

(de resto,
burocracia)

é barbante e fita-crepe.

A ordem social — que é como chamamos o tênue equilíbrio entre dissensos inconciliáveis — sustenta-se sobre fundamentos frágeis (“barbante e fita-crepe”). A tensão, o atrito, é a verdadeira argamassa do convívio humano; resistimos, portanto, num equilíbrio entre forças destrutivas prestes a se romper a qualquer momento. De aparentemente sólido, apenas o universo autônomo da burocracia, imerso num formalismo mecânico que o aparta do fluxo caótico da existência. Em “Onã e a revolução”, lemos que “o mundo em fúria ainda se move, como um tanque, um trator”, esmagando os indivíduos em seu caminho. Considerada como a combinatória de ações que nada mais expressam do que a violência e a estupidez humanas, a história, em sua completa falta de sentido, não tem o que ensinar. Segundo “Thousand yard stare”, nem mesmo diante das guerras mais encarniçadas, como as que varreram o mapa europeu na primeira metade do século XX, conseguimos extrair uma lição, por mais óbvia que seja: “Dor que passa e nada ensina, além de qualquer morteiro ou redenção”. Afinal, estamos falando de circunstâncias traumáticas, e o trauma é o choque suspenso no tempo, repetindo-se indefinidamente, neuroticamente. Não é mera coincidência que Benjamin descreva da seguinte maneira o retorno dos combatentes da Primeira Guerra Mundial: “Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca”, isto porque “nunca houve experiências mais desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes”, e arremata: “Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano” (BENJAMIN, 1984, pp. 114-5).

Tanto a vida quanto a história são duas dimensões (uma individual e a outra coletiva) de uma mesma realidade fragmentada, incoerente e absurda. Assim, não há experiência possível neste mundo, nem aprendizagem, a não ser a cínica aceitação da natureza trágica da existência. É o que vemos em “Poema de mote judaico”, em que multidões embasbacadas assistem a Jó “de joelhos, rindo da própria desgraça”. Aqui, retoma-se a figura central de um dos principais livros sapienciais da Bíblia — que tinham por objetivo transmitir conhecimentos embasados na experiência, constituindo aquilo o que se costuma chamar de sabedoria[4] — para escarnecer da gratuidade do sofrimento. Como foi dito rapidamente numa passagem anterior, quando a experiência comparece no universo temático de Lira de lixo, ela é apresentada de forma irônica, paródica, acusando sua própria inviabilidade no mundo contemporâneo. A verdadeira sabedoria está, portanto, em aprender a aceitar resignadamente a irracionalidade do destino (um acaso irredutível, na verdade), que nos atira como náufragos contra os arrecifes do fracasso. Diz o “Poema pedagógico”: “Depois de um tempo você aprende a se foder”, e mais:

A sabedoria tem osteoporose
                                             e por isso dói tanto,

quanta experiência não têm as pedras,
que coisas
         sussurram
ao traseiro que senta nelas?

enquanto um rio inferior corrói a garganta de uma gruta
um arame farpado cerca frutos maduros,
e o que resta a dizer
brilho falho de lâmpada que apaga
                                             melhor diria
num gravador
a voz dum papagaio.

É dolorosa a trágica consciência de que as coisas não encerram nenhum sentido. Tais quais as pedras, vivemos uma existência cega, impermeável ao saber e incomunicável. Tudo o que se pode dizer sobre o real é o eco de um eco, um conhecimento absolutamente imperfeito e de terceiro grau: a voz de um papagaio — que nada mais faz do que imitar o que outros dizem —, repetida por um gravador, que reproduz mecanicamente o que nele é registrado. Vivemos na caverna do mito platônico, mas a caverna, neste caso, abarca o universo inteiro. Somos cegos guiados por outros cegos, numa ciranda interminável que mais parece um labirinto.

Em “Canção da experiência”, o modelo de sabedoria que nos é apresentado é uma velha prostituta “de quem a idade tirou os dentes mas aumentou o preço do boquete”, ou seja: uma desgastada profissional do sexo que compensa a perda de vigor físico e das graças naturais dominando habilmente o métier. Mas, sobretudo, o que ela aprendeu foi entregar-se ao gozo do sexo nos braços de seus clientes, por isso ela “ri discretamente dos orgasmos que as carnes mais frescas fingem”, pois, uma vez enraizado o velho hábito, “real de fato se fez o que se sente”. É uma lição análoga a de Jó, embora de certo modo diversa: enquanto o malfadado patriarca bíblico aprende a rir cinicamente da própria desgraça, a velha prostituta, diante da inevitabilidade do coito, aprende a desfrutar do prazer que este possa proporcionar-lhe; em certo sentido, ambas as personagens aprenderam a tirar proveito de sua degradação, seja ela física, seja moral. Trata-se de uma aceitação trágica do destino e, por isso mesmo, heroica, mas de um heroísmo sarcástico e quase diabólico.

Aliás, em “A educação do eremita”, encontraremos a misantropia como uma perversão do heroísmo: “Misantropia é o caminho mais fácil mas deve ser seguido até o fim”. Enquanto, no repertório religioso, eremita é aquele que se afasta do convívio humano para alcançar iluminação por meio de uma vida ascética (isto é, afasta-se deste mundo para adquirir maior familiaridade com as coisas do além), na poesia de Scandolara, ele é um indivíduo cujo tédio e a melancolia o apartam do fluxo da existência, possibilitando-lhe um olhar distanciado, de fora. O eremita pode então reconhecer a falta de sentido da vida e, consequentemente, a miséria da condição humana, mas isto não lhe desperta qualquer empatia ou solidariedade — apenas desprezo e cinismo, quando não ódio declarado. O eremita é um asceta do niilismo.

Voltemos a “Poema pedagógico”, em que a verdade comunica-se de forma tão precária quanto os sons de um papagaio reproduzidos por um gravador. Para insistir no repertório conceitual de Benjamin, podemos dizer que essa visão das coisas insere a poesia de Scandolara no domínio do alegórico. Enquanto no símbolo, como o concebia a filosofia romântica, teríamos a manifestação da ideia (como significado transcendente) numa aparição sensível, na alegoria, as imagens remetem a uma ideia que lhe é exterior e da qual não passam de cópias, de tentativas imperfeitas de expressá-la por aproximação. Dessa maneira, a alegoria é a forma preferencial com a qual se reveste o pensamento na impossibilidade de remontar a uma ordem superior de significação; em suma: a alegoria surge a partir das próprias condições de existência do ser humano, como ser inserido no âmbito da história e excluído da transcendência. Existindo dentro da história, a imagem alegórica é sempre transitória e inacabada, permeável à oscilação das circunstâncias concretas do existir. O sentido íntimo das coisas, pois, comparece na alegoria como reflexo, um eco longínquo (como aponta “Poema pedagógico”), ou como ruína, fragmento, na formulação de Benjamin[5].

O universo temático de Adriano Scandolara é de natureza francamente alegórica, já que nos apresenta o mundo como uma imagem esfacelada de si mesmo. Mas alegórica também é a forma de sua poesia. Peter Bürger, em Teoria da vanguarda, retoma a categoria benjaminiana de alegoria para descrever a obra de arte vanguardista por oposição à concepção tradicional da obra de arte orgânica ou clássica. Segundo Bürger, o alegorista, ao subtrair as coisas de seu contexto semântico (no qual elas possuem um sentido definido) e encará-las como fragmentos autônomos, ele as esvazia de significado e reduz à condição de material que se pode manipular livremente, sem a preocupação de remetê-las a uma significação original: “Onde o clássico, no material, reconhece e respeita o portador de um significado, o vanguardista vê tão-somente o signo vazio, ao qual ele se acha habilitado a tão-somente emprestar significado. Em conformidade com isso, o clássico trata seu material como totalidade, enquanto o vanguardista arranca o seu à totalidade da vida, isola-o, fragmenta-o” (BÜRGER, 2008, p. 143). E a distinção continua: “O clássico produz sua obra com intenção de oferecer uma imagem viva da totalidade. [...]. O vanguardista, ao contrário, junta fragmentos com a intenção de atribuição de sentido (onde o sentido pode muito bem ser a indicação de que não existe mais nenhum sentido). A obra não é mais criada como um todo orgânico, mas montada a partir de fragmentos [...]” (Idem, ibidem, p. 144). Em Lira de lixo, o que vemos é um princípio compositivo semelhante, em que, por meio da montagem e do choque, produz-se um arranjo imagético caleidoscópico.

É por meio dessa visada alegórica que melhor podemos considerar o diálogo corrosivo que Scandolara estabelece com a tradição, como na apropriação sardônica da figura de Jó em “Poema de mote judaico”, ou ainda do monstro bíblico Leviatã, que, em “Pré-carnaval (2012)”, “dorme [...] com uma tremenda dor de barriga”. Arrancadas de seu contexto original, que lhes dotava de um sentido definido, tais referências da cultura letrada são convertidas à condição de matéria bruta, à qual é possível atribuir o sentido (ou a falta de) que se queira. Elas, então, são atualizadas e colocadas em contato com o cotidiano urbano, chafurdando nele e deixando-se contaminar. Em “Eurídice”, por exemplo, o Hades dos antigos gregos converte-se numa espécie de aterro sanitário:

Até o tempo se perde
nesses negros córregos, vias
pálidas entre os prados
amontoados de lixo.

Poderíamos ainda citar Orfeu, no poema homônimo, travestido de protagonista da novela das oito (interpretado por um canastrão) e cujas mênades são suas pretendentes na trama. Mênades, aliás, que num poema também homônimo, aparecem como parceiras sexuais de um Orfeu para lá de mundano. Tal rebaixamento dessas figuras mitológicas ao plano ordinário da atualidade representa um deslocamento irônico por meio do qual elas, na condição de alegorias, passam a transmitir um conteúdo diverso daquele que originalmente era o seu — no caso, tornam-se o veículo de uma vivência moderna que corrói os valores por elas representados. Scandolara evoca a tradição para denunciar sua caducidade, pois, se como afirma Benjamin, “a experiência é a matéria da tradição” (BENJAMIN, 1989, p. 105), num mundo onde a experiência não é mais possível, ela se apresenta invertida, em negativo.

Outro não é o espírito com que o autor retoma o esquema da lírica tradicional na seção “Muros”. Como se sabe, motes e glosas integram a estrutura de determinadas formas fixas da poesia, tanto em sua variante erudita quanto na popular. Entretanto, tal forma compositiva comparece nos poemas de Scandolara completamente deturpada, esgarçada pelos versos livres e pela parataxe — implodida por dentro. Se, num primeiro momento, o apelo à tradição sugere o afastamento do poema em relação à realidade e seu fechamento na imanência do texto literário, o que se vê é justamente o oposto: a forma é erodida para possibilitar que a empiria, por meio das pichações incorporadas, passe a fazer parte da tessitura do poema. O esquema tradicional comparece aqui como ruína, estrutura permeável à história, à atualidade.

Considerando-se os poemas do livro em seu conjunto, percebe-se que Lira de lixo apresenta uma dualidade rítmica: de um lado, temos poemas em que o tempo acelera-se, expressando o cotidiano alucinante de uma grande cidade; do outro, o tempo estagna-se, afundando o eu lírico num estado de imobilismo e paralisante acídia — trata-se do tempo percebido como velocidade e como inércia, respectivamente. No tempo-velocidade (tempo percebido como velocidade), o que temos é o frenético agitar-se das ruas, com sua multidão incessante de acontecimentos aleatórios, que sobrecarregam os sentidos e nada ensinam. As imagens geralmente assumidas por tal percepção do tempo são as de acidente automobilístico e atropelamento, como em “Transcendendo o cinza”, “Paz de espírito”, “Canção do eremita”, “Mais uma carniça”, “Um reclame” e “Elegia noturna”; e de queda livre, que encontramos em “Ode ao edifício Ricardo”, “Da fantasia” e “Caderno financeiro, 3º trimestre de 2008”. Essas imagens transmitem a ideia de uma vivência estonteante, vertiginosa, e de esmagamento do eu diante de uma realidade abrupta e brutal; um eu acachapado “como se desenho atingido por marreta de desenho” (“Mais uma carniça”). Em tais imagens, o choque repõe-se como tema, invadindo também o plano do enunciado.

Quanto ao tempo-inércia, percebemo-lo sobretudo nos poemas que tratam do espaço doméstico, do interior da casa, que, de certa maneira, é uma extensão da subjetividade do eu lírico. As imagens aqui referem-se ao mofo — “Nesta casa em que tudo mofa” (“A má companhia”), “mofo crescendo em apatia nas paredes” (“Ascensão”) —, ao “ar impregnado” de inseticida (“A má companhia”), ao ralo do chuveiro entupido (“Hesitação”) e, saindo do espaço privado, a bueiros também entupidos (“Ascensão”). Tais imagens comunicam a impressão de estagnação, de uma paralisia interior que se desdobra em indícios externos. Preso dentro de casa, cercado de elementos familiares, o eu lírico defronta-se com o vazio da própria existência, que o empurra ao tédio, à apatia. Se, no tempo-velocidade, a montagem é a expressão formal de um fluxo contínuo de eventos, no tempo-inércia, o mesmo procedimento dá a ideia do acúmulo degradante de vivências que deterioram, entorpecem e enfastiam a sensibilidade do indivíduo. Trata-se de uma impressão dilatada do tempo, que se recusa a passar; a impressão de uma duração indeterminada dos pequenos eventos cotidianos. Um tempo monótono, como o “vrim-vrom” de uma lavadora de roupas (“Versos em homenagem ao Arrebatamento de 21/05/2011”).

Embora o tempo-inércia pareça oposto ao tempo-velocidade, ambos se baseiam na mesma matéria existencial. Se os eventos cotidianos não geram experiência, se não encerram qualquer significado apreensível, tampouco motivam o eu lírico ou lhe apresentam a possibilidade de aprendizagem e de desenvolvimento pessoal, tendo como resultado a apatia e o imobilismo. Estamos falando de uma realidade em que nada se sedimenta na vida interior do eu lírico, ensejando uma vida em que a as memórias, acumuladas como “pó na mobília”, podem ser dispersas pelo gesto distraído de uma empregada (“Silêncio de alvenaria”). Qualquer ação torna-se inútil num mundo em que nada faz sentido, em que as coisas acontecem de maneira aleatória ou determinadas pela estupidez humana, gerando um forte sentimento de impotência. Outro não é o sentimento que encontramos em “Hesitação” e em “Elegia noturna”. Aliás, neste último, temos o cruzamento do tempo-velocidade com o tempo-inércia, no qual o eu lírico enxerga-se na condição de vítima de um acidente de carro:

O canto
bêbado, três da manhã, de pneus,
rastro negro no asfalto,
e o despertar de
sobressalto.

Entre compaixão e desprezo
me vejo
num banco de trás
preso
ensanguentado entre ferragens
quando contra
o vento da sorte,
como o olhar paralítico
do cervo
refletindo dois faróis.

Como o cervo, paralisado diante do automóvel que se aproxima para atropelá-lo, o eu lírico enfrenta a sensação de total imobilidade. Está preso entre as ferragens, ensanguentado, e olha a si mesmo com um misto de desprezo e compaixão, assim como o Jó de “Poema de mote judaico”. A velocidade entra em colapso e gera a inércia. Já em “Memento mori”, a inércia consome a velocidade na imagem de uma Kombi em que o “movimento vem só em explosões por dentro/ entregue à ferrugem” e dos “quatro cilindros de um motor inútil”. Tudo isso para expressar um tempo que se caracteriza por contínuas transformações que nada acrescentam, que não resultam em nenhuma novidade, elevando à angústia a salomônica constatação de que não há nada de novo sob o sol. O tempo acelera-se, mas não transforma: as coisas continuam as mesmas, isso porque “o tempo tem pressa e arrasta uma perna aleijada” (“A carne feita”) — poderíamos dizer: ele tem pressa, mas não sai do lugar, ou anda em círculos, ou ainda melhor: tem pressa, mas gira eternamente em falso em torno de sua perna imóvel. O tempo é percebido como velocidade e inércia simultaneamente, pois se a vida apresenta-se ao eu lírico feito uma mulher estonteante e burra (feito uma série incongruente de vivências destituídas de sentido), o tempo é puro desperdício. Velocidade e inércia, portanto, são dois estágios de uma mesma percepção do tempo como entropia, como gradativa desorganização das coisas e dispersão de energia, porém dois estágios que não se sucedem cronologicamente, e sim dialeticamente.

A concepção do tempo-entropia resulta de uma poética na qual a crise da experiência no mundo moderno é levada, tanto do ponto de vista conceitual quanto formal, às últimas consequências. Trata-se de uma experimentação radical com o efeito de choque, fruto da configuração estética de uma vivência social típica das metrópoles, denunciando — a partir da perspectiva de Walter Benjamin — o parentesco da lira de lixo do autor brasileiro com as flores do mal baudelairianas. Se o tempo é entropia, o mundo são os destroços de um desastre, em que tudo é detrito e ruína — tudo é lixo (alegoria). É esse mundo que, acompanhado de sua tortuosa lira, Scandolara canta “mascando um chiclete de três mil anos”, idade aproximada da civilização ocidental se contarmos suas origens na Grécia Antiga e entre os hebreus que lançaram os fundamentos da religião judaica (“Profissão de fé”). Contudo, está ausente da poesia de Scandolara qualquer resquício do tom otimista por meio do qual Benjamin atribuía ao efeito de choque no cinema uma função pedagógica de preparação dos sentidos à possibilidade revolucionária. Na realidade, o que temos é um niilismo resoluto, cético a qualquer esperança ou promessa de redenção (seja neste mundo, seja n’outro), como vemos em “Id(iot)elogia”:

Pobre
ou mata ou se mata
pra ser rico,
rico mata
pra manter-se rico,
monges marxistas expiam os pecados do mundo
batendo o Manifesto na testa.

Sem revolução
sem juízo final
os mortos mantêm-se mortos
e os vivos os invejam.

Trata-se de um ceticismo intransigente, para o qual o horizonte histórico é um jogo de espelhos, refletindo infinitamente a mesma imagem paralisada de um pretérito e de um presente devastados. Obviamente, a visão de Benjamin é tributária de seu tempo, no qual a revolução parecia um fantasma bastante palpável por conta de outubro de 1917. Por outro lado, a perspectiva de Scandolara igualmente remete-se a seu contexto — que é, afinal, o nosso —, em que se verificam, no âmbito de uma economia “emergente”, a consolidação de um capitalismo de consumo que, englobando uma parcela cada vez maior da população, deixa pouco espaço a projetos alternativos de organização social e econômica. O capitalismo, com suas contínuas inovações, reinventa-se a cada instante para manter-se estruturalmente o mesmo nos diversos contextos que engendra; sua capacidade proteiforme de se amoldar às mais variadas circunstâncias parece infinito.

Abusando da boa vontade dos leitores que não partilham dos princípios da crítica dialética, ousaria dizer que talvez esteja aí o cerne da questão: o cotidiano frenético das grandes cidades (que, como tenho defendido, constitui o conjunto de vivências que se encontram na base da poesia de Scandolara) nada mais é do que o aspecto mais visível — porque imediatamente perceptível numa escala individual — da expansão, ou dilatação, do sistema capitalista em sua etapa avançada. A consistência do conjunto de poemas de Lira de lixo consiste nisto: na cerrada articulação dos aspectos formais, temáticos e ideológicos da obra, resultante da elaboração estética de uma matéria histórico-social definida.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Tradução João Barreto. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

————— . Magia e técnica, arte e política — Obras escolhidas, vol. I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

————— . Um lírico no auge do capitalismo — Obras escolhidas, vol. III. Tradução José Carlos Martins e Hemerson Alves Batista. São Paulo: Brasiliense, 1989.

BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Tradução José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

EISENSTEIN, Sergei. “Fora de quadro”. In: A forma do filme. Tradução Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002.

SCANDOLARA, Adriano. Lira de lixo. São Paulo: Patuá, 2013.




[1] Para uma reflexão, aplicada à arte cinematográfica, da diferença entre a montagem concebida como ligação e a ideada como colisão, cf. EISENSTEIN, 2002, p. 42.
[2] “Na verdade, a experiência é matéria da tradição, tanto na vida privada quanto na coletiva. Forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados na memória, do que com dados acumulados, e com frequência inconscientes, que afluem na memória” (Idem, ibidem, p. 105).
[3] Para uma visão mais abrangente das implicações do fato de que, para Benjamin, “as ações da experiência estão em baixa”, cf. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” (BENJAMIN, 1984, pp. 197-221).
[4] Segundo Benjamin: “O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria”. Idem, 1984, p. 200.
[5] Cf. Idem, 2013, pp. 169-201.
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